Depoimento de Juca Kfouri, jornalista esportivo, cujo texto, com pequenas modificações, foi escrito e publicado em O Globo, em novembro de 1989.

Por Juca Kfouri*

Mas eu já vi isso antes. Quando, se em 1960, com 10 anos de idade, só o futebol era capaz de me emocionar tanto?

Mas já vi isso antes e deve ter sido mesmo por causa do futebol. Não foi num Fla-Flu, no Maracanã, bem sei, porque sempre morei em São Paulo.

Mas já vi isso antes. Tantas bandeiras, de todas as cores. Verdes, amarelas, azuis, brancas, vermelhas, pretas. As pessoas nas ruas, tomando conta de tudo. O Mundo é delas, o Brasil é delas.

Ah, já vi isso antes. Deve ter sido em 1958, quando o Brasil foi campeão na Suécia. Que festa! A gente cantava, dançava e eu, menino, ficava comovido com tanta alegria. Chorava um choro que não sabia explicar. “É de emoção”, alguém dizia. “É de alegria”, falava outro. Só sei que chorava e sentia um estranho orgulho. Orgulho do Pelé, do Mané, do Didi e do Nilton Santos.

É claro que já vi isso antes. Foi em 1962, quando fomos bicampeões no Chile. Corintianos, são-paulinos, palmeirenses, todos juntos. Tinha até bandeiras do Flamengo – porque sempre tem bandeiras do Flamengo. Eu tinha crescido um pouco, como não! Mas chorava o mesmo choro inexplicável. Orgulhoso do Mané, do Gilmar, do Amarildo, do Didi e do Nilton Santos.

Sim, já vi isso antes. Foi em 1970, quando a Copa veio morar para sempre por aqui. Era o tri nos campos do México e, cá ente nós, eu já estava bem grandinho e trabalhava para a “Placar”. E chorava com o mesmo nó na garganta. Confuso porque, no dia da estréia, contra a Tchecoslováquia, entre um gol e outro do Brasil, soube da morte do meu compadre, Norberto Nehring, um ídolo que tinha só seis anos a mais que eu, morto pela tortura, vítima da sensibilidade que, como a tantos outros jovens, levara ao equívoco da resistência armada.

Mas eu tinha orgulho ainda assim do Pelé, do Rivelino, do Tostão, do Jairzinho e do Gérson. Que confusão! Estava feliz. Como podia estar se, menos de um mês antes, o “Alemão” tinha morrido? Mas eu estava feliz.

Não, eu nunca tinha visto isso antes. O povo desceu das arquibancadas e tomou conta de seu destino. Com bandeiras de todas as cores – e que importância tem a cor das bandeiras quando é o povo que a escolhe?

Todo o povo deixou de assistir para participar.

Definitivamente, foi a primeira vez que vi.

Nos comícios pelas Diretas Já!, comandados pelo melhor locutor esportivo da história do Brasil, Osmar Santos, que poderia ser Osmar Corinthians, Osmar Flamengo, Osmar Inter, Osmar Galo.

Estávamos todos lá. De todos os times, todos os partidos, todas as raças e preferências pessoais. Todos mais que torcendo, todos lutando pelo Brasil.

Perdemos em seguida uma batalha, no Congresso Nacional.

Mas ganhamos em seguida, nas ruas.

Nós votamos para presidente! Pela primeira vez, em novembro de 1989, minha geração votou para presidente.

E chorei outra vez. Pai de três filhos, chorei de novo. Orgulhoso do meu pobre país. Que vai ser rico, muito rico, se puder votar de novo e de novo e de novo. E se meus filhos nunca forem impedidos de escolher o que acharem melhor para eles. Que errem, que acertem, mas que escolham sempre. O Norberto merece. Todos merecemos. Viva o povo brasileiro!


*Jornalista esportivo
Este texto, com pequenas modificações, foi escrito e publicado em O Globo, em novembro de 1989.

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