Enfrentando as desigualdades pela autonomia das mulheres
Quero saudar todas as mulheres, trabalhadoras do campo e da cidade, mulheres negras, mulheres lésbicas, mulheres indígenas, mulheres com deficiência, trabalhadoras domésticas, mulheres artistas, gestoras públicas, enfim todas as mulheres que aqui estão lutando por cidadania e democracia nesse país.
Quero saudar todas as mulheres, trabalhadoras do campo e da cidade, mulheres negras, mulheres lésbicas, mulheres indígenas, mulheres com deficiência, trabalhadoras domésticas, mulheres artistas, gestoras públicas, enfim todas as mulheres que aqui estão lutando por cidadania e democracia nesse país.
Estarmos aqui é, sem dúvida, um momento político da maior importância para a superação das desigualdades das mulheres e potencialização da nossa autonomia. Esta conferência, espaço próprio da cidadania das mulheres, liga o passado de nossas lutas ao futuro que queremos construir. Pois como afirma a Ministra Iriny Lopes no documento de orientação das conferências das mulheres, "Estas conquistas só foram possíveis graças a participação dos movimentos dos movimentos feministas e da sociedade civil organizada, que trilharam com firmeza os novos caminhos abertos nos últimos anos”. Esse espaço é uma invenção política e autônoma das mulheres como sujeito da sua própria emancipação e da transformação social.
As desigualdades que estamos tratando nesta Conferência de Política para as Mulheres estão estruturadas por relações de gênero, de classe, de raça, de etnia. Isso implica que estamos enfrentando muitas contradições, inclusive as contradições geradas pelas desigualdades entre nós mulheres. A orientação sexual é também uma dimensão que estrutura essas desigualdades, pois vivemos em um sistema capitalista, patriarcal e de dominação heterossexista.
Vou partir do trabalho que é uma questão central no enfrentamento das desigualdades e na construção da autonomia. Em primeiro lugar é preciso ressaltar que ter um trabalho assalariado ou um trabalho independente que gere renda é uma necessidade social e política das mulheres para sua própria manutenção e/ou de sua família e para sua autonomia. Uma vez que na sociedade capitalista, salarial, a forma preponderante de garantir uma renda para sobrevivência é através do emprego e de uma atividade que gere renda. De acordo com a CEPAL "deve-se reconhecer que no mundo de hoje a principal fonte de recursos monetários das pessoas, é o trabalho remunerado, dependente ou independente. Isto se completa ao fato de que por meio do emprego que se tem acesso a outros benefícios, como a proteção social.” (CEPAL, 2010, pg. 30) A realização profissional e a autonomia financeira é uma dimensão, não suficiente, mas fundamental do fortalecimento das mulheres e da sua construção como sujeito.
A situação das mulheres brasileiras no mercado de trabalho é marcada por profundas desigualdades de gênero e raça: enfrentam a desigualdade salarial, o desigual compartilhamento do trabalho reprodutivo e são maioria nos postos de trabalho informais e precários e as mulheres negras são a maioria entre as mulheres nessas condições. A maioria das mulheres no mercado de trabalho ganha um salário mínimo, por isso é muito importante a política de valorização desse salário para a vida das mulheres. Importante também são as políticas que fortaleçam as formas de produção cooperativas e solidárias que apontem para outro modelo de desenvolvimento.
As mulheres no Brasil estão massivamente inseridas no mercado de trabalho. Isso significa que além de mudanças materiais e do ponto de vista objetivo das condições de vida, este processo do crescimento da inserção das mulheres no mercado de trabalho têm impactado do ponto de vista simbólico e subjetivo entre as mulheres brasileiras. Estudo recente realizado pela Fundação Perseu Abramoaponta que para as mulheres brasileiras o ingresso no mercado de trabalho ou a realização de uma atividade remunerada aparece como um dos principais anseios das mulheres e como um dos principais fatores responsáveis pela melhoria nas suas condições de vida.
