Carlito Maia, o Senhor Cidadania

Carlito Maia, o Senhor Cidadania

Meu querido Carlito: por você, não lamento a sua partida. Viver não pode ser sinônimo de sofrer, mesmo porque Deus nos criou para desfrutar de um Paraíso. E a sua agonia se prolongou por muitos anos. A última vez que nos vimos foi na terça-feira, 18 de junho. Você estava muito sereno quando, ao lado de Tereza, eu lhe dei a bênção da despedida. Agradecemos ao Pai de Amor o dom de sua existência. Agora, no colo de Deus, você ri de suas inquietações quanto aos mistérios que, para nós, se escondem do outro lado da vida.

Lamento a sua partida por nós que ficamos. Com a sua ausência, ficamos órfãos de quem nos ensinou a lutar por cidadania. "Brasil? Fraude explica", bradou você diante de tanta corrupção. Você era a cidadania em carne e osso.

O último pré-socrático. Com as suas frases curtas e certeiras, proverbiais e irônicas, construiu uma obra literária e contestatória de inestimável valor, inclusive filosófico, com o mérito de proferir axiomas que todos entendem.

Viramos cúmplices desde 1966, quando nos conhecemos no convento dos dominicanos, no bairro de Perdizes, na capital paulista. Convidado por um dos padres, você veio pronunciar palestra sobre televisão. Contou como funcionava a sua agência de publicidade, a Magaldi, Prosperi & Maia; como você descobriu Roberto Carlos num show de calouros da TV Tupi; como desenhou o perfil da Jovem Guarda, que se tornou, naquela década, o programa da TV Record de maior audiência nacional.

Desde então não perdemos mais o contato, mesmo porque sua irmã Dulce se tornou minha companheira no Teatro Oficina, na resistência à ditadura, no cárcere. E a minha admiração só cresceu, pois você jamais pôs a alma a leilão. Depois de beber tudo a que tinha direito num coquetel de indignações, transformou-se num ébrio de utopias. "Sonho, logo existo" era o seu lema.

Espelhou-se em Chaplin, seu alter ego, e combateu o regime militar sem perder o humor e o amor. Virou contrabandista de gente, produtor de fugas, alcoviteiro de guerrilheiros, semeador de esperanças. Acionou sua metralhadora giratória de frases e citações, fazendo da ironia uma arma capaz de derrubar prepotências e denunciar safadezas.

Poeta do cotidiano, socialista compulsivo, sempre partilhou com amigos e amigas a irreverência de seus textos e recortes de jornais e revistas.

Artífice da vida, jamais esqueceu aniversários e homenagens, celebrados por você com a alegria das flores, como quem semeia primavera ainda que reine rigoroso inverno neste país e em nossos corações. E agora, quem nos mandará "beijares e abraçares" em papéis timbrados da Rede Globo, com a sua assinatura acompanhada de uma estrela vermelha?

Quem, como você, soube fazer amigos? Betty Milan retratou esse dom em O Clarão, sua biografia afetiva. Você, que viveu "livre e solitário como uma árvore, porém solidário como uma floresta", sabia e nos ensinava que "nós não precisamos de muita coisa. Só precisamos uns dos outros".

Mineiro como eu, você nunca foi daqueles que ficam em cima do muro para ver melhor os dois lados. Homem de opções e ações, teve a dignidade embonezada pelo MST, que sempre contou com o corajoso apoio de quem soube enfatizar que "a luta é entre os sem-terra e os sem-vergonha".

Fundador do PT, você cunhou as expressões "Lula-lá" e "sem medo de ser feliz" e preferia "perder com as bases a vencer sem elas". Desconfiado, você sabia que, "quando a esquerda começa a contar dinheiro, converte-se em direita".

Sua vida, coerente e bela, foi o brado maior de quem jamais teve medo de algo tão simples e, no entanto, hoje raro: vergonha na cara. Pois você, fiel às suas raízes, sempre nos recordava que "é de pequenino que se torce o destino". Tanta coerência refletia esta sua autodefinição: "Sou o que de mim fiz porque assim quis."

Louvo a Deus, pleno de gratidão, pela dádiva de sua existência. "A esperança já perdi várias vezes", dizia você. "A fé, jamais." Ainda bem, meu querido amigo, tão amado por Deus e por todos nós que, nesta terra de papagaios, vamos sentir muito a falta de quem não desperdiçava palavras e esbanjava bom humor.

Num dos últimos bilhetes que você me enviou há a transcrição de uma frase de Antonin Artaud: "Parto à procura do impossível. Vamos ver se o encontro."

Guardo a certeza de que, aqui nesta Terra, valeu o esforço de quem, em vida, teve a honra de ver o próprio nome batizando o Troféu Cidadania da revista Imprensa. No avesso desta existência sei que, agora, não há mais nada impossível para você. Para sempre, sua vida é terna.

A Deus, Carlito.

*Publicado no jornal O Estado de São Paulo – OPINIÃO – 26.junho.2002

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