Depoimento coletado pelo Laboratório De Pesquisa Histórica do Instituto De Ciências Humanas e Sociais/Universidade Federal de Ouro Preto.

Universidade Federal de Ouro Preto/Instituto de Ciências Humanas e Sociais/Laboratório de Pesquisa Histórica

Depoimento de Armando Lopes – p rojeto “ Reconstrução Histórica das Repúblicas Estudantis da UFOP ”.

 

Organizador: Otávio Luiz Machado/Depoente: Armando Lopes Farias/Loc al: Natal-Rn/Ouro Preto-Mg Por Escrito/Data: 2000 Ficha técnica
Entrevistado:
Armando Lopes Farias
Tipo de Entrevista: Entrevista livre
Organizador da Entrevista: Otávio Luiz Machado
Data: 2000

Duração: depoimento livre por escrito s. t.

EquipeLevantamento de dados e revisão: Otávio Luiz Machado
Pesquisa e elaboração de roteiro: Otávio Luiz Machado

Técnico de gravação: entrevista por escrito Proibida a publicação no todo sem autorização. Permitida a citação. A citação deve ser textual, com indicação de fonte. Permitida a reprodução.

Norma para citação
MACHADO, Otávio Luiz (org.) Depoimento de Armando Lopes Farias . Ouro Preto-MG: P rojeto “Reconstrução Histórica das Repúblicas Estudantis da UFOP ” , 2000.

Depoimento livre por escrito

O dia 21/04/1980 prometia muito. Esperava-se para este dia um pronunciamento do Presidente (João Batista de Oliveira) Figueiredo, abordando os últimos acontecimentos. Este pronunciamento poderia indicar os rumos que o país tomaria dali para frente. Na ocasião, o acontecimento mais importante na política nacional era a greve dos metalúrgicos do ABC paulista, que já estava com vários dias, e ocupava insistentemente o cenário político nacional. Parece-me que o Lula (Luís Inácio Lula da Silva) já estava preso. Eu não tenho certeza, mas acho que estávamos na época das bombas caseiras, lançadas por paramilitares para bloquear a distensão do regime. Localmente, em Minas Gerais, tínhamos uma greve dos professores da rede pública, também já avançada, e a greve dos estudantes de Viçosa (na época greve de estudante ainda tinha uma certa importância). Também era aguardado com expectativa, o lançamento nacional do PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro), que foi a forma (muito inteligente, diga-se de passagem) que o Ulisses Guimarães encontrou para contornar as imposições da nova lei partidária, bancada na ocasião pela ARENA (Aliança Renovadora), partido do governo. Este lançamento também aconteceria em Ouro Preto, e era entendido pela ditadura como uma espécie de provocação, pois coincidia com a estada do Presidente no mesmo local, apenas com alguns dias de diferença. O lançamento seria na sexta feira, e a visita seria na segunda-feira seguinte, ambos na Praça Tiradentes. É possível perceber que o caldo era viscoso, e prometia muito, principalmente por estar a esquerda se preparando para atazanar a visita do Presidente.

A gente, os estudantes, sempre participávamos destas manifestações, cabendo-nos principalmente a parte logística, coisas como o apoio à chegada do pessoal e a segurança. A idéia era fazer uma manifestação na praça Tiradentes durante o discurso do Figueiredo. Na ocasião eu era o representante de Ouro Preto na UEE (União Estadual dos Estudantes). Então ficamos eu e o pessoal dos DA’s (Diretórios Acadêmicos) encarregados deste apoio logístico. Quinta feira (17/04/1980), estávamos reunidos no DAEM (Diretório Acadêmico da Escola de Minas da Universidade Federal de Ouro Preto), eu, a diretoria do DA, a oposição e o pessoal do CA da Escola de Farmácia. Discutíamos como se daria o tal do apoio logístico e como faríamos a segurança, quando nos chegou a notícia da invasão da casa do David Maximiliano. A notícia chegou confusa, mas me lembro que alegavam ter encontrado bombas debaixo da cama do David. Tudo indicava uma grande armação do DOPS (Departamento de Ordem Política e Social, a polícia política da ditadura militar), pois era impossível imaginar um cara, por mais doido que fosse, colocar duas bombas debaixo do local onde dormia com a mulher e o filho. Mas o fato é que nos assustamos e procuramos uma maneira de esconder o David, pois o DOPS estava à sua procura. O David era um antigo colega de Escola de Minas, formado, portanto, em engenharia (não sei se na época ele já estava formado), que na ocasião militava no movimento dos professores da rede pública. Era ligado à tendência de extrema-esquerda “Liberdade e Luta”, mais conhecida como “Libelu”, de pouca inserção nos movimentos de massa, mas com força no movimento estudantil. Eles eram oposição a gente no Diretório Acadêmico da Escola de Minas. Ainda neste dia o DOPS invadiu outras repúblicas procurando pessoas ligadas ao David.

