Brasil, entre a restauração do velho e o nascer do novo
O pensador marxista italiano Antonio Gramsci foi personagem destacado durante os debates da mesa intitulada “O velho morre e novo ‘deve nascer’”, na sétima rodada dos Seminários Cultura e Democracia, realizada na manhã de 17 de novembro, quarta-feira.
O título do encontro, uma releitura de célebre frase de Gramsci, sinalizava o objetivo de discutir as possibilidades e dificuldades de mudanças se inserirem na atual quadra histórica, marcada por uma evidente e profunda crise do capitalismo, ainda hegemônico, mas agonizante, e pela descrença nas formas tradicionais da política e da democracia representativa liberais. Um momento que poderia ser classificado como interregno, tomando-se outra expressão do autor italiano.
“Esse tema de nossa mesa tem tudo a ver com a angústia que estamos vivendo”, disse a escritora e produtora cultural Sabrina Fernandes, ao abrir o encontro. Ela frisou que o Brasil é hoje palco de numerosas manifestações de violência e autoritarismo. “Qual o papel das instituições ditas democráticas para barrar avanços, numa forma de arranjo interno?”, questionou, recordando que existe uma crise de representação política no mundo que pode ser aproveitada pela extrema direita para impor sua visão, como ocorreu nas jornadas de 2013, de gênese democrática, mas que desaguou em sucessivos retrocessos.
Para Gianni Fresu, professor de Filosofia Política da Universidade Federal de Uberlândia e integrante da International Gramsci Society, “estamos no meio de uma crise orgânica mundial, uma crise de representação dos regimes tradicionais. O fosso entre ricos e pobres aumenta cada vez mais e a exploração não encontra mais freios sociais”. Por que então, perguntou ele, a passividade dos oprimidos? A principal razão, conforme discorreu Fresu ao longo de sua fala, encontra-se justamente na cultura dominante.
“Há uma vitória da ideologia da exploração. A mística do mercado é a forma mais autoritária de dominação. Nela, a exploração é tida como teoria da liberdade, não da escravidão”, disse. Para ele, o capitalismo está intubado: “Os homens o mantêm vivo, mesmo que seja necessária uma intervenção terapêutica”. Mas o novo pode nascer, lembrou. “O capitalismo é uma condição histórica determinada. Então, é historicamente superável como qualquer outra determinação histórica”.
O suporte cultural do capitalismo, de variados tentáculos, inclui a política nos moldes de exportação. “Há eventos espetaculares de passivização política, como o são as eleições primárias nos Estados Unidos”. Mas será na política e na cultura, como elementos ligados entre si, como partes uma da outra, que virá o novo. E na política, disse o professor, Gramsci enxergava no partido de massa a possibilidade de rompimento da passividade.
Para tanto, é preciso que as direções partidárias sejam permanentemente renovadas, por intermédio do que o pensador italiano chamou de elevação do nível de consciência das massas, o que passa pela garantia de que o partido diminua cada vez mais a “relação dualista entre dirigentes e dirigidos”. Fora disso, sem criação constante de novas lideranças, um partido caminha para uma ação “ineficaz ou estéril”.
Fresu concluiu que a direção política precisa ter aquilo que Gramsci chamou de “grande ambição”, mas que esta é positiva quando as lideranças entendem sua própria elevação como um movimento de elevação coletiva. “Elevar o nível de capacidade das massas. O partido político, como a figura do príncipe moderno de Maquiavel, consegue mesclar a utopia com a formação de uma vontade coletiva, que não é possível sem uma reforma intelectual e moral”. Para isso, é preciso que a direção seja decorrente da ação do coletivo.
A ideia de reforma intelectual e moral, presente na obra de Gramsci, foi retomada pelo professor Marcos Del Rio, da Universidade Estadual de São Paulo. Cientista político e autor de obras sobre o pensador italiano, Del Roio lembrou que a cultura não existe isoladamente, e que a política e a economia são práticas culturais, assim como a cultura – “toda a cultura”, disse” – não existe sem manifestação política e econômica. “A cultura se traduz conjuntamente em prática social, e como essa prática se multiplica e se reproduz, isso implica em falarmos também em educação”, iniciou.
“Isso está muito presente no jovem Gramsci, desde que ele pensa na criação de uma associação de cultura, que complementasse de alguma forma o partido político e o sindicato econômico. Se dando conta, na verdade, de que se tratavam de expressão única da classe operária. Isso veio na expressão prática dos conselhos de fábrica. Foi uma experiência riquíssima. É um momento em que a classe operária cria também um embrião de nova ordem, cria o futuro no presente, se autoeducando e se mostrando capaz de educar o educador”, recordou Del Roio.
Essa figura do aluno educando o educador se expressou, segundo o professor, na figura dos intelectuais recém-formados na Universidade de Turim, Gramsci entre eles, que fundaram o semanário “L’Ordini Nuovo”. “É um momento de grande riqueza, que mostra a classe operária gerindo um novo mundo”, apontou o palestrante, sintetizado no Partido Comunista Italiano do período, especialmente quando Gramsci tornou-se seu principal dirigente.
