Foram momentos de "loucura", dias de vertigem durante os quais era muito difícil raciocinar com base nos padrões usuais da política brasileira. Naquele ano de 1984, a contagiante festa cívica fez com que acreditássemos todos que o golpe de misericórdia na ditadura militar estava ao alcance de nossas mãos.

Situações assim não são corriqueiras, são encruzilhadas históricas muito especiais.

Foram momentos de "loucura", dias de vertigem durante os quais era muito difícil raciocinar com base nos padrões usuais da política brasileira. Naquele ano de 1984, a contagiante festa cívica fez com que acreditássemos todos que o golpe de misericórdia na ditadura militar estava ao alcance de nossas mãos.

Situações assim não são corriqueiras, são encruzilhadas históricas muito especiais.

Um acontecimento como a campanha das Diretas Já não pode ser compreendido senão como algo que veio à luz numa conjuntura crítica, num estuário de diferentes crises sem as quais ele não teria sido possível.

Enormes concentrações – que chocaram os donos do poder e emocionaram toda uma nação havia tanto tempo sufocada – não surgiriam apenas do desejo das oposições de confrontação com o regime autoritário. A campanha das Diretas Já existiu porque os anos que a antecederam assistiram a uma revolução subterrânea na economia, na sociedade e na política brasileiras.

As Diretas foram, decerto, uma bandeira eminentemente política, uma palavra de ordem simples e contundente. Propunham a ruptura com um dos principais mecanismos da estratégia de liberalização adotada pelo regime militar, isto é, a eleição indireta do presidente da República, por meio de um Colégio Eleitoral com maioria controlada pelo governo.

Mas é possível que tal bandeira não encontrasse eco se não estivessem àquela altura maturados os atores políticos da sociedade, forças que, mesmo distantes dos partidos e da política parlamentar ou administrativa, souberam organizar-se de modo autônomo e assumir papel de protagonistas na construção da democracia brasileira.

Mas, antes que acompanhemos os passos desses principais atores, é importante não perder de vista que, apesar do caráter centralmente político da campanha, contribuíram para a catarse coletiva de 1984 pelo menos dois elementos estruturais que naquele momento seguiam seu curso na sociedade brasileira.

Em primeiro lugar, a crise do modelo de desenvolvimento econômico e do tipo de Estado a ele associado. O fenômeno, à época chamado de "crise do milagre brasileiro", atingiu o bolso, as condições de vida, a auto-estima, enfim, o cotidiano das pessoas.

Desde meados dos anos 1970 e, principalmente, nos primeiros anos da década de 1980, a economia brasileira entrara em declínio. Das taxas espantosas de crescimento verificadas nos anos de chumbo da ditadura (11%, 12% e até 13,6% ao ano entre 1968 e 1974) passamos à depressão econômica (com queda do Produto Interno Bruto – PIB – em 1,6% em 1981 e 3,2% em 1983). Dos baixos índices de inflação (20%, 15% ou até 5,5% ao ano, nos primeiros anos da década de 1970) fomos à explosão inflacionária (quase 100% ao ano em 1981 e 1982, e 200% em 1983). A estagnação econômica combinou-se com a inflação elevada.

A crise do desenvolvimentismo e do Estado desenvolvimentista foi um processo complexo associado a mudanças profundas no capitalismo internacional, fatos dos quais é impossível tratar neste espaço. Mas uma de suas implicações políticas mais importantes foi a de que, a partir da moratória mexicana no pagamento da dívida externa, em 1982, os organismos multilaterais de financiamento, como o Banco Mundial (Bird) e o Fundo Monetário Internacional (FMI), passaram a impor aos países devedores uma receita de "ajuste" interno baseada em princípios "neoliberais", como por exemplo o controle da inflação mediante o enxugamento da base monetária, o que redundou em arrocho salarial. As Cartas de Intenções firmadas entre o governo brasileiro e o FMI tiveram impactos importantes sobre a sucessão do presidente João Figueiredo.

