O repórter viveu, durante uma semana, o drama vivido por seu Sindicato. Acompanhou, dia a dia, as angústias de seus companheiros, vivendo ele próprio essas mesmas angústias, recolheu informações e fez reportagens dos acontecimentos.

Aqui, neste relato, ele é também personagem, porque parte integrante da tragédia que atingiu toda uma classe. O repórter Randau Marques fala por todos nós. A sua é a nossa voz.

À espera de um toque de campainha e de outros ruídos consequentes não conseguia dormir desde que os primeiros colegas começaram a desaparecer das redações. Essa insônia transformou-se em medo naquela noite de sexta-feira, dia 24, quando várias viaturas estacionaram em pontos estratégicos, ao redor do prédio do jornal, e circulou a notícia de várias prisões. Em pânico, choque e impotência na noite seguinte, sábado, quando começaram a surgir as primeiras versões sobre a morte de um companheiro. Domingo, logo cedo, fui designado para fazer a cobertura da morte de Vladimir Herzog, e acabei recobrando a voragem e o sangue-frio: era a oportunidade de utilizar a máquina de escrever contra a violência e o terror que dominavam a classe, de apurar, com a isenção e neutralidade profissionais do repórter, a extensão da tragédia.

E a extensão da tragédia, percebi logo, não caberia no magro espaço conquistado pela Editaria. Era preciso utilizá-lo melhor, definindo as posições adotadas por este órgão estranho que pela primeira vez se erguia, corajoso, para defender uma classe que até então dependia dos gráficos até para obter reajuste salarial: o Sindicato.

Encontro um Gastão Thomaz de Almeida abatido, limpando o mural do Sindicato com lágrimas nos olhos, para logo em seguida afixar a faixa negra com o nome de Vlado em seu centro. Estávamos na tarde de domingo, e como se houvesse um acordo tácito, colegas de todas as redações começavam a chegar ao Sindicato. Todos em silêncio, apreensivos, cumprimentado-se com discretas inclinações da cabeça e solidarizando-se com breves apertos de mão, tapinhas nas costas, e nenhuma frase. Não havia o que dizer, o que fazer, chegava-se a pensar que aquela afluência maciça e instintiva à rua Rego Freitas era um despropósito.

Mais tarde, percebi que aquele foi o momento de transição entre a fase de “espera” passiva e o da “vigília” ativa.

Toda a diretoria estava reunida ao redor de cinzeiros transbordantes e de imensas garrafas de café vazias. Noto que Audálio está pálido, fala com dificuldade e se movimenta com lentidão – e percebo, com surpresa, que estou agindo da mesma forma, assim como a maioria. Com Vasco e Valter Silva tomo consciência da situação, o que havia sido feito e o que era plano fazer. Com Audálio, colho as primeiras informações (e, ao invés de escrevê-las como bom repórter, discuto-as). O clima de expectativa aumenta de minuto a minuto faz calor, todos estão tensos, suando muito.

Os deputados federais e estaduais começam a chegar, trazendo informações novas, temores e uma solidariedade gratificante: à medida em que cresce o número de colegas, aumenta o sentimento de união. Uma colega da Folha me observa rabiscando alguns dados, pára de chorar, apanha caneta e papel e diz que vai me ajudar, que estava se sentindo muito solitária e assustada. Pouco depois, recupera o bom humor e a segurança, e chega a dar risadas divertidas ao atender a uma ligação no que batizou “telefone-gravador” do Sindicato, talvez por causa do seu sincopado chiado.

Deixo o Sindicato, vou para o Hospital Albert Einstein. Clarice mostra-se controlada, mas só fica assim por pouco tempo. A sua primeira crise nervosa, apuro, aconteceu quando soube que o hospital não permitiria que se fizesse um segundo exame do corpo, como ela pretendia. Clarice chegou a pensar em levar o corpo para sua casa, para possibilitar o exame, mas isso acabou não se concretizando: dizia-se que um médico tinha concordado em fazer a autópsia, mas já havia a oficial, que acabou sendo considerada definitiva. Clarice mal vira o corpo do marido no IML, chorava muito. Todos nós, percebo, chorávamos muito.

