Mulheres na política: subverter valores, reordenar espaços
A experiência histórica indica que as conquistas das mulheres só se dão em períodos de expansão democrática, sob pressão das próprias mulheres, contando com o apoio do pensamento avançado da sociedade. É preciso ter presente que em toda onda obscurantista a primeira vítima é a mulher. Esta constatação tem, no período da Inquisição, sua maior comprovação com o simbolismo das fogueiras que consumiam as “bruxas” – aquelas mulheres que ousavam transgredir as verdades estabelecidas.
Compreendendo-se que a construção de conquistas depende do tempo e das circunstâncias é importante resgatar os aspectos centrais do momento presente para descobrir os caminhos a serem percorridos.
O legado do século XX é contraditório. O início dos anos 900 é marcado pelas vitórias do mundo do trabalho com as primeiras experiências de construção das sociedades socialistas. Nelas, valores morais que ressaltavam a solidariedade e o combate aos preconceitos contribuíram para importantes conquistas institucionais das mulheres. Em meados do século, outros passos são dados. As mulheres iniciam uma jornada de afirmação da própria identidade e de sua visibilidade que teve, na produção de Simone de Beauvoir um simbólico marco. Conferências mundiais sucessivas marcaram a construção política desses avanços. Nesse período, a humanidade se descobriu mulher.
Lamentavelmente, o fim do século é marcado pelo avanço da barbárie das guerras, a ofensiva dos fundamentalismos e a quebra de paradigmas de humanidades em todo o mundo. É nesse contexto desafiador que se desenvolve a busca da mulher por mais espaços de poder.
Acompanhando a herança perversa da sociedade capitalista globalizada, do final do século, a construção política brasileira apresenta componentes que se opõem aos melhores pressupostos da tradição democrática. O estado brasileiro é marcado pelo autoritarismo na elevada concentração de poder de sua república; pelo elitismo da sua representação eletiva que se originou no voto censitário, onde voto e poder econômico nasceram juntos; e na apropriação privada da coisa pública cujas históricas chagas da corrupção só agora vêm à plena luz do dia, na sua inteireza.
A subversão de valores nas conquistas das mulheres
A experiência brasileira comprova que toda conquista das mulheres teve como pano de fundo de sua sustentação a subversão de valores da própria estrutura da sociedade. O direito do voto feminino foi um subproduto da revolução de 30, em confronto com os valores das oligarquias rurais. Naquele período, a expansão da sociedade industrial/urbana confrontava com a estrutura de poder dos coronéis que asseguravam sua representação política através dos famosos currais eleitorais. A universalização do voto era componente importante para a ruptura com a hegemonia rural do poder político. A intensa mobilização das “sufragistas” contou com uma necessidade objetiva de modernização do estado brasileiro. O voto feminino foi resultante desses dois movimentos.
A licença-maternidade, outra importante conquista feminina, que referendou o sentido social da maternidade é produto das lutas dos trabalhadores e da necessidade nascente do Brasil industrial, em confronto com a produção agrária. Incorporar as mulheres no mercado de trabalho, mesmo que ainda em grau limitado naquele período, exigia a regulamentação de suas condições específicas. A participação das mulheres na atividade agrária tradicional não as retirava da proximidade do lar, por isso não era uma exigência da estrutura rural. Passou a ser uma exigência do Brasil urbano, fruto de sua expansão industrial.
As décadas de 80 e 90 tiveram como conquista a criação de organismos específicos nas administrações públicas. Em 1985 é criado o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, período marcado pela criação dos conselhos estaduais e das delegacias específicas de crimes contra a mulher. Esta expansão das iniciativas do Estado em relação ao combate às discriminações contra as mulheres foi a materialização da ruptura com o estado ditatorial fechado às demandas democráticas da sociedade.