No entanto a inserção das mulheres no mercado de trabalho está dada por uma tensão entre autonomia econômica e desigualdade. O mercado de trabalho é também um locus central da exploração e, portanto, fundamental para as lutas e tensões entre inserção desigual e transformação social. O que devemos também considerar é que, no contexto da globalização neoliberal, o emprego em condições precárias não é uma "anomalia”, mas é a forma de estruturar as relações de trabalho neste sistema cuja finalidade é produzir e acumular riqueza para quem detém a propriedade dos meios de produção, das instituições financeiras, dos bens da natureza… Isto é, para quem domina o sistema de poder da economia mundial. Segundo dados da CEPAL "as mulheres indígenas e afrodescendentes são as que têm menos oportunidades de acesso ao trabalho, à terra, à educação… (CEPAL, 2010, p. 29), e sabemos que as mulheres negras são as que se encontram majoritariamente nos postos mais precarizados de trabalho. As mulheres são mais pobres que os homens em todos os países da região. A taxa de pobreza das mulheres é 1.15 vez ou mais do que a dos homens. (OIT 2010) Nos estratos mais pobres da população latino-americana estão as mulheres negras e, em grande parte dos países, também as mulheres indígenas. As desigualdades vividas no mercado de trabalho são reproduzidas no acesso à proteção social.
A divisão sexual do trabalho elemento fundamental na formação social capitalista, patriarcal e racista, atribui às mulheres as tarefas domésticas e aos homens as atividades produtivas, mas na prática e desde o início dessa formação, sempre houve mulheres que estiveram tanto na esfera da produção como na esfera da reprodução, enquanto os homens se mantiveram, até hoje, pelo menos enquanto maioria, apenas na esfera da produção. É importante que o trabalho assalariado na produção não se sustentaria sem a sustentação do trabalho doméstico não remunerado e remunerado no âmbito doméstico.
Com a globalização econômica há uma reestruturação da divisão sexual do trabalho na qual se acirra a precarização do trabalho das mulheres e uma reorganização da divisão internacional do trabalho reprodutivo.As mudanças ocorridas na divisão sexual do trabalho não alteraram as bases que a sustentam nem os seus significados.
As mulheres vão para o mercado de trabalho, levando consigo a responsabilidade do trabalho reprodutivo doméstico, o que as coloca cada vez mais em conflito com a forma de organização do tempo social e as lógicas que regem o tempo do trabalho produtivo e o tempo do trabalho reprodutivo são distintas. Há uma desigualdade na vivência do tempo social entre homens e mulheres que está diretamente associada à relação entre trabalho produtivo e trabalho reprodutivo. As mulheres continuam majoritariamente responsáveis pelo trabalho doméstico, em um contexto de ausência de equipamentos públicos de apoio a reprodução.
Os estudos e as narrativas das mulheres evidenciam que uma rede entre mulheres que cotidianamente é acionada no sentido de garantir os deslocamentos das mulheres entre a esfera doméstica e esfera do trabalho remunerado e para a participação política. Sobretudo para as mulheres que têm filhos/as pequenos/as são os arranjos feitos entre mulheres que garantem sua participação no mercado de trabalho e na esfera pública. Há diferenças entre a forma de enfrentar essa situação dependendo da situação da classe das mulheres. É preciso lembrar sempre que a categoria das trabalhadoras domésticas é maior do país, em torno de 7 milhões de trabalhadoras, que fazem um trabalho fundamental de sustentação da vida humana e continuam sem ter acesso a integralidade de seus direitos como trabalhadoras.
Nos contextos urbanos ou rurais da região as atividades do trabalho produtivo e reprodutivo podem apresentar dinâmicas diferenciadas, mas o que em geral pode ser constatado através de estudos e das narrativas das mulheres no cotidiano, é que no contexto das reconfigurações no mundo do trabalho, a divisão sexual do trabalho permanece como uma dimensão que estrutura a reprodução social e a vida cotidiana.