Volto ao Sindicato a tempo de saber que Joezil Barros, falando com um ex-presidente da Federação Nacional dos Jornalistas que atualmente dirige, admite que os jornalistas brasileiros estão de luto oficial. É a abertura de uma retranca que, ali mesmo, escrevo, reproduzindo a intenção dos deputados Alberto Goldman, Airton Soares e Freitas Nobre de se pronunciarem publicamente sobre as circunstâncias em que Vladimir morreu. Um colega exaltado, enquanto isso, fala em voz alta que é contra a presença maciça dos jornalistas no enterro de Vlado, no dia seguinte. Audálio Dantas, firme, lhe diz que não há nada que impeça a presença de todos no cemitério de Vila Borges: “Nós vamos prestar apenas uma homenagem, e que isso fique bem claro, apenas uma homenagem, ao colega desaparecido. E não acredito que nossa dor seja desrespeitada por quem quer que seja, mesmo porque não permitiremos que isso aconteça”.

O clima, que horas antes era de perplexidade, agora – com as posições serenas que essa diretoria toma ganha contornos corajosos e decididos. Todos os presentes permanecem tensos, ainda há crises de choro, mas a espontaneidade e clareza das medidas tomadas pelo Sindicato (luto oficial por três dias, presença em massa ao enterro e expedição de uma nota oficial que não perde, mas ganha dignidade em seu comedimento e denúncia) leva uma autoridade a refletir: “Os jornalistas não estão em crise, e sim de luto, em torno da memória do colega morto. Não assumem uma crise que não criaram, assim como não se intimidam diante de um cadáver”. Anoto as declarações, vou para a redação, onde me espera o mesmo clima de ansiedade. Os 16 anos de carreira de Vlado, o seu corpo sempre magro e sério, saltam com impacto de velhos recortes e fotos amarelecidas de uma pasta do arquivo. No recorte mais recente, publicado nos primeiros dias de outubro, releio o secretário da Cultura, Ciência e Tecnologia, José Mindlin, dizendo que a equipe de jornalismo da TV-Cultura lhe parece séria e objetiva, não merecendo as suspeitas e críticas que tinham sido levantadas. Sobre o chefe do seu departamento de jornalismo, garantia: “O jornalista Vladimir Herzog é um sujeito sério, que merece a confiança da Fundação Padre Anchieta”. Quinze dias depois, naquela sexta-feira, agentes de segurança foram à TV-Cultura; procurar Vlado.

Não sobra muito espaço para noticiar que nessa noite de sexta-feira também foi presa Egger Moellward, mulher do jornalista George Duque Estrada, e que além deles, continuam presos no II Exército os jornalistas Sérgio Gomes, Marinilda Marchi, Paulo Sérgio Markum, Ricardo de Morais Monteiro, Luiz Paulo da Costa, Anthony de Christo, Frederico Pessoa da Silva, Rodolfo Konder e Luiz Pola Galé. As duas notas oficiais roubam a maior parte das páginas. Todas as atenções da redação voltam-se para a editoria. Há filas para ler as matérias os olhinhos, legendas e títulos, e – apesar da dificuldade que todos enfrentam ao escrever sobre os seus problemas – o fechamento é rápido, eficiente.

