O Procurador me perguntou se eu havia sido torturado. Minha resposta foi o silêncio, enquanto nos olhávamos fixamente nos olhos.

Os advogados que acompanham o inquérito sobre a morte do jornalista Vladimir Herzog enviaram à Auditoria Militar, pedindo sua anexação aos autos do processo, um depoimento extra-judicial, prestado em novembro, pelo jornalista Rodolfo Konder, que esteve preso no DOI na mesma ocasião. Konder fez suas declarações perante 8 testemunhas: Prudente de Moraes Neto, presidente da Associação Brasileira de Imprensa, Gofredo da Silva Telles Junior, professor catedrático da Faculdade de Direito da USP, Hélio Pereira Bicudo, Procurador da Justiça, padre Oliva Caetano Zolin e os advogados José Carlos Dias, José Roberto Leal de Carvalho, Maria Luiza Flores da Cunha Bierrenbach e Arnaldo Malheirus Filho.

O documento foi encaminhado com uma petição, requerendo sua juntada aos autos e reiterando o pedido de vista que os advogados já tinham feito em dezembro. Esse pedido foi recebido pelo juiz-auditor no início de janeiro, quando terminou o período de férias da Justiça, e distribuído ao promotor que está com os autos do IPM, para que dê seu parecer.

Em seu depoimento, que os advogados consideram da maior importância para a realização de novas diligências, capazes de esclarecer as circunstâncias da morte de Vladimir Herzog,

Rodolfo Konder começa descrevendo a sua prisão, às 6 horas da manhã do dia 24 de outubro, em masa, de onde fui levado para o DOI. “Lá dentro – diz ele – me fizeram tirar a roupa e me deram um macacão do Exército, e eu fiquei sentado num banco com o macacão e o capuz preto” (que lhe colocaram na cabeça à entrada do DOI). Konder narra em seguida como se deu seu interrogatório e o comportamento do interrogador: “Ele começou a se exasperar e a me fazer ameaças, porque não estava satisfeito com as respostas que eu dava, e chamou umas duas pessoas para a sala de interrogatório, pediu que uma delas trouxesse a “pimentinha”, que é uma máquina de choque; e a partir daí eu comecei a ser torturado.

Uma pessoa, que mais tarde, pela voz, eu identifiquei como chefe da equipe, era forte, barrigudo, moreno, de cara raspada. Este homem me batia com as mãos e gritava que ele era um anormal, o que eu achei muito estranho. Depois, instalaram nas minhas mãos amarrando no polegar e no indicador as pontas de fios elétricos ligados a essa máquina; a ligação era nas duas mãos e também nos tornozelos. Obrigaram-me a tirar os sapatos para que os choques fossem mais violentos. Enquanto o interrogador girava a manivela, o terceiro membro da equipe, com a ponta de um fio, me dava choques no rosto, por cima do capuz e as vezes na orelha, para isso levantando um pouco o capuz, para que o fio alcançasse a orelha.. Para se ter uma idéia de como os choques eram violentos, vale a pena registrar o fato de que eu não pude me controlar e defequei; e freqüentemente perdia a respiração. Essa cena dantesca durou até a hora do almoço, embora eu já estivesse disposto a dizer tudo o que eles queriam que eu dissesse. Houve inclusive um momento em que eu gritei que diria o que eles quisessem, mas isso não adiantou nada”.

Konder conta que depois foi levado de novo para o andar térreo, onde ficou sentado num banco de madeira até a noite seguinte, sem nenhuma alimentação e sempre de capuz.