Mas essa chamada reforma moral e intelectual não se dará, alertou, nos moldes conservadores, em medidas como “colocar gente decente e honesta no Congresso Nacional”. Del Roio lembrou, inclusive, que a expressão não foi cunhada originalmente por Gramsci, e que seu uso serviu anteriormente a campanhas conservadoras. Tal reforma resultará da elevação crítica das massas, resultando em novos comportamentos e costumes que se oponham à lógica do individualismo e da opressão. Porém, tudo dependerá da mudança das relações de produção existentes, que hoje servem de matriz ideológica e de prática social.
“Você não proporcionará uma nova moralidade que combata o individualismo, a exploração do trabalho, a exploração familiar e ideológica – que hoje passa, por exemplo, por igrejas e seitas – sem uma mudança das relações sociais de produção”. Fazendo eco ao que havia dito o professor Fresu, Del Rio manifestou a crença de que o capitalismo está em apuros. “Tem dificuldades cada vez maiores de se reproduzir. As taxas de crescimento no núcleo imperialista do capital são muito pequenas. O único modo atual de acúmulo de capital é aumentar a exploração do trabalho, com a barbarização das relações sociais. Isso tudo faz parte da desintegração do capitalismo. Estamos no interregno”.
A tarefa de aproveitar este interregno, onde o velho está morrendo e o novo quer nascer, é tarefa descomunal. “A questão de criar essa vontade humana, popular, de mudança, é muito complicada. Me parece que temos de atacar os fundamentos”, disse Del Roio. Passos nessa direção vêm sendo dados pelas periferias, afirmou. “Os coletivos de periferia urbana e também dos campos têm criado novas forma de relações sociais, que não são por si sós capazes de coagir o sistema, mas, se crescerem, terão capacidade de influenciar”, completou.
No Brasil, há, na definição de Luciana Aliaga, professora da Universidade Federal da Bahia e estudiosa de Gramsci, “uma crise de restauração do velho”, consubstanciada na figura e no governo de Bolsonaro. Ela diverge da designação neofascista normalmente dada ao governo, porque “mais esconde que revela. É, na verdade, a restauração do militarismo e da cultura colonial de uma elite de mentalidade escravocrata”, explicou. O fascismo italiano valia-se do suporte mitológico do grande passado imperialista romano.
O momento que vivemos, acredita Luciana, é de crise de autoridade, marcada pela descrença das pessoas nos modelos de vida social já conhecidos. Nesse cenário, as elites econômicas deixam de ser dirigentes e mantêm apenas a posição de dominantes. “Isso significa que as massas não acreditam mais. Uma visão de mundo só se torna dominante quando se transforma em fé, quando aparece como uma segunda natureza. E essa fé se enfraqueceu”, avaliou.
“Quando Gramsci diz que o novo não pode nascer, é no sentido de que ainda não é possível, mas não de que não nascerá. Quero agora parafrasear o Belchior e dizer que o novo sempre vem, e deve ser construído agora. E coletivamente. Individualmente não acharemos solução”, finalizou a professora.
Apresentada como uma manifestação do movimento rumo ao novo, a Mídia Ninja participou da mesa de debates representada por um de seus fundadores, Felipe Altendelder. O comunicador fez um breve retrospecto dos 20 anos de atividade da Mídia Ninja e destacou sua origem como movimento cultural. Lembrou também das conferências nacionais de cultura e comunicação, entre outras, e novas formas de distribuição de recursos para fomento cultural, durante os governos de Lula. “Tudo isso foi muito importante para o surgimento de nossa rede com uma incidência política real, por intermédio da cultura”.
Os Seminários
Organizados pelo Instituto Cultura e Democracia, pela Fundação Friedrich Ebert Brasil e Fundação Perseu Abramo, os Seminários Cultura e Democracia estão formados por três ciclos de debates de grande interesse público. As primeiras atividades serão realizadas de 8 a 19 de novembro de 2021, de forma online, gratuita e interativa.
Os Seminários Cultura e Democracia vão reunir diversos intelectuais, artistas e fazedores de cultura que pensam e atuam em setores acadêmicos, institucionais, sociais e políticos; provocando reflexões e ações relevantes, transformando realidades e inspirando novas gerações. Um movimento que debaterá passado, presente e futuro, ampliando conceitos e propondo caminhos. Os debatedores e debatedoras participam voluntariamente, sem remuneração.
Serão duas semanas de debates, diálogos e reflexões sobre a profunda crise política e institucional vivida pelo Brasil e os desafios impostos à sociedade. Vamos buscar alternativas e saídas para que o país possa retomar o seu curso democrático e aprimorá-lo como condição básica para a superação das instabilidades, injustiças e desigualdades que marcam nossa história.
As mesas são transmitidas pelos canais no Youtube e nos sites das entidades organizadoras, Mídia Ninja e TAL (Televisión Latino-Americana) e reprisadas pela TV Fórum. Permanecem gravadas nesses mesmos espaços.
Para assistir os debates desta quarta-feira, clique aqui.