Volto ao velório, e só o deixo ao ter certeza de que a ostensividade do policiamento não ultrapassará os limites da intimidação psicológica. Segunda, logo cedo, estou de volta. O pátio do hospital está repleto, anoto Raul Cortez e Juca de Oliveira presentes, fazendo declarações de solidariedade em nome dos artistas e empresários teatrais; acompanho Franco Montoro, surpreendo Dom Evaristo Arns orando, em silêncio, na frente do caixão coberto pela bandeira do Sindicato; tento entrarem contato com a Chevrah Kadisha, não consigo; Paulo Markum entra no pátio, extremamente pálido, mancando ligeiramente, dizendo que está sendo bem tratado, e que os outros colegas que foram autorizados a sair do DOI ainda devem estar trocando de roupa em suas casas e que logo chegarão; uma colega desmaia ao vê-lo, se recupera e chora muito, levo-a à cantina, a água acabou, “serve cerveja?”, ela toma um gole e se recupera. Chegam mais deputados e às dez horas há mais de 600 pessoas presentes. Várias emissoras de tevê filmam o pátio, pergunto a um cinegrafista quantos colegas seus, de câmera na mão ele não conhece, e ele aponta quatro todos com potentes e sofisticados aparelhos, tentando aparentar naturalidade. Um protesta, quando «passou a» ser fotografado, a pedidos, e logo foi embora. A saída é lenta, e o representante da Chevrah Kadisha (um homem baixo e gordo, que provocou a indignação de várias senhoras israelitas da sua conduta durante o enterro) a frente do carro funerário, quase saltando, ao lado do cantor Paulo Novak. Do chapadão do Morumbi aos subúrbios do Butantã, os 300 carros do cortejo passam por ruas secundárias, sem despertar atenção. Na Raposo Tavares, os caminhões quebram a sua integridade, dispersando a metade dos acompanhantes. Um guarda rodoviário interrompe o trânsito para todos poderem entrar na estrada de terra que dá acesso ao Cemitério Israelita do Butantã, onde, logo na chegada, vários cinegrafistas desconhecido filmam a descida apressado do caixão e o seu ainda mais apressado sepultamento. O auxiliar baixo e gordo da Chevrah Kadisha insistiu, quase gritando, para que ele fosse baixado à cova e, com uma pá, começou a sepulta-lo, sem respeitar a tradição de que essa tarefa compete aos familiares do morto.

Sob o sol forte, entrevisto velhos senhores judeus até ficar certo de que o ritual havia sido desrespeitado. Clarice protesta, seu filho Ivo olha fixamente para o caixão, afasto-o e um rapaz de solidéu branco ajoelha e o abraça. George Duque Estrada, Rodolfo Konder e Anthony de Christo choram juntos, acima da quadra 64. Orestes Quércia chega, declara-se revoltado; Franco Montoro promete a Clarice fazer todo o possível para que “sejam apurados todos os fatos que culminaram com esse trágico desfecho”, e eu acabo sendo, enfiado a força dentro de um carro, por um colega assustado com minha obstinação de escrever chorando.

A cobertura continua, entro em contato com a Chevrah Kadisha e consigo obter detalhes sobre os costumes religiosos dessa comunidade de 7 mil pessoas a que assiste em São Paulo. Volto ao jornal; escrevo a matéria sobre o enterro e retorno ao Sindicato. O clima, mais do que nunca, é de união: todos aguardam o retorno dos diretores, convocados pelo II Exército. Não há,de novo, nenhuma reunião marcada, mas a partir das seis horas da tarde o seu auditório fica superlotado e, ao que tudo indica, as redações vazias. Audálio Dantas, ao chegar, resolve dar uma satisfação aos jornalistas que o esperavam pacientemente.

Relata, após deixar claro que todos estavam reunidos informalmente, o ambiente de respeito e cortesia que encontrou no II Exército. Os 300 editores, repórteres, chefes de telejornalismo, redatores e radialistas presentes o escutam em silêncio. Depois, começam a sugerir idéias e medidas que o Sindicato poderia adotar, se julgasse necessário, para assegurar a integridade física da classe. Tais sugestões são muito aplaudidas, principalmente a que propõe uma cerimônia ecumênica em memória de Vladimir Herzog.

Pergunto a Audálio Dantas onde ele conseguiu tanta serenidade, e ele, que na véspera estava nervoso, cansado, recém-chegado de Presidente Prudente, responde:

– Na coragem e maturidade que a classe demonstrou possuir hoje, ao não permitir que sua homenagem ao Vlado fosse desvirtuada ou conspurcada.

