“Diretas Já”, o povo nas ruas
Depoimento de Almino Affonso, advogado, Deputado Federal. Ministro do Trabalho e da Previdência Social. Vice-Governador do Estado de São Paulo.
por Almino Affonso
A campanha das “Diretas Já”, de tão grande significação em nossa história recente, veio amadurecendo ao longo de anos. Acodem-me lembranças que, articuladas, revelam o confronto crescente da sociedade contra o Regime Militar, cuja síntese se deu naquele admirável comício da Praça da Sé, a 25 de janeiro de 1984, em São Paulo.
A própria expressão “Diretas Já”, que se transformou numa convocação à luta, com enorme poder de aglutinação, remonta a 1977, no feixo da “Carta aos Brasileiros”, escrita e lida pelo professor Goffredo Telles Junior, no Pátio das Arcadas, numa memorável noite que reuniu na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, como indicador de um novo tempo, centenas de professores e estudantes.
Mas o povo, em sua expressão coletiva, ainda não se movera de modo decisivo. Em Curitiba se intentara, sob a liderança do governador José Richa, em ato público em defesa da eleição presidencial, livre e direta. O evento, entretanto, dera-se no apertado espaço de um salão de teatro. Era uma centelha, sem dúvida, mas não ateara fogo. Mesmo em São Paulo o PT convocara o povo a reunir-se num comício, na Praça Charles Müller, para exigir a reimplantação das instituições democráticas. Contudo, esse marco cronológico, não teve o condão de sacudir a sociedade.
Não obstante essa realidade, uma sucessão de fatos ia quebrando o imobilismo. Foi assim em Poços de Caldas, em Minas Gerais, em 19 de novembro de 1983, quando Franco Montoro e Tancredo Neves, numa declaração conjunta, traçaram a estratégia da abertura democrática. Dias depois, reuniram-se no Palácio dos Bandeirantes os governadores Franco Montoro, de São Paulo; Gerson Camata, do Espírito Santo; Gilberto Mestrinho, do Amazonas; Íris Rezende, de Goiás; José Richa, do Paraná; Leonel Brizola, do Rio de Janeiro; Tancredo Neves, de Minas Gerais; Wilson Barbosa Martins, do Mato Grosso do Sul. Ao fim do encontro, divulgaram um manifesto, cujo feixo categórico soava como um grito de guerra: “A nação tem o direito de ser ouvida”.
Nesse estado de espírito nos reunimos, no Palácio dos Bandeirantes, com o governador Franco Montoro, para um almoço de confraternização, com os prefeitos e vereadores da Região Metropolitana. Foi num desses dias que antecedem Natal. Ao discursar, o governador verberou o regime autoritário e convocou as lideranças municipais à luta pela redemocratização.
De repente, uma voz interrompeu-lhe a palavra: era o Prefeito de Itapevi, professores Silas de Oliveira, que propôs a realização de um comício, no dia 25 de janeiro, como arrancada popular pelas “Diretas Já”. O g0overnador Franco Montoro, desde logo, incorporou a proposta à sua agenda. Mas, é importante que se confesse: não foram poucas as vozes da descrença. Na opinião de muitos, sobretudo entre as lideranças políticas, o povo não assumiria as bandeiras da campanha.
Ainda assim, o comício foi convocado. Vale recordar aquela tarde/noite memorável! Na Praça da Sé, centenas de milhares de cidadãos, de todas as tendências partidárias, clamaram com a voz poderosa de um vendaval: “Diretas Já!”. Não sem razão o Governador Franco Montoro, arrematou o seu discurso com essa visão histórica: “Perguntam-me se há aqui 300 ou 400 mil pessoas. Aqui na Praça da Sé estão presentes 130 milhões de brasileiros!”.
No palanque se apinhavam as maiores lideranças democráticas do país: governador Franco Montoro, deputado Ulysses Guimarães, governador Tancredo Neves, governador Leonel Brizola, deputado Miguel Arraes, governador José Richa, Luiz Inácio Lula da Silva – o líder sindical que, à época, abria as asas para o grande vôo! E não faltaram parlamentares os mais ilustres, lideranças sociais, artistas, intelectuais, jornalistas. Atrás do palanque erguia-se a Catedral da Sé a recordar, no cinzento de seu granito, quase três quartos de séculos de história. Lá no fundo, até onde o povo se agrupava, sabia-se que o Pátio do Colégio, em silêncio, guardava 430 anos de São Paulo, desde que suas sementes foram plantadas pelas mãos de Nóbrega e Anchieta.
Era a presença da história que ali estava para comprovar que, apesar de todas as descrenças, o povo podia por abaixo o regime militar. Até onde o olhar alcançava, até lá o povo se impunha.A Praça da Sé e a Praça Clóvis Beviláqua reduziram-se a uma só, unificadas pela multidão. E pelos seus costados, rua a rua, o povo afluía, como rios que chegassem à embocadura… Era de ver o povo saindo das estações do metrô, como se estivesse brotando das entranhas da Terra! Relembrando a multidão daquela tarde/noite, não há outra imagem a que eu possa recorrer: era um mar humano, em ondas que se encrespavam e aos poucos remanseavam, enquanto as bandeiras, numa festa de cores, sacudidas aos milhares, pareciam velas panejando…
A partir daí, multidões em toda parte saíram às ruas. Ao lado do deputado Ulysses Guimarães, corri o país. Nada mais tinha forças para deter a caudal em marcha. Por isso, passados 20 anos, sinto que posso dizer: naquele dia, na Praça da Sé, eu vi o povo escrevendo a história.
* Advogado. Deputado Federal. Ministro do Trabalho e da Previdência Social. Vice-Governador do Estado de São Paulo.