Depoimento de Dalmo Dallari, jurista e professor da USP

Por Dalmo Dallari*

O que pode garantir o caráter democrático de uma sociedade é a participação efetiva e permanente do povo no governo e não apenas a forma de escolha dos governantes. Essa é uma verdade que a história tem comprovado no Brasil e no mundo. Sendo assim, seria correto concluir que os líderes democratas e o povo brasileiro foram ingênuos quando desencadearam o movimento “Diretas já”, repudiando a escolha indireta dos chefes do Executivo e reivindicando o restabelecimento da escolha direta pelo povo? Teria havido uma derrota dos democratas quando o Congresso Nacional rejeitou, em 25 de abril de 1984, a Emenda Dante de Oliveira, proposta de emenda constitucional que visava justamente a reimplantação das eleições diretas no Brasil?

Antes de tudo, é importante lembrar que naquela ocasião havia uma ditadura no Brasil, que impunha decisões arbitrárias, cometia violências, praticava corrupção, privilegiava os interesses dos militares e civis encastelados no governo e dos empresários seus associados, tudo isso reforçando e aumentando as injustiças sociais e sufocando a liberdade. O povo já não suportava tantas agressões e humilhações, mas o regime instalado apoiava-se na força das armas e do dinheiro e, para que fosse possível uma reação eficaz, era necessário encontrar um elemento unificador, uma proposta que servisse de bandeira para todas as aspirações democratizantes, sem criar o risco de mais violência e sem exigir sacrifícios heróicos.

A campanha pelas “Diretas já” cumpriu esse papel. Como não se tratava de uma proposta de uso da força, mas de mudança das regras do jogo político por meios pacíficos, não forneceu pretexto para mais repressão. Além disso, como era um objetivo desejado pela ampla maioria do povo e não representava comprometimento com qualquer proposta política determinada e excludente de outras, como direita ou esquerda, capitalismo ou socialismo, conseguiu uma união de forças que deu caráter nacional à reivindicação por um processo mais democrático. Pelo fato de reunir grande número de pessoas em torno de seus objetivos, a proposta das diretas deu coragem aos que tinham medo da repressão, pois tendo assumido a forma de campanha popular, não exigia comprometimento pessoal e criava um escudo protetor, pois num movimento de massa seria impossível individualizar as responsabilidades.

A par disso, o movimento das “Diretas já” serviu de estímulo para que os acomodados, os tímidos e os oportunistas também se mobilizassem, pois, além de não haver riscos, percebia-se que a obtenção do resultado era viável, devendo-se ainda somar a isso tudo o fato de que, tendo havido logo muitas adesões, não seria bem visto quem estivesse à margem ou, pior ainda, quem manifestasse oposição à proposta. Na realidade, para os oportunistas era muito conveniente a participação, que não significava o rompimento com a ditadura vigente e, ao mesmo tempo, criava a imagem de preferência por um sistema democrático, ainda que, no caso de alguns participantes, essa imagem não correspondesse a uma convicção autêntica e profunda.

Isso tudo explica porque o movimento das diretas ganhou um extraordinário vigor, conseguiu uma gigantesca mobilização popular e se converteu no ponto de partida para a mobilização nacional contra a ditadura. A derrota da emenda constitucional foi decepcionante para quem esperava resultados imediatos e acreditava na possibilidade de consegui-los, mas o que se viu em seguida foi que mesmo os mais decepcionados não abandonaram a luta pela restauração dos instrumentos formais da democracia. Pode-se mesmo dizer que a campanha das diretas foi o ponto de partida para a última etapa da derrubada da ditadura. Com efeito, aquela campanha mostrou o caminho mais adequado, teve efeito conscientizador, estimulou a intensificação da mobilização popular e definiu o modelo para a vitoriosa campanha pela Constituinte.

O que se viu depois foi, uma vez mais, a comprovação de que o fato de dar ao povo a possibilidade formal de eleger seus governantes pode contribuir para a democratização da sociedade mas, por si só, é insuficiente para assegurar esse resultado. Basta lembrar os exemplos de Collor e de Bush, levados ao Poder pelo critério formal das eleições diretas e, no entanto, sem nenhum compromisso com os princípios democráticos. Além disso, conhecidos e reconhecidos aproveitadores dos privilégios ditatoriais estão aí, até mesmo em posições de alta relevância política, formalmente escolhidos pelos métodos democráticos e fazendo pose de paladinos da democracia.

Apesar disso, não há dúvida de que a campanha das diretas foi um movimento de alta inspiração cívica do povo brasileiro, tendo dado valiosa contribuição para que se acelerasse a eliminação da ditadura. Por esse motivo, aquela campanha deve ser celebrada como fato histórico positivo, de alta significação, pois além de ter proporcionado o belo espetáculo da multidão comovida lutando pela democracia, deixou comprovado que a mobilização do povo cria uma força irresistível, que nem a força das armas, nem a força do dinheiro, nem ambas juntas conseguem sufocar.


* Jurista e professor da USP