Quem era Vlado por José Mindlin
O nome do Vlado foi indicado para a Diretoria de Jornalismo da Fundação. Houve vários candidatos, mas o currículo do Vlado era de tal forma superior, que não havia hesitação possível.
Vladimir Herzog foi uma das pessoas mais íntegras que conheci. Foi pena não ter tido com ele tanto contato quanto desejaria ter tido, mas foi o suficiente para que o ficasse respeitando e admirando. Tudo se deu naquele tumultuado ambiente de 1975, com o desfecho que todos nós lamentamos. Mas em que lhe coube ser o personagem marcante que abriu, com o sacrifício de sua vida, o caminho para a abertura política.
Nosso primeiro encontro se deu quando eu era Secretário de Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado; e, na ausência de meu saudoso amigo Rui Nogueira Martins, Presidente da Fundação Padre Anchieta, o nome do Vlado foi indicado para a Diretoria de Jornalismo da Fundação. Houve vários candidatos, mas o currículo do Vlado era de tal forma superior, que não havia hesitação possível. Não o conhecendo pessoalmente, convidei-o para uma conversa na Secretaria, e a boa impressão se confirmou plenamente. Assim, apressei-me a indicar seu nome ao Governador Paulo Egydio Martins, para não retardar o preenchimento do cargo. Note-se que, em nossa conversa, o Vlado não introduziu qualquer elemento pessoal que pudesse de alguma forma influenciar a minha decisão. Não mencionou, por exemplo, grandes amigos comuns como Antonio Candido, nem fiquei sabendo que ele era, como eu, de origem judaica. Queria, evidentemente, que minha escolha fosse, como realmente foi, inteiramente objetiva.
Feita a indicação, estranhei que o assunto não fosse rapidamente resolvido. Comecei a saber de pressões injustificadas contra o Vlado e em favor de outro candidato, a meu ver, menos qualificado. Isso me fez insistir na indicação, afinal aceita pelo Governador depois de mais ou menos um mês. Retrospectivamente, perguntei-me várias vezes se não teria sido preferível não ter insistido, mas, na ocasião, não havia como. Devo acrescentar que, antes de indicar o Vlado, e como era constrangedoramente de praxe naquele momento para esse tipo de nomeação, consultei pelo telefone o Coronel Chefe do SNI (Serviço Nacional de Informações) em S. Paulo, que, depois de pedir que aguardasse um pouco, retornou a ligação declarando não ter nenhuma objeção. As únicas observações negativas sobre o Vlado, disse-me ele, “eram imprudências de mocidade, sem maior importância”.
Vlado nomeado e empossado, viajei para um seminário nos Estados Unidos, e, na volta, informou-me o Governador que aparentemente estavam surgindo problemas na TV Cultura. Sugeriu-me que entrasse em contato com o “Chefe do SNI”, “pois não queria problemas nessa área”.
Tive esse encontro no dia seguinte, no próprio gabinete do Governador (era dia de despacho), e aí defendia posição do Vlado, que estava sendo criticado, recusando-me a demiti-lo sem razões válidas para tanto, eventualmente surgidas após a aprovação de seu nome pelo SNI. “Não estou pedindo que o demita” disse-me o Coronel. “O senhor resolve, dependendo do risco que esteja disposto a assumir”. Foi uma conversa meio tempestuosa, mas que não me parece necessário transcrever aqui. O importante foi que chegamos a um acordo, que levamos ao conhecimento do Governador, no sentido de que o Vlado continuaria no cargo, e que, se surgissem fatos graves, o Coronel se comunicaria conosco, não tomando qualquer medida, sem prévio entendimento com o Governador ou comigo.
Instalou-se uma televisão no gabinete do Coronel (provavelmente já existia), e outra no meu, a fim de podermos acompanhar os programas de jornalismo do Vlado, e ver o que acontecia. Nada aconteceu durante um mês, até o dia em que viajei novamente para os Estados Unidos (viagens particulares sem ônus para o governo) numa sexta-feira, dia 24 de outubro. O Governador, por sua vez, viajou no mesmo dia para o interior do Estado. Pois nessa noite começou a precipitar-se o drama: Vlado foi preso na TV Cultura, e, relaxada a prisão por intervenção de amigos e meus colaboradores na Secretaria, comprometeu-se a comparecer no dia seguinte ao DOI-CODI, onde a tragédia aconteceu. Eu só soube no domingo, mas não consegui passagem de volta antes da terça. Aqui chegando, procurei imediatamente o Governador para apresentar meu pedido de demissão da Secretaria. A resposta do Governador explica minha permanência no cargo naquele momento: “Você está liberado, dentro do entendimento que tivemos quando você assumiu (de que eu deixaria o cargo se não houvesse abertura). Mas devo dizer que, saindo agora, você enfraquece a resistência que temos de opor à ala radical. Porque eles pegaram o Vlado para pegar você. Pegariam você para me pegar, e me pegariam para derrubar o Presidente, Você resolve, mas, se ficar, não posso garantir nada: amanhã podemos estar todos na rua, ou presos.” Diante disso, senti que não poderia deixar a Secretaria naquela hora, mas decidido a deixá-la na primeira oportunidade, como de fato deixei.
Isso, no entanto, é outra história. O que eu quero dizer neste depoimento, é que lamentei profundamente o que aconteceu, e o apreço que de início tive pelo Vlado transformou-se numa admiração pelo resto da vida.
José Mindlin era na época, secretário de Cultura do Estado de São Paulo.