Em "A Origem do Cristianismo", Karl Kautsky se refere ao período de decadência do Império Romando, quando a atividade política teria cessado. Nessa época, segundo ele, era moda pronunciar discursos edificantes e fabricar máximas morais. O fim da política e o privilégio das prédicas morais levavam, inevitavelmente, a uma evidente contradição: muitos dos pregadores eram flagrados em desvios graves, morais, semelhantes àqueles que condenavam. O artigo é de Emiliano José.

Eu me impressiono com o clima moralista dominante, com a desqualificação permanente da política, com a elevação da moral à condição de deusa suprema. Homens puros e bons se elevam, e vão limpando o ambiente de tantos seres sujos, pecaminosos, e dados à prática da corrupção. Os pregadores alevantam sua voz tonitruante e condenam todos os que estejam ao lado, e que presumivelmente tenham cometido algum pecado. Nem lhes importa investigar se verdade ou mentira, que aos pregadores basta uma notícia para que saiam a campo e, em muitos casos, a notícia é encomendada, lamentavelmente. Saem a campo cheios de pose, com seus dedos incriminadores, seu verbo incendiário, cheios de razão.

É de hoje, é de ontem, é de anteontem essa prática. Se quisermos nos referir ao Brasil, é só lembrar personagem famoso – Carlos Lacerda, O Corvo –, que não se incomodava em inventar histórias fantasiosas para atacar seus adversários pela imprensa, e seu espírito golpista sempre andava de braços dados com o moralismo udenista, que hoje reaparece no Brasil com toda força.

A tentação é recorrer a Marx e dizer que a história nunca se repete – numa ocasião é tragédia, lá com Lacerda, na sequência, é farsa, como nos dias de hoje, com Demóstenes Torres. A moral e a ética não podem substituir a política. Podem e devem servir de substância a ela, se verdadeiras. São um substrato para o exercício da política, mas não podem e não devem substituí-la.

Em geral, mais cedo ou mais tarde, nessas épocas de tentativa de predomínio do moralismo, da substituição da política pela moral, os pregadores acabam bebendo do próprio veneno. O povo diria que o pregador age como o macaco, que não olha para o próprio rabo. É como se pregasse com tanta insistência o respeito à moral, o bom uso do dinheiro público – o que é absolutamente correto – apenas e tão somente para encobrir a montanha de problemas que ele próprio acumula ao longo de sua existência, quando não a montanha de fortuna adquirida exatamente com os métodos que condena.

O mundo que ele prega – de profundo respeito à ética – é uma exigência para os outros, e vale apenas como aparência para ele. Como defesa, quem sabe. Até que a casa caia e, não raramente, cai. Um fariseu, diriam os cristãos. Quando cai, há os que se assustam, perplexos com tal distância entre o verbo e a vida. É bom precaver-se contra os pregadores, os moralistas. São sepulcros caiados – ainda é a bíblia. É bom compreender que o pecado mora ao lado. Quase sempre. Demóstenes está aí para não deixar ninguém se enganar. Ou exigindo muito mais cautela diante dos pregadores.

Esses dias me caiu às mãos o livro “A origem do cristianismo”, de Karl Kautsky. Caiu às mãos é forma de dizer. Eu o procurei por sugestão de meu amigo Venício Artur de Lima. Valeu a pena. Por muitas razões, que não cabe aqui detalhar. Quanto a essa discussão, lembro-me da remissão que Kautsky faz ao período da decadência do Império Romano, quando, na visão dele, todas as atividades políticas tinham cessado. Nessa época, ainda segundo o nosso autor, “chegou a ser moda pronunciar discursos edificantes e fabricar máximas e historietas morais”.

O fim da política e o privilégio das prédicas morais voltadas à perfeição do indivíduo ou à simples valorização das virtudes individuais levavam, inevitavelmente, a uma evidente contradição: muitos dos pregadores eram flagrados em desvios graves, morais, semelhantes àqueles que condenavam. Vê-se que o problema vem de longe. Como exemplo clássico, Kautsky cita Sêneca, filósofo e preceptor de Nero, um severo crítico da riqueza, da avareza e do amor aos prazeres.

Ainda em vida, no entanto, Sêneca viu um tribuno do Senado acusá-lo de ter acumulado grande fortuna praticando a usura e falsificando testamentos. Deixou, ao morrer, uma fortuna de 300 milhões de sestércios, coisa de 6 milhões de marcos, uma das maiores fortunas da época. Não foi fiel à própria doutrina, como se vê.

E agora o Demóstenes Torres, ora Veja. Não compensa, face ao muito que foi divulgado, sobretudo por blogs progressistas, pela revista CartaCapital e alguns poucos outros veículos, voltar propriamente ao assunto, mostrar a intrincada rede do crime organizado, que envolveu o senador e Carlinhos Cachoeira mais os 200 telefonemas da direção da revista Veja com a inestimável e cúmplice fonte – ele próprio, Cachoeira.

