Um erro em que muitas vezes se incorre ao pensar as esquerdas nos anos 60 é tomá-las separadamente do contexto da época que as produziu e que tentaram transformar. De fato, fora daquelas circunstâncias específicas, parece um despropósito a opção de armar-se para iniciar a guerrilha, supostamente o primeiro passo para realizar a revolução brasileira.

Por isso, vale a pena recordar as circunstâncias históricas daquele tempo. Em termos internacionais, foram vitoriosas ou estavam em curso inúmeras revoluções de libertação nacional, por exemplo, a Revolução Cubana (1959), a independência da Argélia (1962) e a guerra antiimperialista em desenvolvimento no Vietnã. O êxito militar dessas revoluções é fundamental para se compreender as lutas e o ideário contestador nos anos 60: havia povos subdesenvolvidos que se rebelavam contra as grandes potências, para criar um sonhado mundo novo. Em especial, a Revolução Cubana era uma esperança para os revolucionários latino-americanos, inclusive no Brasil.

Ao mesmo tempo, questionava-se o modelo soviético de socialismo, considerado burocrático e acomodado à ordem internacional estabelecida pela Guerra Fria, incapaz de levar às transformações sociais, políticas e econômicas necessárias para se chegar ao comunismo. Esse modelo — que só ruiria de vez com a desagregação da União Soviética, em 1989 — era contestado na época, por exemplo, no interior do Partido Comunista da Checoslováquia, cuja chamada Primavera de Praga foi destruída pela invasão dos tanques de guerra soviéticos, em 1968. Também o processo de "revolução cultural proletária", em curso na China a partir de 1966 — que mais tarde viria a revelar seu lado trágico —, parecia a setores jovens do mundo todo uma resposta ao burocratismo de inspiração soviética.

Movimentos de protesto e mobilização política surgiram por toda parte, especialmente no ano de 1968: das manifestações nos Estados Unidos contra a guerra no Vietnã à Primavera de Praga; do maio libertário dos estudantes e trabalhadores franceses ao massacre de estudantes no México; da alternativa pacifista dos hippies, passando pelo desafio existencial da contracultura, até os grupos de luta armada, espalhados mundo afora. Os sentimentos e as práticas de rebeldia contra a ordem e de revolução por uma nova ordem fundiam-se criativamente.

Além dos fatores internacionais, foram principalmente aspectos da política nacional que marcaram as lutas das esquerdas brasileiras nos anos 60. O processo de democratização política e social, com a mobilização popular pelas chamadas "reformas de base" — agrária, educacional, tributária e outras que permitissem melhor distribuição da riqueza e de direitos —, foi interrompido pelo golpe de 1964. Ele deu fim às crescentes reivindicações de operários, camponeses, estudantes e militares de baixa patente, cuja politização ameaçava a ordem estabelecida.

A falta de resistência ao golpe gerou surpresa, justamente pela mobilização em busca das reformas estruturais no pré-64, com a presença marcante das esquerdas, notadamente do Partido Comunista Brasileiro (PCB) — entidade ilegal, mas cuja atuação era consentida pelo governo Goulart. A derrota foi atribuída por muitos aos erros dos dirigentes dos partidos de esquerda, que não se prepararam para resistir, caso do hegemônico e pró-soviético PCB, da Ação Popular (AP), do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e da Política Operária (Polop), além de outros grupos menores. Sem contar a inação das lideranças trabalhistas e nacionalistas, como a do presidente deposto, João Goulart. Ia-se constituindo uma corrente de opinião difusa em vários segmentos da esquerda, que colocava a necessidade de criar uma vanguarda realmente revolucionária, que rompesse com o imobilismo e opusesse uma resistência armada à força bruta do governo, não só para restabelecer a democracia, mas especialmente para avançar em direção à superação do capitalismo.

A partir de outubro de 1965, por imposição do regime, passaram a existir apenas dois partidos reconhecidos institucionalmente: a situacionista Aliança Renovadora Nacional (Arena) e a oposição "construtiva" e moderada do Movimento Democrático Brasileiro (MDB), que viria a ser calada com cassações de políticos e outros mecanismos, sempre que se excedesse aos olhos dos governantes.