Na quinta a coisa parou por aí. Sexta feira (18/04/1980), seria, portanto, o dia do lançamento do PMDB. Várias figuras eminentes da política nacional estavam em Ouro Preto, com destaque para Ulisses Guimarães e Freitas Nobre. A cidade era o centro dos acontecimentos políticos do país. Durante o dia a coisa manteve-se calma, e só a noite, já durante o ato de lançamento do PMDB, é que pipocaram duas ou três bombas de gás lacrimogêneo no meio da multidão. De resto as coisas transcorreram tranqüilas. Porém, o cenário para a limpeza política, preparando o terreno onde pisaria o Presidente, já estava montado. Na cidade só se falava na tal da bomba, sendo que algumas pequenas matérias saíram nos grandes jornais do país. Sábado (19/04/1980), depois de um dia de muito trabalho, recebendo o pessoal que vinha para a manifestação, principalmente o pessoal de Viçosa, e muita observação na movimentação do pessoal da segurança da Presidência (da República), que passaram o dia a estudar a melhor posição de possíveis atiradores intentando um atentado ao Presidente, ou a melhor distribuição de seus homens, nos recolhemos às repúblicas para as comemorações do dia 21. Como todos sabem, quando o feriado emenda com o final de semana, as festas nas repúblicas não páram, atraindo uma multidão para as comemorações. Lá em casa estava cheio. A noite ia transcorrer a base de muita cerveja e “muié”. Curiosamente esquecemos por completo dos riscos que poderíamos estar correndo. Estávamos tranqüilos, não soubemos, apesar de inúmeras reuniões de avaliação da situação, fazer a leitura correta da invasão da quinta-feira, e não entendemos que aquilo era o prenúncio da limpeza que se seguiu. Não nos demos conta que era imperativo ao regime mostrar força naquele momento, e que não iriam permitir de forma alguma qualquer tipo de manifestação durante o discurso do Presidente. Era necessário, pois, que se removesse todos os possíveis organizadores.

Como estava previsto a chegada dos professores só na segunda-feira, bastaria a eles eliminar os organizadores e bloquear as estradas. Muito simples. Mas nós não conseguimos chegar neste ponto em nossas análises, e fomos para a festa. Pior. Juntamos parte considerável dos organizadores nos Deuses (República dos Deuses). Aí estavam eu, o “Juca” (representante da UNE) e o pessoal de Viçosa, com seus líderes. Facilitamos sobremaneira ao trabalho do DOPS. Naquela noite uma parte da diretoria do DA foi para os Deuses festejar com a gente. Por medida de segurança resolvemos que eles teriam de ir para suas casas acompanhados de alguém que não tivesse qualquer ligação com o movimento. Escolhemos o “Café”. Ele pegou o carro do “Juca” (o fusca azul mais manjado de Belo Horizonte), e levou a galera. Segundo o que ele nos contou depois, no retorno ele foi parado pelo DOPS, que identificaram o carro do “Juca”. Ao ser levado para a delegacia, e sob torturas morais (ainda segundo ele, enfiaram um cabo de vassoura em seu ânus) foi obrigado a dizer o que fazia no carro do “Juca”, quem estava lá em casa e assim por diante. Ele chegou em casa de madrugada muito assustado dizendo que eles (o DOPS) iriam me matar e me aconselhando aos gritos a ir embora. A gente já estava muito bêbado, e tratamos de tranqüilizar o “Café”, e seguimos na cachaça. No sábado mesmo, creio que era por volta das 10 horas da manhã, senti uma coisa fria roçando meu rosto. Por algum tempo ainda sem entender o que acontecia me virei e tentei continuar meus sonhos. A coisa insistiu, fazendo com que eu identificasse o cano do fuzil (ou metralhadora?). Aí que percebi um cara alto e mal encarado com a arma na mão me dando ordens aos gritos para que me levantasse, colocasse as mãos na cabeça e encostasse na parede. Já havia um bando nesta mesma posição. Fui aos poucos recobrando o sentido, apesar da forte ressaca. Passado um certo tempo alguém subiu as escadas (a gente estava na parte de cima da casa) gritando quem era o “Kapitão”. Identifiquei-me. Daí para frente este sujeito chamado Ari (codinome) me torrou a paciência com piadinhas de todo tipo, principalmente com meu apelido, e com o fato de ser minha blusa de frio proveniente do Exército.