O ponto mais relevante do processo de apropriação por parte do Estado, do combate institucional às discriminações contra a mulher é a aprovação do Plano Nacional de Políticas Públicas para as Mulheres, enviado pelo governo Lula e aprovado pelo Congresso Nacional. A unificação das políticas públicas, representada pelo Plano nacional tem o significado simbólico da retomada do papel do estado nas demandas sociais, em confronto com o modelo neoliberal de Estado mínimo.
Esse resgate histórico das conquistas femininas comprova a íntima relação que elas têm com os avanços democráticos, impondo aos movimentos feministas a agenda global da sociedade.
Radicalizar na democracia, reordenar espaços de poder
O novo momento da democracia brasileira, com a eleição de Lula, impõe maior protagonismo da sociedade para subverter os valores estratificados. A reeleição de um operário para continuar conduzindo o governo do país significou a confiança da parte excluída da população brasileira, em buscar seus próprios caminhos para superar os impasses do seu desenvolvimento e suas desigualdades seculares. Mas o gesto inaugural da eleição não assegura, por si só, a construção real de um novo tempo. A pressão organizada dos setores tradicionalmente excluídos é elemento decisivo do processo de mudança. Os defensores do “estabelecido” continuam com fortes instrumentos de pressão para manter a situação presente. Por isso a retomada da expansão do movimento feminista e de sua autonomia é pressuposto para a necessária pressão transformadora.
Passa a ter prevalência a luta pela incorporação das mulheres nas instâncias de poder, como componente decisivo da democratização da estrutura política do Estado brasileiro. A inclusão da mulher na política não pode ser vista apenas como direito. Essa incorporação é parte essencial da construção democrática, é dever do estado e da sociedade.
Neste momento o principal desafio é levar a mulher a encontrar sua perspectiva de poder através da construção de seu empoderamento, da articulação de redes de apoio para a sua participação política, da conquista de uma reforma política sob a ótica de gênero e do reforço de sua presença nas estruturas dos partidos.
A construção de seu empoderamento passa pela reafirmação de sua auto-estima, pela ampliação do recrutamento feminino para uma participação política e pela criação de mecanismos de sua qualificação. A articulação de redes de apoio que viabilizem e reforcem essa participação são componentes essenciais nessa estratégia. As dificuldades dos partidos em absorverem a temática de gênero, a baixa representação das mulheres nas instâncias decisórias, as dificuldades de acesso ao fundo partidário são obstáculos a serem enfrentados. A criação do Fórum de Coordenadoras Nacionais de Organismos de Mulheres é um exemplo de mecanismo que pode contribuir na superação desses obstáculos. Exemplo que deve ser multiplicado nos níveis estaduais e municipais.
O reordenamento dos espaços de poder, que permita a inclusão das mulheres, passa necessariamente pela aprovação de uma reforma política sob a ótica de gênero. Alguns pressupostos dessa reforma contribuem para essa inclusão: a) o caráter democrático que assegure a pluralidade da representação passa pela manutenção do voto proporcional. É através dele que a mulher consegue melhores condições de alcançar representação; a nitidez ideológica programática através da fidelidade partidária, ordenada pelos partidos é parte dessa construção; a diminuição da força do poder econômico, com o financiamento público é o caminho para viabilizar recursos materiais para as candidaturas femininas; e o reforço dos partidos através das listas pré-ordenadas, regulamentadas para garantir a implementação das cotas e a participação democrática dos convencionais é o caminho possível de ampliar a representação feminina nas instâncias de poder.
Propostas de ampliação da participação feminina na reforma política
A batalha concreta para a ampliação da participação feminina nas instâncias de poder teve, no recente debate da reforma política na Câmara Federal uma experiência real dos obstáculos a serem superados. Para começar, os elementos centrais de financiamento público e das listas preordenadas foram obstaculizados pela lógica conservadora que derrotou, na votação da Câmara, a lista mista apresentada pela Emenda Aglutinativa com metade dos eleitos na lista preordenada e metade na votação direta dos mais votados. O financiamento público na eleição legislativa foi derrotado, o que limita a superação do componente fundamental nas candidaturas femininas que é o acesso aos recursos materiais para as campanhas.