Vasco, enquanto isso, lembra a um grupo de estudantes mais exaltados, que queriam publicar um manifesto público chamando certo colunista de fascista, dedo-duro e co-autor da morte de seu professor Vlado, que “o Sindicato não permitirá que um de seus associados seja difamado, e defenderá o seu direito de exprimir o que pensa livremente a qualquer momento em que isso se fizer necessário”.

Audálio lembra que a união de todos é um fato irreversível: até ex-diretores do Sindicato estão presentes, solidários com as posições assumidas por seus sucessores em defesa da categoria. A reunião continua; e entre as dezenas de sugestões apresentadas, uma é encampada imediatamente: dar o nome de Vlado àquele auditório lotado em sua homenagem. Enquanto começam a ser lidas as primeiras manifestações de solidariedade, a diretoria reúne-se para elaborar a nota oficial do dia, comunicando os resultados da reunião com os generais Ferreira Marques, Ariel Pacca e coronel Paz. O ambiente, apesar de continuar tenso, pouco a pouco deixa todos à vontade. As perspectivas, apesar de continuarem imprevisíveis e negras, estão sofrendo ligeira melhoria: afinal, segundo informações das autoridades, os colegas presos já podem ser visitados às terças, quintas e sábados, em grupos de seis pessoas por dia, e até então eles só podiam receber um visitante por semana teoricamente (a prolongada incomunicabilidade de muitos ainda era intransponível).

Profissionais que não se viam há anos encontraram-se nessa noite, e todos chegavam à conclusão de que o mecanismo ou processo indutor de tal reencontro só podia ser o instinto de sobrevivência. Anotava todos esses pequenos casos, diálogos, reações e comportamento – talvez tendo em vista a presente edição de Unidade, já que a cobertura a que me propunha fazer, era inteiramente factual e objetiva. Por instinto, ou não, os velhos ausentes se mostravam preocupados em saber sua situação sindical, tentando pagar inutilmente as mensalidade atrasadas: nessa segunda-feira,não houve expediente burocrático e o/dia terminou com o comunicado oficial e a palavra final de seu presidente, destacando o clima de serenidade em que havia se desenvolvido o que demonstrava o alto senso de equilíbrio de seus participantes:

– Todos devem estar certos de que esta diretoria não vem poupando esforços para assistir aos colegas detidos, que, para todos nós, são e continuam sendo, conforme afirmamos às autoridades que nos receberam esta tarde, apenas jornalistas, nada mais do que isso. E, para defendê-los, não hesitaremos em ir até as últimas consequëncias, sempre dentro da legalidade e da ordem.

Pela primeira vez, em mais de vinte dias, o pesadelo dos ruídos prenunciadores de violência não se repetiu, e não foi necessário recorrer à leitura de livros inteiros para conciliar o sono: depois do fechamento da edição, o repórter descansou, e no dia seguinte apurou que o mesmo acontecera à maioria dos colegas de redação. O episódio Herzog, como os editoriais de alguns jornais já chamavam aquela sucessão de dias de pânico e dor, estava sendo enfrentado “com frieza e serenidade, o que não implica em que a dor e a insegurança tenham perdido a sua brutal intensidade”, comentou Audálio, no começo da tarde de terça-feira. O jornal publicava o apelo de Yara Peres Konder e Maria Del Carmen G. Andrade de Christo, encaminhado às autoridades, em que elas – contando com a assinatura solidária de Clarice Herzog – se confessavam “angustiadas com a sorte de nossos maridos e agora, após a morte do jornalista Vladimir Herzog, ocorrida dentro do DOI, nossa angústia se transforma em desespero. Após essa morte ficou-nos claro e provado que nossos companheiros não têm nenhuma garantia. Portanto, através deste documento, queremos tornar público nosso desespero e responsabilizar por tudo que possa acontecer contra a integridade física e moral de nossos familiares, os órgãos que os mantêm sob sua custódia”.