Assim, políticas públicas que assegurem emprego, renda, proteção social devem considerar também o enfretamento dos conflitos no cotidiano entre trabalho produtivo e reprodutivo é uma base fundamental para superação da desigualdade e fortalecimento da autonomia das mulheres. Políticas que liberem o tempo das mulheres, para produzirem sua autonomia financeira, para avançar nos estudos na profissionalização, para ter lazer, para ter prazer e para um tempo para si. A falta de tempo produzida na dinâmica entre trabalho remunerado e trabalho doméstico é uma dimensão de angústia e da pobreza das mulheres. Viver em uma sociedade na qual a vida seja plena de sentido significará sem dúvida poder realizar um trabalho livre da exploração e da dominação, portanto, um trabalho com autonomia livre e de alienação.
A falta de tempo retira das mulheres uma dimensão importante da sua autonomia como sujeito. Pois só as mulheres enfrentam no cotidiano a contradição do tempo entre trabalho produtivo, trabalho reprodutivo e participação política. Mas é justamente nessa tensão entre dominação e resistência que nasce o sujeito e é ai que as mulheres constroem o seu tempo da ação política, para rompercom uma privação que está no fundamento da ordem liberal burguesa da modernidade que foi a privação das mulheres ao espaço público.
Por isso nessa dialética entre desigualdade e autonomia a resistência é um elemento fundamental pois precisamos nos inserir no mercado de trabalho e nos espaços do poder político resistindo para não nos alinharmos ao poder que nos domina nem ao sistema que nos explora e lutando para transformá-los. As mulheres foram historicamente alijadas como sujeitos políticos e como sujeitos do trabalho; e o trabalho doméstico só passou ser conceituado como um trabalho a partir da luta do movimento feminista. O processo histórico de inserção social das mulheres como trabalhadoras, não é o mesmo para as mulheres brancas e negras. Para as mulheres negras, a sua exclusão como classe trabalhadora estava tanto marcada pelas relações de gênero como também pela desigualdade de raça.
Quanto a dimensão da autonomia cultural tão bem analisada no documento de orientação eu gostaria de acrescentar algo sobre a desigualdade das mulheres como sujeitos da produção do conhecimento. A produção do conhecimento que traz a interpretação, a explicação e as definições sobre o mundo, a vida social e a história ainda é um domínio dos homens, e em particular dos homens brancos, heterossexuais e das classes dominantes. Nós temos que garantir políticas públicas que assegurem as mulheres acesso e condições para se desenvolverem como sujeitos da produção do conhecimento, e aqui quero colocar ênfase, nas mulheres negras e indígenas. Essa é uma dimensão fundamental do poder simbólico. É, ainda, são necessárias políticas públicas de valorização, reconhecimento e financiamento da produção do conhecimento e dos saberes das mulheres nos espaços criados por nós mesmas.
As mulheres negras foram sujeitos fundamentais nos movimentos de libertação da população negra, e esta luta antecede a muitas outras, no sentido da constituição das mulheres como sujeitos. De acordo com Jurema Werneck, a participação das mulheres negras em várias dimensões da vida social deve ser considerada a partir das origens africanas, as quais vão constituir um legado fundamental a ser considerado como parte da formação histórica e das expressões plurais das mulheres negras como sujeito no "Novo Mundo”. As mulheres para se afirmarem como sujeitos têm que escrever a história pelo avesso, descobrindo tudo aquilo que os dominadores deixaram escondido ou que eliminaram do processo. Como fortalecer os sujeitos e suas lutas pela igualdade e para a transformação social sem história e sem memória.
Sobre a dimensão da autonomia pessoal gostaria também de reforçar enfrentamento da violência e doméstica e sexual como caminho incontornável para cidadania e emancipação das mulheres. Essa violência que não só leva a morte, mas que no cotidiano, impõe sofrimentos físicos e psíquicos, que destrói a auto-estima, produz o medo e cerceia a liberdade de ir e vir. Os mecanismos públicos de defesa e prevenção dessa violência devem também considerar a dimensão objetiva da autonomia financeira das mulheres. Não só as mulheres que não tem renda própria são vítimas da violência, essa não é uma relação mecânica ou automática, mas com certeza ter uma renda própria se coloca não só como um direito, mas como uma necessidade incontornável para o enfrentamento da violência.
