O Tribunal de Contas da União está contestando a lucratividade excessiva das concessionárias de estradas de rodagem, ao redor de 20% acima da inflação, e discutindo como proceder a uma revisão dos respectivos contratos. O caso revela o que é evidente: as privatizações, quase sempre, melhoram a qualidade de um lado e encarecem fortemente os serviços de outro.

Os usuários tinham antes estradas muito ruins mas não pagavam nada para transitar por elas. Na telefonia o serviço melhorou notavelmente em qualidade e o dispêndio com as contas deve ter sido multiplicado por cinco ou mais. As tarifas dos aeroportos, quando privatizados, certamente se vão elevar enormemente. Estou falando de serviços públicos usados majoritariamente pelas classes de renda média e alta, que podem pagar os preços mais elevados e preferem que seja assim. Por essa razão, as privatizações, nesses casos, são toleradas até pelos que pensam que os serviços públicos devem ser gratuitos, financiados pelas receitas publicas arrecadadas através dos impostos.
 

Seguem sendo ainda efetivamente públicos aqueles serviços de utilização universal, que devem beneficiar toda a população, independentemente de nível de renda, e na realidade são mais utilizados pelos mais pobres, mais numerosos, como as redes de água e esgoto, a coleta de lixo, e os atendimentos públicos na área de saúde e educação. A privatização, nesses casos, não deve ser nunca admissível. Entretanto, na prática, funciona no Brasil um odioso sistema misto nos setores de educação e de saúde, onde há um atendimento bom e privado para os ricos e um de má qualidade, público, para os pobres, constituindo este arranjo uma das maiores fontes de desigualdade e injustiça de nossa sociedade. O direito à vida e ao bom atendimento de saúde, assim como o direito às melhores formas de educação em geral, são direitos fundamentais, não podem ser privilégio dos que têm dinheiro para pagá-los. A boa solução dessas questões constitui, na verdade, o maior desafio a ser enfrentado pelos brasileiros. E quem conhece, minimamente, o funcionamento desses setores públicos no País e as condições em que trabalham os seus servidores sabem perfeitamente que não é possível esse enfrentamento sem um reforço substancial das dotações orçamentárias a eles destinadas.

A carga tributária, ao contrário do que brada a nossa mídia, não é nada excessiva para os brasileiros de renda média e alta; os ganhos de capital e os patrimônios elevados poderiam e deveriam pagar mais impostos, mas politicamente não é fácil fazer uma reforma tributária que compreenda essa elevação seletiva. Assim é que a solução encontrada tem sido a de tributar indiretamente essas rendas mais altas, através da privatização de serviços mais largamente utilizados por elas, como as rodovias, os telefones e agora os aeroportos, fazendo com que paguem tarifas altas às concessionárias encarregadas dos respectivos custos de operação e manutenção, aliviando as despesas do Estado. Por esta via, supostamente, sobrariam mais recursos públicos para aplicação nos serviços essenciais.

Tem havido, realmente, um acréscimo em valor real nas dotações dos três níveis de governo para os setores de educação e saúde. Divididas essas novas fatias do Orçamento com a dos novos programas sociais, também altamente prioritários, os acréscimos, entretanto, têm sido insuficientes. Daí a idéia de aumentar a área de privatização dos serviços de ricos, com a inclusão dos aeroportos. É um caminho politicamente mais fácil do que uma reforma tributária capaz de coletar mais recursos dessas camadas de renda que vão pagar mais pelas viagens aéreas.

Estamos falando da privatização de serviços públicos, profundamente diferente da privatização de empresas industriais ou mineradoras. As estatais desses setores têm outra função bem diferente, são importantes para desobstruir gargalos e impulsionar o desenvolvimento econômico, na medida em que tenham sua gestão voltada para este propósito e não apenas para a obtenção do maior lucro possível, que é a lógica do setor privado. A Petrobrás, a Eletrobrás e as empresas de energia elétrica, e agora também a Vale do Rio Doce procuram desenvolver as indústrias nacionais, colocando no País o máximo de suas encomendas em vez de procurar o melhor preço pelo mundo a fora. A nova Telebrás vai ampliar grandemente a rede nacional de banda larga, sem querer saber se o mercado de uma pequena cidade compensa o investimento. Penso que a organização da produção e da comercialização do nosso promissor etanol está a exigir uma empresa estatal para assumir esta tarefa, e que a navegação mercantil, tão importante no passado pela nossa vocação, também espera que o Estado organize uma empresa brasileira de logística e transporte marítimo.

Enfim, este debate entre as alternativas públicas e privadas para assumir atividades essenciais de uma nação voltou a ser bem vivo e atual, após o desmoronamento daquele pensamento único do mercadismo absoluto e arrogante, que produziu resultados tão funestos sobre a economia mundial e a distribuição de renda e de poder entre as populações do planeta. É sempre bom aprofundá-lo, mostrar a relevância do setor público e as várias faces da necessária presença do Estado.

*Roberto Saturnino Braga é ex-senador pelo PT/RJ, integra o Conselho Curador da Fundação Perseu Abramo e é autor de O curso das idéias, publicado pela Editora Fundação Perseu Abramo. Contatos: [email protected]