YPF, da fantasia aos fatos
Buenos Aires – Há vários anos que a reestatização do petróleo figurava na fantasia do governo e de vários de seus membros, presidenta incluída. E um secretário de Estado com acesso privilegiado a Cristina Fernández de Kirchner e antes a Néstor Kirchner, a quem chamava de “o mais rebelde de todos nós”, às vezes até se animava a fazer dessa fantasia um plano a cumprir.
Buenos Aires – Há vários anos que a reestatização do petróleo figurava na fantasia do governo e de vários de seus membros, presidenta incluída. E um secretário de Estado com acesso privilegiado a Cristina Fernández de Kirchner e antes a Néstor Kirchner, a quem chamava de “o mais rebelde de todos nós”, às vezes até se animava a fazer dessa fantasia um plano a cumprir.
A sigla YPF reaparecia com frequência na boca de vizinhos ou amigos. Em abril de 2006, o ministro Julio De Vido e uma reduzida comitiva viajaram a La paz para negociar o preço do gás boliviano e um gasoduto para o noroeste argentino. Nesse momento, ocupava o Ministério de Hidrocarbonetos Andrés Soliz Rada, um velho nacionalista de esquerda a quem um então e atual funcionário argentino havia protegido em sua casa durante a ditadura. Em sua mensagem de boas vindas, a primeira coisa que Soliz Rada fez foi lembrar que a Yacimientos Petrolíferos Fiscales de Bolívia (YPFB), havia sido fundada em 1936, seguindo a ideia argentina da YPF. Mas aquela YPF iniciada por Hipólito Yrigoyen e impulsionada por Marcelo Torcuato de Alvear, junto com um engenheiro militar a caro da empresa estatal, Enrique Mosconi, já não existia em 2006. Havia sido privatizada, atomizada e provincializada durante o governo de Carlos Menem, entre 1990 e 1992. E, em janeiro de 1999, a sociedade anônima já estava sob o controle majoritário da espanhola Repsol.
No Brasil, o Conselho Nacional de Petróleo havia sido fundado em 1939, sob Getúlio Vargas, com a YPF como uma das referências. Era uma instância de regulação. A YPF terminou por ser o modelo inicial da Petrobras, fundada em 1953, durante outro mandato de Vargas.
Em 1939, o presidente Lázaro Cárdenas criou a Petróleos Mexicanos. Cárdenas também havia tratado com Mosconi que, segundo o pesquisador e diplomata Carlos Piñeiro Iñiguez, foi quem o apresentou a outro oficial, Juan Perón, ante o presidente do México.
Cada país ensaiou, nos anos 30 e nos anos seguintes, distintas experiências com o petróleo. Houve etapas mais estatizantes e etapas mais flexíveis frente o capital privado, como a que protagonizou o próprio Getúlio Vargas, enquanto negociava investimentos siderúrgicos dos Estados Unidos no Brasil.
Mas o único país que mudou totalmente o modelo foi a Argentina, no início do primeiro governo de Carlos Menem e ao final do segundo. Fez isso, inclusive, indo mais além de outras gestões neoliberais na região, como a dos brasileiros Fernando Collor de Mello e Fernando Henrique Cardoso, ou a do mexicano Carlos Salinas de Gortari. Superou até a ditadura de Augusto Pinochet, que reprivatizou só parcialmente o cobre nacionalizado pelo governo do socialista Salvador Allende (1970-1973).
Talvez por isso a iniciativa de Cristina Fernández de Kirchner de reestatizar a YPF tenha sido recebida com tanto alarido na Espanha mas, em troca, mereceu um tom informativo e neutro, por exemplo, em dois portais ligados ao mundo dos negócios do Brasil, o do jornal Estado de São Paulo e o do Valor Econômico. Na maioria da América do Sul, com exceção do Chile, hoje não pesam as opiniões que questionam o papel do Estado e menos ainda as críticas que apontam como negativo o controle dos hidrocarbonetos pelos governos.
Na verdade tampouco deveriam pesar, honestamente, na Europa Ocidental. Em outubro de 2008, um mês depois da queda do Lehman Brothers, o ministro do tesouro da Grã-Bretanha, Alistair Darling, anunciou que o Estado compraria até 60 bilhões de dólares em ações de quatro bancos britânicos. Ou seja, anunciou uma nacionalização parcial. Ou sim, pesam as opiniões mais rígidas em uma Europa do sul menos flexível e mais débil nestes dias frente o furacão da crise mundial? As decisões sobre a Repsol, assim como sobre Aerolíneas ou outras empresas, foram compartilhadas entre a direita do Partido Popular e a socialdemocracia do PSOE em períodos históricos distintos. Por isso a solidariedade com Mariano Rajoy, expressa ontem pelo candidato socialista derrotado nas últimas eleições, Adolfo Pérez Rubalcaba. Uma solidariedade que talvez tenha uma dose de dogmatismo compartilhado frente à ortodoxia de mercado, que já destruiu a Grécia e segue além.
O anúncio de Cristina abre uma discussão interessante e sem limites, inclusive sobre se Santa Cruz não pode, não soube ou não quis se opor naquele momento à atomização de Menem, ou sobre as debilidades da política petroleira de 2003 até hoje. Mas, para além do debate histórico sobre realidades próximas ou mais distantes, que não parece preocupar o governo, o envio do projeto de lei e a intervenção na Repsol são fatos. E os fatos na política, mais ainda em se tratando de política petroleira, provocam realinhamentos, abrem a etapa das disputas concretas, geram lutas encarniçadas e lançam a agenda do futuro. Ontem, Rajoy estava furioso e Pino Solanas contente.
Tradução: Katarina Peixoto