Carta de Audálio Dantas, presidente do sindicato dos jornalistas

A voz sem ser voz, sendo pranto.
Vinha de longe,
de seiscentos quilômetros.
A voz, sendo pranto,
anunciava a morte.
Morreu um homem, dizia o pranto
pelo telefone. O sono por muitas
noites reprimido e naquela noite
de sábado mal iniciado,
foi brutalmente interrompido.
No quarto do hotel,
acordado, comecei a viver
um pesadelo.

Eu estava em Presidente Prudente, em cumprimento de um compromisso assumido há mais de um mês: falar aos estudantes da Associação Prudentina de Educação e Cultura. À noite, depois da palestra, reuni-me com um grupo de jornalistas locais, trocamos déias sobre os problemas de nossa profissão. Manifestei-lhes a minha preocupação pelas prisões de jornalistas que vinham ocorrendo desde começo do mês.

Da prisão do último, Vladimir Herzog, na manhã daquele dia de sábado, 25 de outubro, eu ainda não sabia.

Viria a saber de sua morte, poucas horas depois, por um telefonema recebido de São Paulo. O medo, um medo imenso, humano medo invadiu o quarto do hotel. E, logo, uma esperança, espantalho do medo: a notícia, dada em pranto, podia ser o resultado de um medo muito maior esparramado pelas redações desde o início de uma nova série de prisões envolvendo jornalistas. Essa esperança era baseada, também, numa preocupação profissional: toda notícia carece de confirmação.

A confirmação viria, desgraçadamente, logo depois, em outros telefonemas. O jornalista Vladimir Herzog estava morto.

Minha presença se fazia necessária, o mais urgente possível. A passagem de ônibus marcada para a tarde de domingo, restava no bolso, inútil. Era preciso viajar depressa. Diante de mim, depois de uma madrugada consumida em reflexões sobre a tragédia, amanheceu o primeiro dia da semana mais conturbada de minha vida.

O Sindicato, os colegas de Vladimir, a mulher e os filhos de Vladimir, a mãe de Vladimir. Medo, tensão, dor e revolta. O Sindicato. Todos os sentimentos se encontraram aqui e, acima de todos, prevaleceu aquele que mais enobrece o homem – o da solidariedade.

A solidariedade que se sobrepõe ao medo, ao ódio, ao desespero, foi o traço de união. Vieram um, dois, cem, mil jornalistas – todos como uma só pessoa, uma só consciência. E a essa consciência juntaram-se outras, falando pelas vozes de estudantes, professores, advogados, religiosos, operários, parlamentares. Vozes que se elevaram de todos os cantos do país, solidárias.

No Sindicato, os jornalistas falavam por uma só voz. Havia, acima de tudo, a consciência de que tínhamos um dever a cumprir: ouvir o clamor e defender os direitos de uma classe brutalmente atingida pela morte de um de seus integrantes.

O Sindicato não fazia julgamentos. Era apenas a testemunha de um momento trágico vivido pela Imprensa. E, sem se afastar um milímetro sequer dos limites da Lei, não fugiu, também, um milímetro que fosse, de seu dever como entidade legal de representação profissional.

Acima do medo, acima da dor, acima da angústia e do desespero fomos, todos os jornalistas, o Sindicato.

Neste episódio – é bom que fique bem marcado – o Sindicato nada mais fez do que cumprir um dever, um compromisso assumido com os trabalhadores que representa. Como ficou bem claro nas palavras que pronunciei na solenidade de posse: “Entendo a nossa vitória e a minha posse, hoje, na presidência do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo como uma tomada de consciência de toda a categoria profissional em relação ao dever que temos, todos nós, de lutar, dentro da lei, em defesa de nossos direitos. Repito, aqui, o que disse logo após a apuração das eleições: nossa vitória não foi a vitória de nenhuma facção, mas sim a de todos os jornalistas”.

No Sindicato, ontem como hoje, não há facções, não há grupos favoráveis ou contrários a quaisquer posições políticas ou ideológicas. No Sindicato há, e só, jornalistas. Jornalistas e cidadãos que defendem um princípio fundamental a dignidade do ser humano.

Em nome dessa dignidade nós abominamos todos aqueles que, defendendo interesses obscuros, tentaram e tentam confundir a nossa posição.

Morreu um jornalista, morreu um homem. Respeitemos, todos, a memória de Vladimir Herzog.

Somos fracos, somos poucos, mas ainda não morremos. Nem perdemos nossa fé na justiça.

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