Para ajudar o Brasil a inverter a lógica do desenvolvimento predatório, o professor, teólogo e pastor da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) Silvio Meincke ouviu cientistas alemães e brasileiros. Também conheceu a experiência de indígenas, quilombolas e pequenos agricultores. Todos contribuíram com o livro “Quem vai alimentar o mundo?”, lançado pelo teólogo em Porto Alegre, nesta segunda-feira (9). A obra é um apanhado de depoimentos, que convidam o leitor a compreender o que está acontecendo no mundo, hoje, em termos de produção de alimentos. A obra aponta para a necessidade de produção sustentável e respeito à biodiversidade, baseado em informações de um cientista alemão do Conselho Agrícola Internacional e em experiências cotidianas de 14 brasileiros.

Em entrevista ao Sul21, o professor disse que acredita que a soberania alimentar do planeta é uma questão urgente, pois a humanidade chegará a nove bilhões de pessoas no próximo século. Sílvio Meincke crítica tanto a produção de alimentos transgênicos quanto a degradação do meio ambiente para produzir alimentos. Ele informa que o mundo produz três vezes mais do que precisaria e mesmo assim há milhões de famintos. Meincke defende a conscientização do consumidor e dos produtores sobre a necessidade de preservar o ecossistema. Sugere, também, uma reedução alimentar como outra forma inteligente e saudável para viver no Brasil.

O teólogo também falou sobre uma experiência vivida dentro de sala de aula que o levou a desenvolver um estudo sobre a felicidade. O que é ser feliz? Ele mesmo responde na entrevista a seguir:

Sul21 — O que é ser feliz? É relativo isso…. (diz repórter ao sentar para conversar olhando o título do livro)

Sílvio Meincke Eu escrevi este livro quando um jovem me disse em aula de forma desesperada: “Professor eu quero ser feliz”. E eu me perguntei: “O que eu vou dizer concretamente?” Então, fui consultar filósofos, antropólogos e nenhum me deu uma resposta satisfatória. Resolvi devolver a pergunta aos alunos. 40 alunos me disseram até três coisas que são necessárias para eles serem felizes. Tu podes imaginar a confusão que deu. Surgiram 70 coisas diferentes. Tive que selecionar e cheguei a até quatro pontos, que chamei de poços.

1º poço – a necessidade MATERIAL: ter dinheiro, poder pagar um dentista, ter uma casa, poder se vestir

2º poço – a necessidade SOCIAL: poder participar da sociedade em que se vive, poder opiniar, ter respeito e sentir-se integrado com os grupos. A pior coisa para um jovem, que causa revolta, é ele não se sentir integrado. A rejeição é um passo para a violência.

3º poço – a necessidade AFETIVA: ter aconchego, um colo, a sexualidade. Ter alguém de confiança, de quem gostamos tanto que queremos dormir de baixo da mesma coberta.

4º poço – a necessidade ESPIRITUAL: muitos desprezam, mas precisamos desta referência, deste conforto.

O grande erro que se faz é alimentar apenas um poço. No caso do sistema neoliberal em que vivemos, abastecer apenas o poço material. A ordem do consumo. Você tem que produzir mais para ser mais eficiente. Todos os outros valores passam a ser rejeitados e esquecidos. Alguém que quer ser feliz precisa manter abastecido estes quatro poços.

Imagino que o senhor não poderá me dar uma resposta objetiva, mas, pelo que está dizendo, jovens em condições econômicas inferiores estão condenados à infelicidade?

Não. Ele pode ser feliz. Estas quatro áreas são comunicantes. Em primeiro lugar, um poço pela metade também sacia a sede. Em segundo, tem pessoas que tem sede em apenas uma área, mas as outras compensam. Um jovem favelado pode se sentir aconchegado em um grupo social ou numa família e se sentir respeitado ou amado. Ele pode ser feliz sem bens materiais, ou mesmo como uma deficiência física. O que não dá é para abastecermos um poço só durante a vida toda.

Hoje, se me acontecer de novo um episódio como o da minha aluna, que saiu da sala chorando, dizendo que queria ser feliz, eu sei o que dizer. Direi: “Cuida destes quatro poços”. 

A sua motivação para ir em busca deste conhecimento e propor uma reflexão com seus alunos não é algo que se encontre em todos os professores. O senhor acredita que há uma deficiência no ensino dos valores humanos em sala de aula?