Vladimir chega e nega; gritos

O depoimento descreve a seguir a chegada de Vladimir Herzog ao DOI e a acareação feita com Konder e outro jornalista preso, George Duque Estrada:

“Vladimir estava lá, sentado numa cadeira, com o capuz enfiado e já de macacão. Assim que entramos na sala, o interrogador mandou que tirássemos os capuzes, por isso nós vimos que era Vladimir e vimos também o interrogador, que era um homem de 33 a 35 anos, com mais ou menos 1 metro e 75 de altura, uns 65 quilos, magro mas musculoso, cabelo castanho-claro, olhos castanhos apertados e uma tatuagem de uma âncora na parte interna do antebraço esquerdo, cobrindo praticamente todo o antebraço. Ele nos pediu que disséssemos ao Vladimir “que não adianta sonegar informações”.. Tanto eu como Duque Estrada de fato aconselhamos Vladimir a dizer o que sabia, inclusive porque as informações que os interrogadores desejavam ver confirmadas já tinham sido dadas por pessoas presas antes de nós. Vladimir disse que não sabia de nada e nós dois fomos retirados da sala e levados de volta ao banco de madeira onde antes nos encontrávamos, na sala contígua.

“De lá, podíamos ouvir nitidamente os gritos, primeiro do interrogador e depois de Vladimir, e ouvimos também quando o interrogador pediu que lhe trouxessem a “pimentinha” e solicitou ajuda de uma equipe de torturadores. Alguém ligou o rádio e os gritos de Vladimir se confundiam com o som do rádio. Lembro-me bem de que durante esta fase o rádio dava a noticia de que Franco havia recebido a extrema-unção. O fato me ficou gravado, pois naquele mesmo momento Vladimir estava sendo torturado e gritava”.

Nervoso, trêmulo, voz fraca

“A partir, de um determinado momento – continua o depoimento – a voz de Vladimir se modificou, como se tivessem introduzido alguma coisa em sua boca; sua voz ficou abafada, como se lhe tivessem posto uma mordaça. Mais, tarde, os ruídos cessaram”.

Konder refere-se depois a seu segundo encontro com Vladimir, porque os interrogadores queriam esclarecer um detalhe sobre uma reunião política: “O interrogador saiu novamente da sala e dali a pouco voltou para me apanhar pelo braço e me levar até a sala onde se encontrava Vladimir, permitindo mais uma vez que eu tirasse o capuz. Vladimir estava sentado na mesma cadeira, com o capuz enfiado na cabeça, mas agora me parecia particularmente nervoso, as mãos tremiam muito e a voz era débil”.

Hora mais tarde, George Duque Estrada e eu fomos novamente chamados, desta vez para uma sala no primeiro andar, onde o mesmo interrogador, muito nervoso, nos ditou uma declaração, em que dizíamos ter convencido Vladimir Herzog a prestar espontaneamente seu depoimento. Na manhã do dia seguinte, domingo, fomos chamados, Duque Estrada, eu, Paulo Sérgio Markun e Anthony de Christo, primeiro para escrever o que sabíamos sobre os hábitos particulares de Vladimir Herzog e depois para ouvirmos uma preleção sobre a penetração russa no Brasil, feita por um homem que me pareceu o principal responsável peta análise das informações colhidas no DOI; este cidadão, acompanhado pelo “Doutor Paulo”, um japonês de cerca de quarenta e poucos anos, magro, 1 metro e 70 de altura, e de um interrogador de cerca de 25 anos, alourado, magro e alto, mais ou menos 1 metro e 77. O homem que me pareceu ser o principal (…) nos comunicou que Vladimir Herzog se suicidara na véspera, para concluir que Vladimir devia ser agente da KGB, sendo ao mesmo tempo “o braço direito do governador Paulo Egydio”.

Markun tentou contestar isto, dizendo que Vladimir jamais estivera pessoalmente com o governador Paulo Egydio, sequer o conhecia, mas o homem insistiu irritado, dizendo que nós não sabíamos de nada”.

Konder relata que, na segunda- feira, recebeu instruções para requerer ao comandante autorização para ir ao enterro de Vladimir, foi ao cemitério e, no dia seguinte, apresentou-se de novo no DOI. Ele e Duque Estrada estiveram então, outra vez, com o Doutor Paulo” e ouviram dele “alguma coisa que nos soou como uma advertência e até mesmo uma ameaça: ele nos disse que a nota do II Exército nos havia colocado numa situação extremamente perigosa, porque a qualquer momento poderíamos ser “justiçados” por elementos do Partido Comunista.

