Reforma política, mas não a qualquer custo
A Reforma Política é uma oportunidade importante de aperfeiçoamento das instituições políticas brasileiras. Entretanto, considero que ela, se não ocorrer, não causará um desastre nacional. E se for para produzir um resultado que diminua a representação popular, aí é melhor que não ocorra.
A Reforma Política é uma oportunidade importante de aperfeiçoamento das instituições políticas brasileiras. Entretanto, considero que ela, se não ocorrer, não causará um desastre nacional. E se for para produzir um resultado que diminua a representação popular, aí é melhor que não ocorra.
Consequentemente, o que deveremos procurar construir é um novo sistema eleitoral que melhore a participação popular, que reduza o peso do poder econômico (reduzindo o custo das campanhas) e que melhore a eficiência do sistema representativo.
Mas antes de discutir como poderia ser uma reforma política aperfeiçoadora, considero imprescindível desmistificar a concepção que considera a falta de representatividade política que o atual sistema detém como uma má formação ahistórica, algo mecânico, que poderia ser corrigido por meros reparos legais.
O problema é muito mais complexo. A despolitização reinante em amplos segmentos sociais, desde a base até a muitos subsetores médios, tem raízes sociológicas, ideológicas e políticas profundas. O período autoritário não foi apenas – e já seria muito! – de supressão de liberdades, mas também, e principalmente, de quebra do fio histórico de muitas lutas sociais e políticas, construtoras da identidade nacional.
Após a redemocratização o processo de alienação da consciência nacional prosseguiu avante através de métodos mais sutis, porém mais eficientes de despolitização das massas.
Dou alguns exemplos.
O fim do sistema seriado de ensino nas universidades e sua substituição pelo sistema de créditos, onde os alunos "pagam" cadeiras ao invés de apreender seus conhecimentos, fragmentou as universidades e estabeleceu forte golpe na dinâmica sócio-política dos movimentos estudantis, berçário istórico de tantas lideranças políticas de nosso país forjadas em lutas durante o período do pós guerra até a primavera de 68. O fato ocorreu em 1972, com Médici no poder e Jarbas Passarinho no Ministério da Educação.
Outro exemplo: o esmagamento da MPB que, na redemocratização se colocava com majoritária presença na preferência popular foi sendo cubstituída pela música americana ou nacional de quinta categoria, impostas por fortíssimos esquemas de divulgação, portanto de massificação através de uma mídia subordinada aos jabás e outras formas de controle econômico. Reduziu-se a voz de nossos artistas de raiz, sempre prontos a cantar as lutas do povo, por sons mecânicos, línguas incompreensíveis ou produções nada artísticas, aquilo que Alceu Valença chama com propriedade de "fuleragem". Esta virada ocorreu nos anos 90 e a desvalorização de nossa música continua até hoje pelas forças de um mercado nada independente, moldado pelas gravadoras e emissoras. Cultiva-se assim a alienação política e o preconceito.
Por fim, há de se considerar o sistema partidário em si e sua história. O fim dos partidos políticos promovidos pelo golpe de 64 e as sucessivas medidas de cerceamento do parlamento, inclusive o seu fechamento quando do AI5 e as muitas reformas políticas autoritárias criadoras de instrumentos como a sublegenda, destruíram o liame histórico, a continuidade político-partidária e praticamente empurraram a esquerda à luta armada, mais grito agônico de revolta que processo de construção de novos desenhos partidários de massa e democráticos.
A derrota destes agrupamentos consolidou o vazio político que não foi preenchido jamais pelo MDB, mesmo este tendo se transformado em tribuna na qual alguns bradavam por liberdade. O vácuo partidário, do ponto de vista da capacidade de gestarmos processos amplos e orgânicos de transformação estava implantado.
A anistia e a redemocratização vieram como processo dúbio – de um lado respondendo a anseios de amplos setores médios da sociedade, ávidos por liberdade, mas também fruto de estratégia cuidadosamente urdida no laboratório do senhor Golbery, significando, por sua sinuosa forma lenta gradual e segura, o abandono voluntário do autoritarismo e sua substituição pela institucionalização democrática formal, capaz de tocar para frente o processo político e econômico sem riscos das rupturas tão temidas pelas elites e pelo Departamento de Estado norte americano.
Quem pensa que o povo nas ruas, a clamar por Diretas Já, da mesma forma que fariam os caras pintadas a exigir a cassação de Collor, quem pensa que estes movimentos de massa substituíram o esfacelamento do fio da historia promovido pela ditadura está muito enganado. Foram belos movimentos sim, democratizantes sim, mas incapazes de recompor a fratura causada pela censura, pelo desmantelamento armado não só das organizações foquistas, mas também do PCB que entendeu a época que havia de se perseguir o ligar-se a base social operária, camponesa e média do país, sem luta armada e que, não obstante e talvez por isso mesmo, teve sua direção nacional dizimada a bala.
Agora, que discutimos a tal reforma política e quando os meios de comunicação não cansam de bradar sobre a falência do nosso modelo de representação popular, não podemos nos esquecer que todas as fragilidades de nosso sistema foram criadas por este processo de rompimento da ordem democrática materializado pela deposição de Jango em 64 e de redemocratização capenga, promovida 20 e, poucos anos, depois sob o comando dos coveiros da democracia.
É verdade que, com a redemocratização, a sociedade brasileira produziu novas alternativas partidárias. De Brizola surrupiaram o PTB que tentou refundar e acabou em mãos, à época, que não se comprometiam com a tradição trabalhista de Getúlio. Funda-se o PDT que tenta restabelecer aquela tradição sem, no entanto, lográ-lo. É que os tempos eram outros, houvera o milagre econômico dos anos 70 e surgira uma afluente classe média ancorada no novo modelo de consumo concentrado, nascera uma nova classe operária no ABC paulista, tributária deste mesmo modelo, pois fabricante do maior ícone do novo padrão de consumo concentrador – o automóvel.
Nasce aí o PT que agrega outras forças políticas de esquerda, remanescentes da luta contra a ditadura. De todos os partidos é o que melhor se coloca no novo momento, pois não tenta restabelecer o passado rompido, mas construir o futuro. Mas é segmentado e, no início, pouco representativo do complexo social nacional.
Como o PDT, o PSB que fora no passado partido de uma elite intelectual de esquerda, abriga Arraes, o que lhe da dimensão política, mas não consegue lhe conferir, como Brizola ao PDT, caráter de partido de massas. Como disse, os tempos eram outros.
Logo adiante surge o PSDB que intenta ser partido social-democrata para logo se tornar partido de centro-direita, pelo caráter elitista de seus quadros e pela natureza conservadora de sua aliança estratégica com os herdeiros da Arena.
Não pretendo aqui fazer a análise dos partidos no Brasil a partir da Nova República, mas apenas afirmar que o quadro partidário atual traz consigo a marca indelével da destruição autoritária do antigo sistema e das limitações de uma redemocratização tutelada. Pensar que os males do nosso sistema representativo são defeitos da norma legal que podem ser corrigidos por uma reforma nas leis é, no mínimo, ilusão. O que só a luta política pode conferir a lei, por si só não consegue criar. Afinal a lei, para ter alma, deve emanar da vontade popular.
Não se trata de aprovar a Reforma de qualquer maneira, portanto. Só vale a pena aprová-la se a alma não for pequena e, se desta reforma, pudermos retirar avanços sociais e políticos para o país que detenham a legitimidade que só a vontade social pode outorgar.
*Pedro Eugênio é Presidente estadual do PT-PE e deputado federal.