A vitória do socialista François Hollande na eleição presidencial francesa vem sendo apontada como o sinal de um verdeiro “renascimento” na e da Europa. Na Europa: a esquerda renasce das cinzas. Da Europa: num continente prostrado pelas políticas recessivas, pela secagem dos investimentos públicos, pela adoção de impostos que punem a classe média e os mais pobres em favor dos mais ricos e das grandes empresas, sem falar no sistema fincanceiro, renasce a esperança de reversão desse quadro dantesco. (É verdade que houve também mudanças nas eleições gregas; mas este é um caso à parte, que merece análise mais cuidadosa e detalhada mais adiante, antes de qualquer euforia, mesmo que tímida).

Acena-se assim com a possibilidade de um verdadeiro “risorgimento” europeu a partir da França, um renascimento, uma reaparição, um desabrochar primaveril depois de um longo e tenebroso inverno.

É, mas nem todos pensam assim. A começar pela França, onde vozes da direita levantam a idéia de que agora, com Hollande, “quem vai mandar é a CGT”. É a velha justificativa/tese/fantasma da República Sindical que a direita sempre esgrime – do golpe de 64 às margens do Sena, agora em 2012. Para os adoradores da Escola Austríaca de Economia, quem imperam nas escolas do ramo na Alemanha e nos recônditos gabinetes da Comissão Européia e do Banco Central Europeu, com seus gurus von Hayek e von Mises por detrás dos altares, o que periga acontecer é não só por-se em risco o sacrossanto pacto fiscal europeu, como haver uma gigantesca regressão de 40 anos, quando as políticas públicas eram “infectadas” (sic) pelas bactérias, protozoários e virus keynesianos. Ao invés de um “risorgimento”, haveria uma “regressione apocalittica”.

A menina dos olhos dessa nova versão de “pensamento único” é a economia alemã e sua atual estrutura, apontadas ambas como exemplares para o mundo inteiro, sob o nome de “o milagre alemão” (como no Brasil houve um “milagre” nos anos 70, lembram?). Entenda-se que “esturutura” é um conceito que induz o senso comum a pensar em algo estático – como um esqueleto. Longe disso: um esqueleto é uma estrutura porque se movimenta – no espaço, de modo articulado – e no tempo, em que nasce, cresce, e até morre. Uma estrutura, portanto, tem uma dimensão sincrônica e outra diacrônica, tem também um sentido de tendência. E para aquele “pensamento único” a estrutura da economia alemã atual é a boa tendência, saudável e asséptica, que deveria se espraiar pelo mundo para combater a “infecção ou virose keynesiana”.

Essa é a pedra no caminho que Hollande vai ter de enfrentar.

Recentemente a revista alemã Der Spiegel, que hoje está longe de ser de esquerda, publicou um diagnóstico muito interessante da estrutura da economia alemã. Chama-se, em ingles, “The High Cost of Germany’s Economic Success”. O artigo trabalha com uma série de comparações entre dados do emprego e da renda do trabalho de 1990 para cá. A tendência estrutural que desponta é a da desregulamentação das relações de trabalho em vários sentidos – sempre contra os trabalhadores, ainda que a pretexto de oferecer ampliação da oferta de empregos.

O primeiro dado que chama a atenção é o aumento significativo dos contratos chamados de “tempo parcial” (“Part Time”) em detrimento dos de “tempo integral” (“Full Time”).

Em 1991 estes eram 29,4% dos contratos; em 2011, 23,9%; uma queda de 19%. Já os Part Time eram 5,8% em 1990, e em 2011, 12,6%: um aumento de 117%.

Os contratos chamados de “non traditional contracts”, ou seja, que não rezam a cartilha integral das leis trabalhistas, eram 22% em 2011; em 2010 chegaram a 33,3%, num aumento de 51%. Mas o dados mais impactante é que entre os jovens de 15 a 24 anos esses contratos eram 19,5% em 1997, subindo para 39,2% em 2007, aumentando 101% em 10 anos.

Mas tem mais. A remuneração de empresas e investimentos financeiros subiu 50% entre 2000 e 2011, embora levasse um tombo logo depois da crise de 2007/2008. Já a remuneração total do trabalho subiu 19% no mesmo período.

Outro dado significativo: o salário médio dos trabalhadores decresceu 3% entre 2000 e 2011. Mas, dentro dessa massa salarial, o salário médio dos trabalhadores que tiveram seus contratos negociados coletivamente através de seus sindicatos subiu 6%. Ou seja, a dos outros decesceu mais ainda.

Uma outra forma de emprego que cresceu dramaticamente, além do contrato “Part Time”, foi a do chamado emprego temporário, por prazo fixo ou tarefa. A tabela da remuneração (ainda que alta para um padrão brasileiro, é claro) é significativa nas discrepâncias.