A velha mídia entrou constrangida no assunto, e Veja fingiu que não é com ela, e desfilou de mistérios do Santo Sudário. O que ela deu do assunto beira ao ridículo. O que se deve responder é aonde vamos com esse moralismo udenista, conservador, retrógrado, que vem exatamente de pessoas que não tem nenhum compromisso com a ética em seu sentido mais republicano e filosoficamente mais profundo. Quanta distância entre tudo o que o senador Demóstenes Torres pregava e o que ele praticava cotidiana, sistematicamente.

Temos que discutir política. Temos que colocar a política no posto de comando. Temos que pensar cada vez mais nos instrumentos do Estado de Direito que garantam o respeito ao dinheiro público. Caminhar, como creio estamos caminhando, para um Estado que tenha mecanismos rigorosos de transparência, fiscalização e acompanhamento da aplicação dos recursos provenientes do povo brasileiro. Querer fazer alguém crer que a solução está na soma de virtudes individuais para enfrentar a corrupção é uma mistificação própria dos que não acreditam na democracia.

Ou o Estado de Direito é capaz de frear a corrupção, de acabar com as frequentes tentativas de privatização do Estado, ou, então, a corrupção prosseguirá sem o devido e necessário cotidiano combate. Não são os demóstenes que irão acabar com ela, como estamos vendo. São os mecanismos da política, do Estado de Direito democrático, que podem enfrentá-la, aprofundando a transparência, como tem sido feito pela Controladoria Geral da União, que passou a ter existência efetiva desde o início do governo Lula, quando Waldir Pires, por decisão do presidente, a construiu. E que segue agora, sob o governo da presidenta Dilma.

Se há a pretensão de frear a privatização do Estado, o patrimonialismo, a utilização de cargos do governo para fazer fortuna, trata-se de, com urgência, efetivar a reforma política, garantir o fortalecimento dos partidos políticos com a fidelidade partidária, financiamento público de campanha e voto em lista pré-ordenada, para citar três pontos essenciais.

Como livrar-se da maldição da relação entre o financiador e o financiado? Como evitar que o Congresso seja eleito pelos financiadores privados? Como assegurar que tantos setores do nosso povo, hoje ausentes do Parlamento, possam estar presentes nele? Sem dúvida, com o atual esquema eleitoral, não há chance de um homem do povo, salvo exceções, vir a ser um parlamentar. Onde arrumará o dinheiro para tanto?

Os financiadores privados, para tentar dizer tudo, são procurados, não apenas procuram, e se nem todos aprisionam os candidatos que financiam, boa parte exige contrapartida. Obviamente, participam de um jogo, de uma arquitetura institucional equivocada, que cumpre mudar, para que, afinal, todos ganhem. Tenho convicção de que há empresários que gostariam de trabalhar sob outra modelagem política, que gostariam que os negócios do Estado fossem realizados à luz do dia, de modo republicano, sem a intromissão de outros mecanismos.

Além disso, nosso Parlamento tem a missão de valorizar mais e mais a participação direta do povo. Há uma evidente crise da democracia representativa e, no interior da reforma política, é fundamental pensar mecanismos de intervenção direta do povo que ultrapassem ou complementem o momento das eleições propriamente ditas.

Fora disso, vamos patinar, andar em círculos, ser prisioneiros desse moralismo udenista tardio, vindo de personalidades cujas prédicas entram em confronto direto com suas vidas anteriores e com suas práticas cotidianas atuais. Os que defendem a democracia, os que almejam uma sociedade mais e mais justa, não podem ser reféns de uma discussão rasteira, pobre, fundada nas virtudes ou defeitos individuais desse ou daquele cidadão.

Devem lutar pela continuidade e aprofundamento das mudanças que inegavelmente temos experimentado desde 2003, pela radicalização da revolução democrática em curso no Brasil. Será essa luta que, levada à frente, poderá garantir que haja, de fato, ética na política – que significa, sempre, responder às necessidades da maioria da nossa gente, diminuindo de modo cada vez mais veloz as desigualdades que ainda nos afrontam.

Se é inegável que avançamos muito quanto ao enfrentamento da distribuição de renda sob os oito anos do governo Lula e sob o governo da presidenta Dilma, é também verdadeiro que falta muito que fazer, e para tanto é fundamental que cada centavo do dinheiro público seja aplicado em benefício da população, especialmente daquela mais pobre. É isso que devemos garantir. Isso é a ética na política.

*Emiliano José é deputado federal (PT-BA), jornalista e escritor.