Eram estas as palavras, eram estes os fatos, nesses dias de outubro, em que os editoriais das empresas jornalísticas condenavam os “porões da administração, de corrupção, de desafio à ordem e de afrontamento à lei”; em que os políticos multiplicavam os seus pronunciamentos contra as arbitrariedades sofridas pela classe; em que os estudantes eram alvos de severa vigilância – o que, nessa terça-feira, era muito comentado por todos. No Sindicato, à noite, nova reunião se improvisa, informal e aberta a todos os interessados. Para tranquilizar os que temiam a má interpretação dessa concentração de profissionais em torno de seu Sindicato, Audálio Dantas,- sempre com o conjunto esportivo azul, a voz pausada e contida – declara:

– Toda a vigília e atuação firme e serena do Sindicato dos Jornalistas se restringe à defesa de uma classe que foi atingida de maneira brutal pela morte de um de seus integrantes, e ao propósito de não permitir que se explore, ou que se tire proveito, da situação dolorosa e angustiante que a imprensa paulista vive.

A sugestão da cerimônia ecumênica em memória de Vlado havia sido encampada pela diretoria do Sindicato. Começou, então, uma lenta e angustiante contagem regressiva: ela seria promovida às 16 horas de sexta-feira, na Catedral Metropolitana da Sé, e temia-se pelo seu êxito e normalidade, principalmente depois de agressivas declarações feitas pelo secretário da Segurança Pública a classe, rebatidas com moderação pelo presidente do Sindicato.

– Nesse momento, quem vive uma crise é uma categoria representada legalmente por este Sindicato, que lamenta, mais do que ninguém, essa trágica ocorrência, e não está disposto – como vem demonstrando claramente desde o começo desse chocante episódio – a afastar-se dos estritos limites da lei. Não aceitaremos qualquer provocação e nem toleraremos qualquer agitação em nenhum momento, principalmente durante o culto ecumênico em memória de Vladimir Herzog.

Todas as atenções convergiam para Audálio Dantas, principalmente a do repórter (motivo, talvez, desse depoimento enfocar o seu comportamento ou atuação permanentemente – o que não significa que os seus colegas de diretoria tenham tido menor empenho ou brilhantismo naquela última semana de outubro: Audálio Dantas era o lúcido, o porta-voz de um colegiado formado por eles e por todos os colegas em vigília), mas o Sindicato já havia voltado a funcionar normalmente. Todos estavam preocupados em fazer alguma coisa de útil, e nessa noite de quarta-feira foram formadas comissões para o levantamento de fundos destinados ao custeio dos anúncios fúnebres, convites para a cerimônia ecumênica e outras despesas. As salas da diretoria e secretaria, assim como o auditório Vladimir Herzog, mantinham-se permanentemente cheios, de manhã à noite.

Nessa manhã de quarta-feira, Audálio Dantas compareceu ao QG do II Exército, junto com o jornalista Ruy Mesquita, acompanhando a apresentação de Marco Antonio Rocha às autoridades, e soube que Paulo Sérgio Markum, Rodolfo Konder, George Duque Estrada e Anthony de Christo estavam concluindo os seus depoimentos e seriam liberados imediatamente. À noite, mais uma vez deixou clara a posição da classe, em relação ao culto ecumênico:

– Ir até o sacrifício, sempre e rigorosamente no limite da lei, em defesa da dignidade humana, essencialmente voltados para a defesa dos direitos dos profissionais de imprensa. E, nessa hora em que pretendemos homenagear o colega morto, é necessário que isso fique bem claro: não aceitamos provocações de qualquer área. Pedimos que respeitem a memória de Vladimir Herzog.