A globalização, em si, é uma coisa boa. O problema é que o substantivo, globalização, tem um adjetivo: NEOLIBERAL. O sistema neoliberal não pode ser solidário e cooperativo. Tem que ser competitivo, porque a razão está no mercado. E o mercado quer lucro, mais consumo, competição. Isso penetra na sala de aula. Os professores carregam isso. Nós não podemos evitar a globalização neoliberal, mas temos que oferecer aos alunos a chance de perceberem que existe outro regime. A chance de que vivam experiências de cooperação. Eu penso que os jovens e todos nós devemos desenvolver os nossos talentos, mas não ficarmos apenas nós nossos interesses. A cooperação leva junto o forte e o mais forte, o bonito e o mais bonito, o branco e o negro. No neoliberalismo não; o mais forte corre na frente. Na Alemanha, por exemplo, o PIB vem sendo acrescido durante décadas e a população é sempre a mesma. O bolo está crescendo há décadas e a população é a mesma. Mas, ao mesmo tempo, mais pessoas estão empobrecendo e o Guiness Book divulga os novos milionários. Até 1970 não era assim. Existia uma rede social que amparava os mais fracos. Mas, o sistema neoliberal diz que é cada um por si. Então a rede social foi extinta. Hoje defendem a privatização da previdência. O governo mais neoliberal do mundo, os EUA, tem 40 milhões de pessoas que não tem previdência. Que modelo econômico é este?

Qual o caminho para o sistema previdenciário brasileiro, uma vez que o governo federal já cogita uma Reforma da Previdência sem descartar a privatização?

O governo progressista, que vem dos mandatos de Lula, está resistindo ao neoliberalismo como pode. Eu digo isso com base nos programas sociais que (Lula) adotou, principalmente, para o pequeno agricultor. Eu sou filho de um pequeno agricultor e nunca a pequena propriedade foi apoiada como atualmente. A inclusão da pequena propriedade na Conab também aconteceu. Eu dizia isso antes aos prefeitos: “Como pode ter tanta fruta e outros alimentos apodrecendo nas fazendas e vocês compram suco artificial para a merenda escolar?”. Hoje, isto é obrigatório. 30% da merenda têm que ser de produtos dos pequenos agricultores.

Como partimos da sala de aula, a grande tarefa dos educadores é articular esta realidade com a vida do estudante, para que eles compreendam o mundo em que vivem, exercitem a visão crítica do mundo e entendam que podem viver em cooperatividade e não ter apenas a felicidade do consumo ou dos bens materiais. 

No seu livro “Quem Alimentará o Mundo?”, o senhor revela a problemática da produção e do consumo de alimentos no mundo. Qual são os problemas?Eu trouxe um grupo de agricultores do sul da Alemanha, que são de uma associação ligada à igreja, porque a igreja organizou os colonos depois da 2ª Guerra Mundial para que eles se conscientizassem e não se repetissem as barbaridades daquele período. Estes agricultores queriam conhecer a região de onde vêm a soja, alimento para suas vacas, suínos e aves. Visitamos o centro-oeste brasileiro, fomos ao Mato Grosso, que é a maior chapada plantada no mundo. Nós viajamos duas horas e sempre vendo em 360 graus o horizonte, de tão plano que é o lugar. Onde os olhos alcançavam víamos soja. Mas, não era qualquer soja. Era soja produzida pela Mão Santo e protegida pelo veneno da Monsanto. Eu li que no município de Túlio Verde foram despejados 1,5 milhão de litros de veneno acaricida, fungicida, inseticida, que se tornam homicidas (risos). E fizeram um levantamento com 19 lactantes e todas elas apresentaram resíduo de veneno no leite materno. Então, a criança nasce e já está tomando veneno. Este modelo agrícola está destruindo a vida e não está alimentando o mundo. Há, no mundo, 1 bilhão de pessoas cronicamente famintas. O Brasil produz três vezes a quantia de calorias necessárias para alimentar os brasileiros. Apesar disso, tem brasileiros pobres famintos. É sinal de que o sistema está errado.

De onde são estes dados?

São dados do Conselho Agrícola Internacional, formado por 500 cientistas das diferentes áreas do saber humanos, contratados pelo Banco Mundial para desenvolver um estudo durante quatro anos. Incluíram pequenos agricultores e fizeram um relatório de duas mil páginas. Eu não tive força de trabalhar um relatório tão extenso, mas procurei o único alemão que fez o estudo. Eu fui a Stuttgart falar com ele e ele disse que não tinha tempo. Depois fui a Munique e ele perguntou quanto eu pagaria. Eu o procurei em Strasburgo e em Berlim ele finalmente cedeu a um argumento meu. Eu disse que iria publicar o estudo no Brasil. Então ele se empolgou. Ele disse que o nosso país tinha que saber do estudo, por ser o campeão em veneno. O Brasil é campeão de veneno, mas ao mesmo tempo tem grandes áreas que podem alimentar o mundo. Dentro de 40 anos seremos 9 bilhões. Como a humanidade irá alimentar estas bocas, sem destruir a vida do planeta? Com este modelo vai destruir. Todos sabem. Mas a Syngenta, a Bunge, a John Deere e a Monsanto impuseram este modelo. Os lobistas destas grandes empresas frequentam os mesmos salões que os grandes políticos em Brasília. É muito difícil reverter isso. Mas existe possibilidade de uma produção sustentável ecológica e socialmente, respeitando a biodiversidade da pequena propriedade. Na Alemanha, consumo apenas produtos agrícolas biológicos, sem veneno ou adubo químico.