O salário médio bruto do conjunto de trabalhadores sem treinamento é de 2.331 euros/mês. O de um temporário, 1.253 euros. Com treinamento (qualificado, a gente diria), no geral, 2.750 euros; temporário, 1.528. Com treinamento e diploma universitário, 4.613 euros e 3.064, respectivamente.

Nessa adoção de “non traditional contracts”, subiu muito o número de trabalhadores cujo contrato de emprego é terceirizado. O que isso quer dizer? Isso significa que se alguém vai trabalhar numa montadora de automóveis, o contrato não é assinado diretamente entre o trabalhador e a empresa, mas entre ele e uma agência de empregos, que o aloca naquele posto de trabalho – em geral de tempo parcial ou de função temporária. A implicação dessa forma de contrato é que esse trabalhador fica fora de quaisquer bônus ou participação nos lucros pagos pela empresa, além de outras compensações. Aliás, se a participação nos lucros faz parte do cartão de visitas do capitalismo alemão, apenas 9% das empresas têm esse sistema de remuneração.

Isso tem feito muitos sindicatos alemães, como dos metalúrgicos, o IG Metall, lutar para que as vantagens obtidas pelos trabalhadores regulares sejam estendidas aos outros – de tempo parcial, temporários ou terceirizados, ou tudo isso ao mesmo tempo. Isso também é uma maneira de aumentar a representatividade dos sindicatos, num momento em em que a tendência estrutural é diminui-la, senão sabota-la.

Um dos problemas para o mundo sindical tradicional é o surgimento dos “sindicatos de nicho”: organizações que representam apenas um grupo ou setor de trabalhadores – normalmente mais qualificados que outros – dentro de uma única empresa. Isso tem ocorrido com freqüência em relação a trabalhadores cuja substituição seja onerosa para a emrpesa, pelo treinamento requerido – caso, por exemplo, de maquinistas de trens ou de pilotos de avião.

Outro fator estrutural negativo – mas positivo aos olhos da ortodoxia econômica – é a ausência, na Alemanha, de um salário mínimo – coisa que até a chanceler Angela Merkel disse que é necessário rever. Mas a resistência é grande. Para dar uma idéia, se o mínimo proposto de 8,50 euros por hora fosse adotado, haveria um aumento salarial imediato para 15% dos homens e 25% das mulheres, fosse qual fosse seu regime de contrato. O mínimo pode ser negociado apenas num contrato coletivo pelos sindicatos – com a desvantagem de que os trabalhadores terceirizados ficam de fora. Uma luta que acabou sendo assumida pelos sindicatos mais poderosos – não sem alguma resistência – foi a de que os mínimos obtidos por categoria sejam também estendidos aos terceirizados. A resistência nasce da Síndrome de Arca de Noé que também atinge os trabalhadores – aquela sensação de que não há espaço para todos no barco, então “quem está fora não entra”, porque vai certamente tirar o lugar de alguém que já está dentro.

Os setores mais atingidos pela depreciação salarial têm sido o dos comerciários, o da gastronomia, os professores, os funcionários públicos e os terceirizados de um modo geral.

Outros fatores – além da redução de aposentadorias, pensões, seguro desemprego – a aumentar a desigualdade na sociedade alemã (apontada não como a maior, mas como a que mais cresce na Europa) são o desequilíbrio de remuneração – os bonus e outras vantagens de altos executivos, sobretudo no setor financeiro, continuam estratosféricos – e as alterações na estutura dos impostos.

Helmut Kohl, o chanceler democrata cristão que conduziu a reunificação, eliminou o imposto sobre grandes fortunas, também uma marca da social democracia local. Em compensação seu sucessor social-democrata, Gerhard Schröder, reduziu as alíquotas de imposto de renda para os que ganham mais.

Em conseqüência dessas alterações, a desigualdade se acentuou no que toca, por exemplo, ao seguro saúde obrigatório. A parcela máxima sobre a qual se paga o seguro saúde é de 45.900 euros anuais. A partir daí o imposto não incide. Isso significa que um engenheiro que ganhe 150.000 euros anuais vai pagar 6,6% de seu salário como seguro saúde. Um trabalhador não qualificado, no piso da escala, que ganhe 15.000, paga 20,7%.

De um modo geral, esse é a nova pedra – uma parede na verdade – ou quem sabe, o novo muro de Berlim – que o socialista François Hollande terá de enfrentar para fazer valer sua agenda infectada de keynesianismos: crescimento, empregos e prosperidade para todos, além de combate às discriminações.

O crescimento da desigualdade na sociedade alemã chegou a tal ponto que houve quem, de modo preocupado, recomendasse recentemente que o país retomasse o imposto sobre grandes fortunas e aumentasse a taxação dos altos lucros e rendas.

Quem foi?

A Linke? O Partido Comunista? François Hollande? O PT? Hugo Chavez? Evo Morales? Fidel Castro?

Nenhum dos anteriores.

Foi o FMI.