A partir desse momento, Duque Estrada e eu nos sentíamos permanentemente ameaçados, por termos compreendido que a nossa morte poderia servir inclusive de pretexto para novas ações repressivas, sob a alegação de que havíamos sido assassinados por membros do Partido Comunista”.

No IPM: Silêncio

O jornalista conta em seguida que, depois da morte de Herzog, não sofreu mais torturas, embora continuasse a ser interrogado. E, na sexta-feira, foi levado direto do DOI para o QG, para prestar depoimento no IPM sobre a morte de Vladimir. Ele justifica ter adotado “uma linha cautelosa no relato do que se passara conosco; pelo fato de saber que, de lá, voltaria para o DOI, e desconhecer os acontecimentos políticos fora da prisão.

Por isso, “relatei meus dois contatos com Vladimir nas dependências do DOI. Omiti, no entanto, referências aos seus gritos e à tortura. O Procurador me perguntou se eu havia sido torturado. Minha resposta foi o silêncio, enquanto nos olhávamos fixamente nos olhos”.

O macacão não tinha cinto

A parte final do depoimento encaminhado à Auditoria Militar consta de respostas do jornalista às perguntas feitas pelas testemunhas presentes no escritório dos advogados. Às perguntas de Prudente de Moraes, neto, presidente da ABI, Konder respondeu principalmente.

“Que o macacão que lhe deram pata vestir nas dependências do DOI, a exemplo de todos os outros, não tinha cinto.

“Que as ameaças feitas de início, pelo interrogador ao declarante, consistiam em dizer que ele iria “entrar no cacete” e que iria “ser levado lá para baixo”, expressão que significava algumas safas em que há instalados “pau-de-arara” e “trono do dragão”, que é uma cadeira com assento metálico onde as pessoas são colocadas despidas e recebem violentos choques.

“Que, antes do enterro de Vladimir, quando foi autorizada a fazer a barba, deram-lhe um aparelho com lâmina de barbear; mas ficou ao seu lado um agente fiscalizando.

“Que da mesma forma que todos os outros presos que teve oportunidade de ver nas dependências do DOI, foi deixado apenas com o macacão, o capuz e os sapatos, sendo que, das pessoas que usavam sapatos com cordão para amarrar; os cordões eram retirados, não ficando qualquer instrumento que pudesse ser usado contra a vida.

“Que, nas ceias, os presos não dispunham de lápis e papel, somente encontrando esses utensílios nas salas apropriadas em que os interrogadores ditavam declarações para que os presos as redigissem de próprio punho.

“Que, nos casos em que as declarações de próprio punho não eram ditadas, ficava sempre um agente ao lado, fiscalizando”.

As horas de tortura

Konder respondeu assim às principais perguntas do professor Gofredo da Silva Telles Junior.

“Que, quando se iniciou a tortura de Vladimir, ele, estando na sala ao lado, chegou a ouvir sons de pancadas que lhe eram desferidas.

“Que, embora não possuísse relógio, calcula que a tortura de Vladimir tenha durado cerca de duas horas, menos que a do próprio declarante, que teria durado cerca de 4 horas.

“Que a tortura de Vladimir foi aquela que pode ouvir, ignorando se Vladimir sofreu outras posteriormente, em outra dependência do próprio DOI”.

A máquina de choques

Por último, a perguntas do padre Olivo Caetano Zolim, disse Konder.

“Que a máquina denominada “pimentinha” é um pequeno aparelho dotado de manivela, do qual saem alguns fios, sendo que a potência do choque é proporcional à velocidade em que a manivela é operada.

“Que nenhum dos jornalistas, que estiveram presos no DOI na mesma época, esteve preso em cela especial.

“Que pôde ver a máquina denominada “pimentinha” nas diversas vezes em que esteve sem capuz, sendo que a mesma não era escondida pelos policiais”.


O depoimento de Rodolfo Konder – 11 laudas datilografadas, assinadas por ele e pelas 8 testemunhas – foi entregue à Auditoria Militar no dia 23 de janeiro.

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