Eu sempre disse que o PT é mais que um partido político, o "petismo" é um conjunto de valores que nos guiaram e nos guiam na busca incessante pela liberdade, pela democracia, que em alguns momentos chegou a parecer apenas um sonho distante ou devaneio, mas que se transformou em realidade, coroando uma época inteira, gerações e gerações de brasileiros e brasileiras que acreditaram no Brasil e nunca desistiram. É bom a gente sempre lembrar de onde veio e, também, como nós merecemos, sem nenhuma falsa modéstia, ter chegado até aqui. Mas a luta não foi fácil e deixou marcas, principalmente quando lembro dos companheiros e companheiras que estiveram ao nosso lado e que não puderam estar aqui conosco, participando dessa coroação da democracia brasileira que é o momento que vivemos hoje governando o país. Eu já disse e vou repetir: não os esqueço, trago em meu coração, em minha memória, a imagem de cada um e os ideais de todos, uma vez que o Brasil deve, também, a eles a consolidação da nossa democracia.

A minha geração, de 68, a duras penas aprendeu o significado da democracia, que é mais do que uma palavra. Democracia traz consigo lições de vida, de possibilidades, de futuro, colocando em nossas mãos as decisões que vão mover uma nação. Somos nós que decidimos o que queremos e como queremos. Democracia é uma carga de liberdade e de responsabilidade, porque dá ao povo a oportunidade única de escolher o seu destino de forma soberana. E foi esse ideal que nós perseguimos, pelo qual nós lutamos, e pagamos um preço, porque durante essa luta muitos companheiros e companheiras foram presos, alguns morreram e, muitos de nós, banidos do país, expulsos da nossa nação, do nosso Brasil. Assim como eu, que passei dez anos na clandestinidade, muitos de nós foram praticamente arrancados de suas origens, de suas famílias, de suas vidas, dos seus sonhos, para viver em outro lugar, em outro país e outra cultura, tudo por acreditar num mundo melhor, num Brasil livre de suas amarras, de sua triste época de ditadura militar, que emudeceu vozes, mas nunca as calou.

Foi um período obscuro na história do Brasil, quando a ditadura militar emudeceu vozes, através da repressão e do medo, mas nunca calou o povo, a vontade popular, os anseios de toda uma nação, o desejo de liberdade, que, embora sufocados pela violência, pela opressão que tomou conta do Brasil após o golpe de 1964, nunca foram apagados das nossas mentes e dos nossos corações. Essa chama foi crescendo e nós sentíamos isso, sentíamos a insatisfação generalizada se instalar em grande parte da população, assim como o clamor da massa, as reivindicações do nosso povo por um país livre e justo. Enganaram-se aqueles que pensavam emudecer, mais uma vez, a vontade do povo brasileiro que começava, então, um movimento pelas Eleições Diretas para eleger o presidente da República, mas que deixava clara, na verdade, a angústia de 20 anos de ditadura. O movimento se transformou em marco da história política brasileira, mobilizando o povo, ora oprimido, para essa luta.

O dia 27 de novembro de 1983 tem seu lugar garantido na história, porque foi ali, na praça Charles Miller, frente ao estádio do Pacaembu, em São Paulo, que a campanha das diretas teve início, com a manifestação pública convocada pelo Partido dos Trabalhadores. Foram mais de dez mil pessoas, mais de dez mil vozes, mais de dez mil destinos que se cruzaram clamando por liberdade! Corações batendo forte, envoltos em um misto de alegria e de tristeza. Alegria por vislumbrar em cada cidadão, cada cidadã, o desejo de se incorporar à luta pelo fim da opressão e da violência imposta pelas Forças Armadas, mas, tristeza, porque quis o destino que nesse mesmo dia de glória para o Brasil, um brasileiro ilustre nos deixasse: Teotônio Vilela morreu nesse dia, deixando uma lacuna em todos nós, um vazio em cada um, em cada uma. Mas o povo brasileiro já demonstrara a sua força, a sua persistência, a sua garra, e foi adiante, não esmorecendo nem mesmo com a rejeição da emenda do deputado Dante de Oliveira que pedia as eleições diretas. Um ano mais tarde era incontestável a vontade do nosso povo. A árvore da democracia já estava plantada e seus frutos se espalharam por todas as regiões. A prova da nossa vitória estava na praça da Sé, em São Paulo, repleta com seus 400 mil brasileiros e brasileiras gritando a uma só voz: Diretas Já!

Depois de longa caminhada, o povo fez tremer as bases da ditadura e não havia mais volta, a democracia chegaria mais cedo ou mais tarde. E ela chegou, se instalou e nós passamos a ser, mais uma vez, parte da história do nosso Brasil. A eleição do presidente Lula é a incontestável manifestação do desejo do nosso povo de consolidar a democracia, a liberdade, o grito incontido por justiça e igualdade social. A emoção continua, porque a vitória do presidente Lula é o começo de uma nova história, mas uma história escrita por nós, brasileiros e brasileiras, que são, novamente, donos dos seus próprios destinos, do nosso destino. Não é pouca coisa: a democracia cada vez mais ampliada cria as condições, todos nós sabemos, para a participação política. E participação política de forma institucional e de forma organizada cria as condições para que o país possa avançar no sentido da justiça, da igualdade social. Esse é o nosso compromisso: fazer com que o Brasil ocupe o seu lugar no mundo.

O fato é que o povo brasileiro viveu tempos difíceis e não se deixou esmorecer e nem se calar diante das adversidades impostas pelos regimes ditatoriais, que tentaram impor sua vontade através da violência. O povo brasileiro viveu pelo sonho maior de ver o Brasil livre e democrático, mas foi além, nos momentos históricos importantes demonstrou a sua força e o seu desejo de um Brasil democrático. A Campanha das Diretas foi um desses momentos determinantes. E este sonho, hoje, mais do que nunca, se transforma numa realidade que começa a ser construída, passo a passo, por cada brasileiro e cada brasileira. Este sonho, que hoje não é mais uma quimera e sim, uma realidade, palpável, nos traz o sentimento de uma etapa vencida, ainda que muitas outras estejam por vencer.

A Campanha das "Diretas Já" foi um momento que nos deu a lição histórica de que as grandes mudanças políticas e institucionais em nosso País só são feitas quando o nosso povo se levanta e participa da vida política. E neste momento histórico que vivemos, em que a nação brasileira escolhe o seu caminho e elege um governo do povo, espero que estejamos à altura de transformar em realidade os desejos e as lutas democráticas travadas outrora – como a luta pelo direito às eleições diretas – em um Brasil justo, solidário e democrático.


José Dirceu – Ministro da Casa Civil  do governo Lula

Depoimento publicado no portal da FPA em 2003