Se recordarmos que as justificativas para o Golpe de 1964 haviam sido, entre outras, a "agitação política" e a desorganização econômica, poderemos compreender que a recessão e a volta da inflação, naquele início da década de 1980, prenunciavam o desgaste do importante apoio dado ao regime militar pelas elites econômicas e pelos setores médios.

Em segundo lugar, um elemento sem o qual a crise de 1984 seria ininteligível foi o chamado ressurgimento da sociedade civil. Diversos estudos já demonstraram que, durante a década de 1970, a presença de militantes de extração católica, ligados a organizações de esquerda e de sindicalistas, privados dos canais usuais de expressão por causa da repressão política, acabou contribuindo para o desenvolvimento de uma enorme rede de movimentos populares urbanos. Fora da "grande política", tais militantes tomaram como trincheira de luta espaços como fábricas, associações de moradores, movimentos por moradia, contra o aumento do custo de vida, movimento estudantil etc., especialmente nos centros urbanos. Eles mobilizaram pessoas até então sem participação política ativa, ajudaram a organizar instituições populares e a confrontar o poder público em nível local.

Não apenas o deslocamento de militantes, mas as profundas mudanças da cultura política e da estrutura econômica (ocorridas nos anos 1970) possibilitaram a emergência de tais movimentos populares, bem como do chamado "novo sindicalismo", de caráter mais combativo, que teve seu epicentro nas greves do ABC e da capital paulista do final dos anos 1970 e início da década de 1980, além de um forte incremento do associativismo e do sindicalismo de classe média.

Quando se iniciaram os anos 1980, a sociedade civil brasileira contava com um novo padrão organizacional, com uma densidade política diferenciada e com uma disposição militante de caráter autônomo que contrastava com as vinculações populistas do período pré-1964. Nesse sentido, a fundação do Partido dos Trabalhadores (PT) em 1980 – espécie de efeito indesejado da reforma partidária de 1979, como se verá – significou a construção de uma instituição representativa para a qual convergiram esses novos movimentos populares e sindicais, e à qual se agregaram intelectuais e militantes cristãos, numa tentativa de oferecer um canal partidário institucional aos "de baixo".

Foram sobretudo esses setores previamente mobilizados em movimentos, sindicatos, organizações de classe média, comunidades de base da Igreja Católica e no PT que responderam de modo organizado e sistemático à palavra de ordem Diretas Já.

Além desses dois fatores estruturais, há um terceiro elemento, de ordem político-institucional, que ajudou a compor o cenário em meio ao qual emergiu e desenrolou-se a campanha pelo restabelecimento de eleições diretas para presidente. Era a própria estratégia desencadeada pelos articuladores políticos do regime para a transição, que visava mantê-la, tanto quanto possível, sob controle. Essa estratégia consubstanciava-se num jogo de concessões e de restrições alternadas, que envolvia normatizações referentes aos partidos, aos processos eleitorais e, especialmente, à composição do Colégio Eleitoral que elegeria o presidente. Se as Diretas ganhassem, tal estratégia iria por água abaixo.

Sob o peso de uma crise econômica que combinava estagnação e inflação; associada ao despontar da crise do modelo de desenvolvimento que embalara o crescimento do país desde o pós-guerra; sob o impacto de uma ruidosa erupção da sociedade civil e confrontando a estratégia do regime militar de transição "lenta, gradual e segura", a campanha das Diretas Já desafiou a ditadura e amedrontou a oposição consentida. Como veremos, se foi derrotada em seu objetivo imediato, mesmo assim impôs à democratização brasileira uma nova pauta política.

Extraído do livro Diretas Já – Um grito preso na garganta, da Coleção História do Povo Brasileiro, editada pela Editora Fundação Perseu Abramo, 2003
 

Publicado no Portal da FPA em 2003

 

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