No debate sobre o tema, algumas medidas de ampliação dos espaços para as mulheres, mesmo que ainda não regulamentadas foram incorporadas pelos relatores:
A) Quanto às cotas: as propostas apresentadas ao plenário incluíam – “Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou federação deverá reservar o mínimo de trinta por cento e o máximo de setenta por cento para as candidaturas de cada sexo” (Artigo 8-A, inciso III, parágrafo 4º) Emenda Aglutinativa de Plenário. “A ordem de precedência dos candidatos na lista pré-ordenada corresponderá à ordem decrescente dos votos por eles obtidos na convenção, procedendo-se aos ajustes necessários para que não haja mais de duas candidaturas consecutivas de pessoas do mesmo sexo, no primeiro terço da lista” (Artigo 8º, parágrafo 4º das Emendas de Plenário do relator Dep.Ronaldo Caiado).
B) Quanto aos recursos do Fundo Partidário: Os dois relatórios apresentados incluíam: “Na criação e manutenção de instituto ou fundação de pesquisa e de doutrinação e educação política, sendo esta aplicação de, no mínimo, vinte por cento do total recebido, dos quais, pelo menos, trinta por cento serão destinados às instâncias partidárias dedicadas ao estímulo e crescimento da participação política feminina”. (Artigo 44, inciso IV dos dois relatórios).
C) Quanto ao tempo de Rádio e TV: este foi um componente também de consenso entre os dois relatórios que indicavam: “Promover e difundir a participação política das mulheres, dedicando ao tema, pelo menos vinte por cento do tempo destinado à propaganda partidária gratuita” (Artigo 45, inciso IV dos dois relatórios).
Pontos aprovados pelo Congresso Nacional em 2009 que beneficiam diretamente as mulheres brasileiras são:
1. O parágrafo terceiro do artigo 10 da Lei 9.504/1997 passa a vigorar com a seguinte redação: Do número de vagas resultante das regras previstas neste artigo, cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo.
Na redação anterior a palavra utilizada era reservará. Com a mudança os partidos têm de, necessariamente, manter a proporcionalidade de um mínimo de 30% e um máximo de 70% por sexo na sua lista de candidaturas.
2. São acrescidos o inciso V e o parágrafo 5º ao Artigo 44 da Lei 9.096/1995 que regula a aplicação de recursos do Fundo Partidário:
V. Na criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres conforme percentual que será fixado pelo órgão nacional de direção partidária, observado o mínimo de 5% do total. (NR)
§ 5º o partido que não cumprir o disposto no inciso V do caput deste artigo deverá, no ano subseqüente, acrescer o percentual de 2,5% do Fundo Partidário para essa destinação, ficando impedido de utilizá-lo para atividade diversa.
3. O artigo 45 da Lei 9.096/1995, que trata da propaganda partidária gratuita fica acrescido do inciso IV:
IV – promover e difundir a participação política feminina, dedicando às mulheres o tempo que será fixado pelo órgão nacional de direção partidária, observado o mínimo de 10%. (publicado pela Secretaria Especial de Política da Mulher).
Estas mudanças aprovadas apesar de limitadas em relação as demandas das mulheres representou avanços.
Na batalha para tornar a inclusão das mulheres nas instâncias de poder um DEVER DO ESTADO E DA SOCIEDADE há um longo caminho a percorrer. O primeiro passo a ser dado é lutar por incluir a mulher na batalha por desenvolver o país com distribuição de renda e superação das desigualdades.
As conquistas das mulheres só se dão no ventre da liberdade, sob pressão das próprias mulheres, com apoio do pensamento avançado da sociedade.
Jô Moraes – Deputada Federal – PCdoB-MG
Distribuído no Seminário: As Mulheres e a Reforma Política, realizado em Brasília no dia 10/04/2011.