Antes do fim da reunião (como sempre, o auditório estava lotado) houve um ligeiro incidente, quando oito desconhecidos subiram à sede do Sindicato, para inspecionar, talvez, suas instalações. Todos os correspondentes de jornais estrangeiros e agências internacionais comunicaram o fato, imediatamente, às suas redações, e antes que a visita terminasse, sem incidentes – e sem ser notada pela maioria do auditório – já começava a circular na Europa: a classe não aceitava intimidações, resumiu o correspondente do Washington Post em sua mensagem urgente.

O mês ia chegando ao fim, e as tensões se avolumavam; todos estavam intranquilos, porém decididos a comparecer ao culto ecumênico. Os parentes dos colegas detidos iam diariamente ao Sindicato, eu ouvia as suas, queixas e apreensões, e quase sempre deixava de publicá-las: elas poderiam repercutir negativamente, aconselhavam alguns diretores. Nesses dias, como definiu um colega, a gente mudava de opinião 15 vezes por dia, em busca da lucidez, e acabava chegando a um consenso sobre o que e como publicar, após extenuantes raciocínios, diálogos e ensaios. Nessa quinta-feira, todas as redações estavam, mais do que nunca, em vigília, todos atentos à chegada dos telegramas de Brasília, ao desenrolar das manobras parlamentares. No Sindicato, o seu presidente afirmou, tarde da noite.

Os jornalistas paulistas passaram uma semana de crise, luto e perplexidade. E, no momento em que se reúnem para desabafar a sua mágoa, homenageando a memória do colega morto, estão firmemente dispostos a responsabilizar perante a Nação a quem ousar desrespeitar a sua dor ou explorar o culto ecumênico. A memória de Vladimir Herzog não deve ser transformada em álibi de maquinações ou manobras excusas, e isso constitui em ponto de honra da classe, que não só em São Paulo, mas em todo país, soube superar tamanha e tão trágica perda com serenidade e equilíbrio, mesmo na condição de presa de violentos sentimentos de pesar e intranquilidade. Cada um dos participantes do culto ecumênico será um guardião dos desejos de paz e fraternidade, de segurança integral e de respeito à dignidade que todo homem merece (mostrava-se tenso de novo, mas as frases fluíam com firmeza e segurança).

Vários colegas continuavam sugerindo a eliminação de determinados jornalistas do quadro de sócios do Sindicato, e Audálio ponderava que esta não era a questão fundamental no momento, deixando claro, por outro lado: “Repudiamos aqueles que traem os seus colegas, fazendo o papel de cavalos de aluguei não se sabe a quem”. Continuava a luta: “Somos homens com direitos e aspirações à liberdade; jornalistas procurando exercer o dever de fornecer informações honestas e constantes. Estamos conscientes de que todos os nossos passos estão sendo seguidos, mas estes são sempre firmes, dignos e dentro da lei, que nós defendemos…”

E um dos momentos decisivos dessa luta foi o comportamento da classe no dia 31, pondo fim aos temores de outubro, iniciando uma nova fase de reivindicações, segundo Audálio Dantas. Ou uma nova etapa na luta de repúdio à violência e a reafirmação dos direitos humanos, segundo o cardeal Dom Paulo Evaristo Arns: “Deus rios conclama para uma luta pacífica e perseverante, rumo a uma geração que terá como símbolos os filhos de Vlado, sua mulher e sua mãe”. Ou, segundo o rabino Henry I Sobel (que dois dias antes me havia confirmado: Vladimir Herzog não foi sepultado fora do cemitério ou à beira de seus muros, pois não cometeu nenhum crime contra ninguém, muito menos contra si próprio), era chegado o tempo de se guardar a luz que Vlado tinha nos olhos “e um coração digno de ser lembrado, uma mente digna de ser recordada e uma língua que nem a morte consegue apagar”.

Oito mil pessoas puderam cantar, finalmente certos de que o salmo 37 e o seu versículo 10 reproduziam a verdade, e que ninguém desconheceria o seu sábio e tranquilizador significado:

E as nossas Angústias, Senhor, estão todas na vossa presença.

Nenhum gemido de ninguém na terra será oculto aos olhos do Senhor.

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