Existem 2 bilhões de pessoas na Ásia que vivem em áreas não maiores que dois hectares. É preciso pesquisas para este tipo de produção. Mas as pesquisas são para 100 mil hectares, 50 mil hectares, porque assim vendem as máquinas e toneladas de veneno.

Precisa ser colocada a pesquisa na mão do estado. Porque para a iniciativa privada não interessa o desenvolvimento do pequeno produtor. Este é o caminho.

O senhor chega a uma conclusão sobre os caminhos para reversão desta lógica?

Não. Eu não tive a pretensão de dar uma resposta. Preferi colocar depoimentos, e o leitor tira suas conclusões. Por isso, dei a palavra a 16 pessoas. Dois alemães e 14 brasileiros. Falaram grandes proprietários, indígenas, quilombolas, técnicos (veterinários, agrônomos), o presidente do Incra, o presidente da Conab. E cada um apaixonado pelo seu trabalho. Sempre perguntei, antes da conversa, como começou o seu amor pela terra, para conhecer o apego das pessoas e sua história. Mas eu tenho a minha resposta para mim sobre quem irá alimentar o mundo.

Qual a sua resposta?

A soberania alimentar. Cada grupo social, estado e país irá decidir sobre qual alimento quer produzir e consumir. E não a Monsanto, a Syngenta, ou outras empresas. Por exemplo, em Gana havia um sistema em que as donas de casa tinham criação de frangos soltos no pátio. Mas, nos supermercados da Alemanha, tu só encontra peito de frango e sobrecoxa. Para onde vai a coxa, a asa, a carcaça e os miúdos? Para Gana. Em grandes contêineres. Tão barato que quebrou a produção das mulheres de Gana. Este é o sistema neoliberal. O mercado tem sua dinâmica de oferta e procura. O estado não pode intervir.

Nos países da Arábia se investe em petróleo e esquece-se da alimentação. O Peru, por exemplo, tem muitos famintos. Mas o presidente (Alan García) disse que é possível produzir para uma população três vezes maior, se investir na produção sustentável localizada na pequena propriedade. Mas, não se investiu.

No Brasil temos que produzir aquilo que precisamos para nos alimentar e se tivermos condições de produzir para ajudar os outros países, melhor. Mas, não podemos produzir aquilo que as grandes empresas ditam que é para produzir. E não precisa de transgênicos. É balela. Temos todas as condições de produzir sem mutações genéticas. Não sou eu que estou dizendo, são os 500 cientistas contratados pelo Banco Mundial. Tem também o Benedict Allen, ativista do Greenpeace. 

Qual a perspectiva mundial nos próximos 10 anos?

A conscientização do consumidor e dos produtores que estão envenenando as regiões. As pessoas não podem ficar quietas se até o leite materno está ficando contaminado. Podemos também reduzir o consumo de carne. Ao invés de consumir os grãos, gastamos e desprendemos energia para transformá-lo em carne. Eu sei que é difícil mudar, ainda mais para os gaúchos, mas é preciso. Em outros países isso já acontece. A carne está sendo menos consumida e deve ser, se queremos alimentar 9 bilhões, que será a população mundial no próximo século. Este é o caminho para os próximos 50 anos.

E quais as perspectivas do Rio Grande do Sul?

Aqui os agricultores não podem cortar a mata nativa, mas foi muito desmatado desde 1924, quando vieram os primeiros imigrantes alemães. A consiceitização de que não podemos desmatar é recente. Precisa avançar. Eu aposto muito na divulgação deste estudo do Conselho Agrícola Internacional. É por isso que escrevi o livro e está à disposição do estado e de todos.

O senhor conhece a proposta do novo Código Florestal Brasileiro? Há pontos que flexibilizam o limite de áreas de preservação permanente, por exemplo. O que o senhor acha disso?

Não conheço o Código Florestal em detalhes. Mas, defendo que não podemos mais desmatar. Não precisamos desmatar para comer. Já produzimos calorias a mais do que precisamos para nos alimentar. Eu estive no Pantanal e lá os pescadores são pagos para não pescarem fora da época. Isso é um projeto bom. Qualquer programa que vá ao contrário disso ou que permita o desmatamento está errado. Nós temos grandes reservas indígenas e ecológicas para preservar no Brasil.