Foi um gênio, mas isso não importa. Suas frases curtíssimas, seus achados brilhantes, ainda que publicitários, desenharam em parte a fisionomia da cultura brasileira recente

Carlito Maia e traduções

A História do Brasil não passa de uma seqüência de erros de tradução. Muitas vezes, erros crassos. Um exemplo? Muito fácil. Há pouco mais de 30 anos, os americanos tinham lá um (bom) slogan patrioteiro: ‘America: love it or leave it‘. Pois bem, a ditadura militar no Brasil resolveu transpô-lo para os trópicos: ‘Brasil, ame-o ou deixe-o’. Pode haver prosódia mais abominável? O erro de tradução é acintoso. Não, o erro não está no sentido literal da estultice, mas na sonoridade bovina da frase abrasileirada. O que soa bem em inglês, range feito um mugido em português. ‘Ame-o ou deixe-o.’ Ninguém fala desse jeito, só dubladores (que em filmes de cowboy gritam barbaridades como ‘Peguem-no! Não o deixem escapar!’). ‘Ame-o ou deixe-o’… Parece um desses exercícios que a gente faz quando vai a uma fonoaudióloga, fazendo com o maxilar o mesmo movimento circular das vacas quando ruminam.

E olhe que poderia ter sido pior. Se os militares tivessem convocado um publicitário, a coisa talvez saísse na linha criativa. Já imaginou o desastre? Como estamos aqui às voltas com imagens pecuárias, uma possível tradução ‘criativa’ me assalta a imaginação: ‘Brasil, ou você ama ou desmama’. Blergh… Ou: ‘Brasil, ou você adora ou você cai fora’. Sim, eu sei, piorou. Vai ver que foi por isso que deixaram aquele ‘amiuoudeixiu’ literal mesmo. Parece incrível, mas o vexame foi menor. Foi apenas mais um caso de erro de tradução. Erro de contexto. Idéias fora de lugar, diria Roberto Schwarz. Slogans fora de lugar, isto sim.

A nossa bandeira nacional também tem lá, bem no centro, o seu slogan fora de lugar. ‘Ordem e progresso’, como se sabe, é um lema importado, traduzido e censurado. Veio da Igreja Positiva, inventada por Auguste Comte, cujo mote era: ‘Amor, ordem e progresso’. Eu não sabia disso até que, um dia, Carlito Maia me contou. Ele queria que a palavra ‘amor’ entrasse na bandeira do Brasil. Ele tinha toda razão. Seria mais justo, mais íntegro e mais amoroso se assim fosse.

Dizendo o nome de Carlito Maia eu, finalmente, chego a quem me leva a escrever este artigo. Esse quem é Carlito Maia, que sempre defendeu o amor antes da ordem e muito antes da promessa de progresso. Carlito, que me ensinou a transformar o amargor numa risada. Que, rindo da autoridade, libertava a inteligência. Carlito morreu no sábado, no Hospital Sírio Libanês, em São Paulo. Tinha 78 anos. Seu corpo sucumbiu a uma ‘doença degenerativa crônica’, no dizer dos médicos. Sua atitude não sucumbiu. No caixão, com bolinhas de algodão no nariz e a boca entreaberta, velhinho e magrinho que só, estava rindo. Rindo para mim e rindo de mim, um pobre jornalista que critica os publicitários. E rindo com razão: Carlito, um publicitário, me deu muita lição de jornalismo.

Foi um gênio, mas isso não importa. Suas frases curtíssimas, seus achados brilhantes, ainda que publicitários, desenharam em parte a fisionomia da cultura brasileira recente. Foi ele quem batizou a Jovem Guarda de Jovem Guarda. Melhor que isso: ele me contou, já faz tempo, que tirou essa expressão de uma tradução portuguesa de uma obra de Lênin. Era uma frase mais ou menos assim: ‘O futuro da humanidade repousa nos ombros da jovem guarda’. É uma apropriação antropofágica e magistral. De novo, um deslocamento de tradução nomeia a cultura brasileira.

Carlito foi também o gênio por trás da imagem do PT, uma espécie de Duda Mendonça do bem. Criou os slogans ‘oPTei’, ou o ‘vaPT-vuPT’, ou o ‘Lula-Lá’, e mais uma longa lista. Orientou os primeiros programas de televisão do Partido dos Trabalhadores, ao lado de Chico Malfitani e de Erazê Martinho. Sem ele, o PT não teria a imagem que tem ou, melhor dizendo, a boa imagem que tem. Sobre a má imagem, ele jamais teve a menor responsabilidade. Dizia apenas que o PT era dividido entre xiitas e chaatos. E, outra vez, tinha razão.

Publicitário de esquerda, petista (não roxo, mas rubro), foi gerente de comunicação da Rede Globo em São Paulo. Era uma divertida contradição em termos. A Globo pagava os buquês de flores que ele mandava diariamente, desde os tempos da ditadura, para os amigos que aniversariavam, que tinham filhos, que lançavam livros, que estreavam peças, que faziam discursos de oposição no Congresso. Depois que sua doença começou a se agravar assustadoramente, e isso de dez anos para cá, a Rede Globo pagou muito mais que flores. Pagou muito mais do que mandavam suas obrigações trabalhistas. A Globo dedicou a seu funcionário ilustre uma atenção que não será esquecida. Carlito jamais foi unanimidade, mas chegou muito perto. Foi velado com homenagens do PT, do MST e da Globo. Nada mais justo.

O seu apelido, Carlito, era uma nítida alusão ao personagem de Chaplin, o Carlitos pobre, frágil, engraçado e de coração puro. Era assim, aliás, como um Carlitos à brasileira, que os cartunistas gostavam de desenhar Carlito Maia. Tudo a ver. O Carlitos do cinema desbancava todas as tiranias, desde a exploração do trabalho (em Tempos modernos) até o totalitarismo político (O grande ditador). O nosso Carlito fez igual. Foi, portanto, uma tradução viva do personagem solidário de Chaplin. Mas, exceção a todas as regras, não foi um erro de tradução: foi um acerto magnífico, isto sim. Melhor que o original. Por meio de Carlito Maia, o Brasil sonhou seus melhores sonhos. E sonhos não morrem.

*Eugênio Bucci é jornalista.
 

Publicado no Jornal do Brasil – Caderno B – 27/06/2002