Anos de luta, mas também de derrotas e repressão.

E, no entanto, a repressão não foi monolítica desde o início, nem sua evolução linear.

Entre as forças heterogêneas que apoiaram a deposição de Goulart as contradições logo surgiram a respeito da natureza que deveria revestir a intervenção militar e do tipo de projeto de desenvolvimento a ser imposto no país. As divergências se exprimiram na disparidade entre o discurso que prestava homenagem aos valores liberal-democráticos – adotado inclusive pelos generais que se sucediam no poder – e a prática de um regime de exceção que se acentuou até tomar a forma do Ato Institucional nº5 (AI-5).

No meio tempo, sucederam-se querelas e crises entre os vencedores.

Disso se aproveitaria o movimento estudantil. É certo que a polícia atacou sempre suas manifestações, mas, por outro lado, a ditadura parecia, às vezes, hesitar. Além disso, a própria legislação, em certo grau, e num dado período, protegia as vítimas do arbítrio. É que os estudantes pertenciam à classe média, base social importante do golpe militar. Caberia, portanto, contemporizar, preservar seu apoio.

As declarações de respeito à democracia e os compromissos passados com aliados de todo o tipo também imporiam um certo grau de tolerância às vozes da oposição consentida. Daí a linha de ziguezagues e as incertezas atribuídas por muitos a supostas divisões entre linha "dura" e linha "moderada". Cassavam lideranças, mas limitavam o próprio poder de cassar. Afastavam juízes e castravam suas funções, mas não as extinguiam de todo. Liquidavam os velhos partidos, mas propunham a criação imediata de novos. Reduziam os poderes do Congresso e até fechavam o Parlamento, mas o continuavam caracterizando como fonte de poder e instância legitimadora para a eleição dos próprios generais-presidentes. Instauravam o Estado de exceção, mas faziam aprovar uma Constituição preparada a toque de caixa por uma comissão submissa ao general-presidente de plantão.

Quando o general Costa e Silva investiu-se no poder, em 1967, concentrando os superpoderes conferidos pela Constituição imposta ao país dois meses antes, afirmou, sem sorrir, que se comprometia a construir um país humano e democrático. Uma abertura? Ou mais um ziguezague?

As ilusões dissiparam-se em 1968. No decorrer do ano a linha da política repressiva estará sempre em ascensão, com exceção de raros momentos.

Quando o estudante do Calabouço morreu baleado no Rio, alguns ainda puderam atribuir o crime a um policial isolado. Mas nos dias seguintes a repressão matava outro estudante em Goiânia. Desde então, e excetuada a semana de liberdade das passeatas em junho, a repressão policial continuaria dissolvendo a tiros as passeatas, banalizando a morte nas ruas. No segundo semestre, embora o movimento já estivesse em declínio, continuou sendo violentamente atacado.

A repressão não se limitaria à ação dos policiais. Um de seus aspectos mais agressivos se revelaria através dos grupos paramilitares, atuando à sombra da própria lei. Bombas em teatros do Rio e São Paulo, em editoras, jornais, faculdades, espaços culturais, instituições de oposição ao regime, seqüestros e espancamentos de artistas e estudantes. Dezenas de ações que se sucederam sem que a responsabilidade de uma única fosse apurada.

Em dois momentos, pelo menos, seria possível tomar conhecimento detalhado destas operações. Em 1º de setembro, a polícia paulista prendeu um cidadão chamado Sabato Dinotos, também conhecido por Aladino Félix. O homem confessou exercer a chefia de um grupo de soldados e graduados da Força Pública que havia cometido dezenas de atentados e assaltos em São Paulo. Acusou o general José Paulo Trajano como mandante e envolveu nas acusações o general Freitas, do Departamento da Polícia Federal, subordinado direto da Casa Militar da Presidência da República, chefiada pelo General Jayme Portella, também secretário geral do Conselho de Segurança Nacional. Em algum lugar as investigações subseqüentes emperraram e, dias depois, por uma distração dos carcereiros, o presumido chefe do grupo terrorista simplesmente sumiu da cadeia…

O outro escândalo foi denunciado da tribuna do Parlamento e envolveu a utilização de uma tropa de elite da Aeronáutica (o PARA-SAR) na prática de missões criminosas. O ministro da Aeronáutica desmentiu a denúncia, mas oficiais e praças do PARA-SAR (serviço especializado em salvamentos) a confirmariam. Teriam sido, de fato, em abril, convocados pelo brigadeiro João Paulo Burnier, chefe do Serviço de Informações da Aeronáutica, para executar ações terroristas (explosão do gasômetro no Rio, eliminação de lideranças estudantis e políticas nacionais) que seriam atribuídas a partidos de esquerda. O superior imediato dos denunciantes confirmou os fatos e solicitou abertura de inquérito. Ora, as autoridades preferiram defender os denunciados, prendendo e demitindo de seus postos os denunciantes.

Nos dois episódios estabeleceu-se a cumplicidade entre os responsáveis pela lei e a ilegalidade, entre a autoridade e o crime.

Também no plano institucional o regime se fechava. Logo no começo do ano a Secretaria-Geral do Conselho de Segurança Nacional recebeu, por decreto, novos e amplos poderes. A oposição extra-parlamentar – a Frente Ampla – foi proibida pelo Ministério da Justiça. Em junho aprovou-se o instituto das sublegendas para garantir o partido do Governo. Depois, veio a proibição das passeatas estudantis e os quatro exércitos seriam chamados a participar do controle da "ordem pública". Em setembro, pela primeira vez, e já sob determinação dos tribunais militares, foram condenados quatro estudantes a penas de até dois anos de prisão por terem – supostamente – incendiado um camburão.

O cerco se fechava.

O desfecho veio com a representação dos ministros militares, requerendo abertura de processo contra o deputado Márcio Moreira Alves por ter em discurso "ofendido a honra das Forças Armadas". Quando o Congresso, no uso de suas atribuições legais, negou a autorização, disparou-se o AI-5. Reinstaurava-se o Estado de exceção, agora sem prazos, sem auto-limitações de nenhum tipo.

Não se sustenta, portanto, a idéia – ou a tese – de que o "fechamento" foi uma reação a pressões políticas insuportáveis. Como se o governo estivesse acuado por forças descontroladas e tivesse recorrido ao AI-5 como última linha de defesa. Nem é possível acreditar que as investidas dos movimentos sociais, cada vez mais enfraquecidas, tenham feito tremer o governo militar…

Na verdade, o governo não estava ameaçado, nem acuado, ao contrário, mantinha a ofensiva. E precisava do AI-5 para levar às últimas conseqüências o modelo de desenvolvimento econônico-social em vigor.

O AI-5 aferrolhou mais ainda a sociedade, mas foi sobretudo uma decantação de alianças, um golpe dentro do golpe.

Suportamos seus efeitos até hoje.

E as suas conseqüências se prolongarão ainda por muitos anos…

 

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