Quero também colocar uma ênfase na necessidade de políticas que enfrentem a violência contra as mulheres lésbicas, pelo fato de serem lésbicas. É uma violência cotidiana que fere; que quer eliminar a expressão afetiva entre mulheres lésbicas, que visa recalcar uma dimensão fundamental para a plenitude do ser humano que é a vivência da relação amorosa sexual entre mulheres. É uma violência que exclui; que mata; que produz sofrimentos físicos e psíquicos. Lutar contra essa violência é uma luta de todas nós que defendemos a emancipação e a cidadania das mulheres. Essa é uma luta libertária e imprescindível para garantia dos direitos humanos.
As mulheres querem desejam e têm o direito de ter filhos e criá-los com dignidade, elas também querem, desejam e têm o direito de evitar a gravidez. As mulheres querem, desejam e ainda não têm legalmente o direito de interromper uma gravidez indesejada. Isso fere a autonomia das mulheres no direito ao seu próprio corpo. Quero lembrar que o Estado brasileiro é laico e não pode definir suas políticas públicas a partir de princípios religiosos. Quero também reforçar a importância de uma Política de Assistência Integral à Saúde das Mulheres dentro do Sistema Único de Saúde. Que deve ser cada vez mais público e cada vez mais qualificado.
Temos que pensar que a autonomia é um processo, conflituoso, que passa por questões objetivas e subjetivas.A autonomia depende de fatores materiais bem concretos, isto é bem objetivos, mas a dimensão subjetiva é também fundamental, uma vez que compreende também um processo interior de aquisições e superação da dominação e exploração, capitalista, patriarcal e racista e heterossexista. Esse processo pode ser analisado, a partir do contexto concreto de inserção das mulheres considerando ainda a história do país e as heranças da colonização que ainda permeiam a vida social, as relações sociais, e a construção das identidades dos sujeitos. A relação entre superação da desigualdade e a construção da autonomia das mulheres é um processo dialético, contraditório.
O Brasil vive um momento histórico do ponto de vista de seu desenvolvimento econômico e de sua inserção como liderança na dinâmica econômica e política global. Na última década, o País vem redefinindo seu lugar na economia mundial e ampliando seus níveis de crescimento econômico e perspectivas de desenvolvimento. Mas o Brasil é ainda um dos países mais desiguais na América Latina e no mundo.
A dinâmica entre crescimento econômico e superação das desigualdades está colocada como uma atualíssima e premente questão na agenda pública do País, estratégica para incidir sobre os rumos do desenvolvimento brasileiro. A eleição de uma mulher presidenta do Brasil, Dilma Rousseff, com uma história política própria, sujeito da luta contra o regime autoritário, é um fato inédito na história do País, representando uma ruptura simbólica de grande relevância com a perspectiva tradicional e patriarcal de acesso ao poder. Mas como falou a Presidenta Dilma na ONU, o fato de ela ter sido eleita presidenta não significa a igualdade para as mulheres no Brasil. Ter uma mulher na presidência impõe como questão a prioridade da promoção dos direitos das mulheres.
Nesse contexto temos condições de avançar na cidadania das mulheres. Quero saudar nesse momento a afirmação da Presidenta Dilma, na Abertura desta 3ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres, sobre a permanência da Secretária de Políticas para Mulheres. Suas palavras foram contundentes na afirmação dessa questão. Temos certeza e por isso lutaremos que essa permanência se estenda também para a Secretária de Promoção da Igualdade Racial.
*Maria Betânia Ávila, representando o SOS Corpo Instituto Feminista para a Democracia e a Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB) – conferência apresentada no Painel 3 da 3ª Conferência Nacional de Políticas para Mulheres " Enfrentamento das Desigualdades e a Autonomia das Mulheres", Brasília, 14 de dezembro de 2011.