Fora do campo institucional, vários grupos procuravam combater a ditadura e organizar os movimentos populares: da Ação Popular (AP), nascida do cristianismo católico, depois convertida ao maoísmo, passando pelo moderado e cada vez mais dividido PCB, que apoiava o MDB, e estava cindido pelo guevarismo de diversas dissidências, as quais valorizavam a necessidade de iniciar a revolução pela guerrilha rural — caso típico da Ação Libertadora Nacional (ALN) e do Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), que promoveram o seqüestro do embaixador norte-americano; até outras organizações que pegaram em armas na resistência à ditadura, como a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), dentre tantas que enfatizavam a necessidade da ação revolucionária imediata.

A contestação radical à ordem estabelecida no pós-64 não se restringia às organizações de esquerda; difundia-se socialmente na música popular, no cinema, no teatro, nas artes plásticas e na literatura. O romance Quarup, de Antonio Callado, talvez seja o exemplo mais representativo da utopia revolucionária do período, no qual se valorizava acima de tudo a ação organizada das pessoas para mudar a história.

Filmes como Terra em transe, de Glauber Rocha, e Os fuzis, de Ruy Guerra, dentre outros do Cinema Novo; peças encenadas pelo Teatro de Arena e pelo Oficina; canções como Terra plana e Para não dizer que não falei das flores (Caminhando), de Geraldo Vandré, Roda e Procissão, de Gilberto Gil, Viola enluarada, dos irmãos Valle, Soy loco por ti, América, de Capinam e Gil, e outras de compositores como Sérgio Ricardo, Chico Buarque, Edu Lobo, Milton Nascimento e seus parceiros; as exposições de artes plásticas, como a Nova Objetividade Brasileira, no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro; enfim, inúmeras manifestações culturais, diferenciadamente, entre 1964 e 1968, cantavam em verso e prosa a esperada "revolução brasileira" — com base principalmente na ação das massas populares, em cujas lutas a intelectualidade de esquerda estaria organicamente engajada. Na década de 1960, a utopia que ganhava corações e mentes era a revolução (não a democracia ou a cidadania, como hoje), tanto que o próprio golpe designou-se como "revolução de 1964".

Uma série de grupos guerrilheiros surgiria a partir de 1964, em meio ao refluxo dos movimentos populares, desmantelados pela repressão — que também golpeava duramente as organizações de esquerda, as quais se encontravam em pleno processo de "autocrítica", como se dizia na época. Sua principal fonte de recrutamento de militantes estava no meio estudantil, berço do único movimento de massas que se rearticulou nacionalmente nos primeiros anos do pós-64, lançando-se em significativos protestos de rua, especialmente em 1968.

As organizações guerrilheiras tinham divergências entre si: acerca do caráter da revolução brasileira (para algumas, a revolução seria nacional e democrática, numa primeira etapa; para outras, ela já teria caráter imediatamente socialista); sobre as formas de luta revolucionária mais adequadas para chegar ao poder (a via guerrilheira mais ou menos nos moldes cubanos; o cerco das cidades pelo campo, de inspiração maoísta; a insurreição popular etc.); bem como sobre o tipo de organização política a ser construída — discutia-se muito a necessidade ou não de um partido nos moldes leninistas da III Internacional.

Por outro lado, as organizações armadas também apresentavam aspectos em comum, tais como: a prioridade revolucionária da ação armada, contra o suposto imobilismo de partidos como o PCB; a interpretação da economia brasileira como vivendo um processo irreversível de estagnação — o desenvolvimento das forças produtivas estaria bloqueado sob o capitalismo, que aliaria indissoluvelmente os interesses dos imperialistas, dos latifundiários e da burguesia brasileira, garantidos pelas forças militares. Só um governo popular, ou mesmo socialista, possibilitaria a retomada do desenvolvimento. Como decorrência desse tipo de análise, estariam dadas as condições objetivas para a revolução, faltando apenas as subjetivas, que seriam forjadas por uma vanguarda revolucionária decidida a agir de armas na mão, criando condições para deflagrar a guerrilha a partir do campo — local mais adequado para as atividades revolucionárias, por sofrer a fundo a espoliação e a miséria e por apresentar maiores dificuldades para os órgãos repressivos.

A fim de iniciar a guerrilha rural, seria necessário conseguir armamentos e dinheiro. Daí vários grupos terem empreendido ações urbanas, por exemplo, assaltos a bancos e roubos de armas. Como a ditadura ia aperfeiçoando seu aparelho repressivo, efetuando prisões, seguidas de infindáveis torturas, algumas organizações resolveram promover seqüestros de diplomatas — o primeiro deles foi o do embaixador norte-americano — para forçar a libertação de presos políticos e divulgar a luta armada. Assim, em 1970, foram realizados com êxito outros três seqüestros: em março, com a ajuda de dois grupos menores, a VPR seqüestrou o cônsul japonês em São Paulo, logrando libertar cinco presos; em junho foi a vez do embaixador da Alemanha Ocidental, que a VPR e a ALN trocaram por 40 detidos; finalmente, em dezembro, a VPR capturou o embaixador suíço, conseguindo livrar 70 prisioneiros, após cerca de 40 dias de tensas negociações, com o veto da ditadura a vários nomes da lista inicialmente apresentada. O desgaste dessa ação, associado à fraqueza orgânica do que restava da esquerda armada, destroçada pela repressão, colocou um ponto final nos seqüestros.

Apesar de uma ou outra operação guerrilheira bem-sucedida, os militares desmantelaram rapidamente as organizações armadas, especialmente entre 1969 e 1971, não hesitando em assassinar e torturar seus inimigos, que não conseguiram deflagrar a guerrilha rural. Apenas o PCdoB, crítico das ações urbanas, conseguiu lançar a guerrilha, na região do Araguaia, no sul do Pará. De 1972 a 1974, houve encarniçada luta, que culminou com a derrota dos guerrilheiros, quase todos mortos em combate ou assassinados depois de capturados, sem que se tenha notícia oficial, até hoje, do paradeiro de seus corpos.

A ditadura civil-militar manteria o poder durante 20 anos. As esquerdas enganaram-se ao supor que o golpe implicaria a estagnação econômica. Ao contrário, representando as classes dominantes e setores das classes médias, os governos autoritários promoveram a chamada "modernização conservadora". Houve crescimento rápido das forças produtivas, acompanhado da concentração de riquezas, do aumento da distância entre os mais ricos e os mais pobres, bem como do cerceamento às liberdades democráticas. O regime buscava sua legitimação política com base nos êxitos econômicos, sustentados por maciços empréstimos internacionais, geradores da imensa dívida externa na qual estamos atolados até os dias de hoje.


1969: mergulho no pesadelo

O ano de 1969 […] teve início sob o signo da repressão: em 13 de dezembro de 1968, o regime civil-militar baixara o Ato Institucional número 5 (AI-5), conhecido como "o golpe dentro do golpe". Com ele, os setores militares mais direitistas — que haviam patrocinado uma série de atentados com autoria oculta, sobretudo em 1968 — lograram oficializar o terrorismo de Estado, que passaria a deixar de lado quaisquer pruridos liberais, até meados dos anos 70. Agravava-se o caráter ditatorial do governo, que colocou em recesso o Congresso Nacional e as Assembléias Legislativas estaduais, passando a ter plenos poderes para: cassar mandatos eletivos, suspender direitos políticos dos cidadãos, demitir ou aposentar juízes e outros funcionários públicos, suspender o habeas-corpus em crimes contra a segurança nacional, legislar por decreto, julgar crimes políticos em tribunais militares, dentre outras medidas autoritárias. Paralelamente, nos porões do regime, generalizava-se o uso da tortura, do assassinato e de outros desmandos. Tudo em nome da "segurança nacional", indispensável para o "desenvolvimento" da economia, do posteriormente denominado "milagre brasileiro".

Com o AI-5 foram presos, cassados, torturados ou forçados ao exílio inúmeros estudantes, intelectuais, políticos e outros oposicionistas. O regime instituiu rígida censura a todos os meios de comunicação, colocando um fim à agitação política e cultural do período. Por algum tempo, não seria tolerada qualquer oposição ao governo, sequer a do moderado MDB. Era a época do slogan oficial "Brasil, ame-o ou deixe-o".

Nessas circunstâncias, as organizações que já vinham realizando algumas ações armadas ao longo de 1968 — como a ALN e a VPR — concluíram que estavam no caminho certo, e intensificaram suas atividades em 1969. Outros grupos também passaram a não ver outro modo de combater a ditadura, a não ser pela via das armas. Com exceção do PCB, do PCdoB, da AP e dos pequenos agrupamentos trotskistas, ocorreu o que Jacob Gorender chamou de "imersão geral na luta armada", promovida por mais de uma dezena de organizações, como a Ala Vermelha, o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), o Partido Revolucionário dos Trabalhadores (PRT), a Vanguarda Armada Revolucionária-Palmares (VAR), o Partido Operário Comunista (POC), dentre tantas outras.

Paralelamente à escalada das ações armadas, a ditadura ia aperfeiçoando seu aparelho repressivo: além dos já existentes Departamentos Estaduais de Ordem Política e Social (DEOPS), criou em junho de 1969, extra-oficialmente, a Operação Bandeirante (Oban), organismo especializado no "combate à subversão" por todos os meios, inclusive a tortura sistemática. Em setembro de 1970, a Oban integrou-se ao organismo oficial, recém-criado pelo Exército, conhecido como DOI-CODI (Destacamento de Operações de Informações-Centro de Operações de Defesa Interna). A Marinha tinha seu órgão de "inteligência" e repressão política, o Centro de Informações da Marinha (Cenimar), correspondente ao Centro de Informações e Segurança da Aeronáutica (CISA), e ao Centro de Informações do Exército (CIE).

Em agosto de 1969, o presidente-general Costa e Silva sofreu uma trombose — da qual viria a morrer — e precisou ser afastado da presidência. A ditadura estava diante de novo impasse: dar ou não posse ao vice, Pedro Aleixo, moderado e civil. Com o Congresso ainda fechado (só reabriria, depois de devidamente expurgado, para "eleger" o presidente Médici, que governaria a partir de 1970, nos piores tempos da repressão), os militares resolveram que Costa e Silva seria substituído por uma Junta, composta pelos três ministros militares em exercício: Lyra Tavares, Augusto Rademaker Grünewald e Márcio de Souza e Mello. Enquanto isso, intensificavam-se as prisões e torturas de militantes de esquerda.

O quadro era esse quando a direção do MR-8 — nova sigla assumida pela até então Dissidência Estudantil do PCB na Guanabara (Di-GB), que liderara os concorridos protestos e passeatas de 1968 no Rio de Janeiro — resolveu seqüestrar o embaixador norte-americano, para denunciar publicamente a ditadura e libertar presos políticos. Pediu e recebeu ajuda da ALN paulista, grupo com mais experiência militar. Em 4 de setembro, data escolhida a dedo, em plena Semana da Pátria, o embaixador foi seqüestrado por um comando composto por Virgílio Gomes da Silva (o Jonas, comandante da operação), Manoel Cyrillo de Oliveira, Paulo de Tarso Venceslau — todos da ALN —, além dos membros do MR-8: Franklin Martins (idealizador do seqüestro e autor da carta-manifesto divulgada pelos guerrilheiros), Cláudio Torres, Cid Benjamim, João Lopes Salgado, Sérgio Torres, Sebastião Rios e Vera Sílvia Magalhães. Os integrantes da operação — com exceção de Paulo de Tarso, Sérgio Torres, Sebastião Rios e Vera Sílvia — ficaram escondidos com o embaixador numa casa da rua Barão de Petrópolis, no bairro do Rio Comprido, onde também estavam Fernando Gabeira, jornalista ligado ao segundo escalão do MR-8, que alugara a casa, e Joaquim Câmara Ferreira, o Toledo, principal dirigente da ALN, depois de Carlos Marighella.

Pressionada pelo governo norte-americano, a junta militar liberou 15 prisioneiros políticos, que receberiam a pena de banimento do território nacional. Em troca, o embaixador foi solto, em 7 de setembro de 1969, a contragosto de bolsões militares de extrema direita, que chegaram a tomar uma rádio, para divulgar seu inconformismo com a escalada "terrorista".

Imediatamente, o regime colocou em vigor nova Lei de Segurança Nacional, ainda mais dura. Também impôs uma Constituição, em outubro, que "emendava" a de 1967, legalizando as arbitrariedades da ditadura. A maioria dos integrantes do seqüestro foi presa em seguida, passando por suplícios inimagináveis nas mãos dos torturadores.

Numa emboscada em São Paulo, em novembro de 1969, foi assassinado Carlos Marighella — o principal líder da guerrilha, depois de ter rompido com o Partido Comunista, pelo qual havia sido deputado constituinte em 1946. Era o início do fim da esquerda armada. Fechava-se tragicamente para os guerrilheiros o ano em que o país mergulhou nas trevas do obscurantismo político, cuja sobrevivência seria garantida nos anos seguintes pela força e pelo "milagre econômico".