Seus trocadilhos infames foram inevitáveis. Recolheram todas as pessoas que estavam em casa. Tinha um amigo nosso do Rio de Janeiro, que a gente chamava de “Tia Júlia” extremamente estridente, que estava chegando e que acabara de entrar pelo corredor de entrada da casa fazendo uma zoada miserável, como era de seu feitio, e foi quando o DOPS entrou e o prendeu também. Todos de camburão para a delegacia. Foram várias viagens. O tal do Ari (mais tarde identificado como um antigo torturador da ditadura) obrigou-me a juntar quase todos os meus livros e carregá-los comigo para a delegacia. Num frio miserável, o miserável não permitiu que eu usasse minha blusa, alegando ser aquilo propriedade do Exército. Disseram-me depois que o “Café”, assustado com a entrada dos policiais, disparou nosso quintal abaixo, indo parar debaixo da cama da vizinha. Ele morava no quarto, junto à cozinha, pois era bicho. Quando cheguei na delegacia (fomos da última leva) havia uma fila enorme com todos aguardando a vez de serem fichados. Entrei nesta fila, ainda com os livros nos braços e sem blusa de frio. Daí a pouco veio um agente e me levou ao escritório do delegado do DOPS em Minas, o chefão Dr. Brandão. Segundo o cara ele queria me conhecer. Vamos lá. O cara, ao contrário do Ari, era gente muito boa (assim se fazia passar), e me ofereceu uma poltrona para sentar, e cafezinho bem quente. Percebendo que eu estava com frio, procurou saber o porquê de eu estar sem blusa, e diante de minha resposta, deu ordens para que se chamasse o agente Ari imediatamente em sua sala. Na minha frente ele passou a maior bronca no cara e exigiu dele que devolvesse minha blusa imediatamente. Foi o máximo! Ele queria ganhar minha confiança, e em parte ganhou. Eles são profissionais da coisa. Daí para frente foi um festival de conselhos e insinuações. A todo momento ele soltava dados a meu respeito, deixando claro que minha vida era de seu inteiro domínio.

Quando saí da sala grande, parte do pessoal já havia sido liberado. Sobramos eu e mais oito, sendo que me lembro do “Juca”, de dois caras de Viçosa e dois de Belo Horizonte, e só. Passamos o dia ali sem saber o que acontecia no mundo lá fora. Inicialmente estávamos muito assustados, mas com o tempo percebemos que nada de mal nos aconteceria, por enquanto. Recebemos algumas visitas e alimentação. Por volta das 5 ou 6 horas da tarde nos recolheram ao camburão novamente, para nos levar para destino incerto. Nada nos disseram, e aparentemente não comunicaram a ninguém do mundo lá fora. Estávamos a sós, pelo menos é o que sentíamos. Tivemos muito medo quando percebemos por uma fresta no camburão que, após várias voltas na cidade, eles tomaram o rumo de Mariana. Pensamos que nos levariam para Juiz de Fora. A Polícia do Exército de lá tinha péssima fama. Eles iam dar fim na gente! Não sei quem, mas um dos caras começou a chorar, e o clima ficou terrível. Para nosso alívio eles tomaram o caminho para o centro da cidade de Mariana. Deixaram-nos na delegacia da cidade nas mãos do delegado local, com a ordem de só permitir nossa saída no dia seguinte, no final da tarde, após a saída do Presidente. Foi o que aconteceu. Após uma noite horrorosa, onde ficamos os nove amontoados num cubículo de uns 3 X 3, em que procuramos passar o tempo jogando porrinha ou qualquer outra coisa, ficamos todo o dia 21 de abril soltos no corredor da prisão, conversando com os presos, jogando futebol com bola de meia e até assistimos a um jogo entre o Flamengo e o Santa Cruz de Recife (o flamengo ganhou de 2 X 1). Como combinado, no final da tarde eles nos soltaram, e cada um se virou para retornar a Ouro Preto. Lembro-me que naquele momento, quando entrei na Praça (Tiradentes), já havia a organização de um ato público pela nossa soltura. Foi uma surpresa quando me viram. Foram muitos abraços, e chororó. Achavam que a gente tinha se fudido. Mas nada tinha acontecido.

Como nas histórias do Asterix, aproveitamos a deixa para um grande banquete (uma grande cervejada na república). Uma semana depois, ainda tive oportunidade de rever meus “amigos” do DOPS. Eu estava em um ato público no centro de Belo Horizonte, na Praça São José, quando resolvi ir embora para tomar o ônibus. Segui linha reta na Afonso Pena no sentido da rodoviária. De repente senti um forte tapa em meus ombros, e ao me virar deparei com o Ari novamente. Fiquei estático. Numa fração de segundo várias coisas passaram pela minha cabeça. Nada de bom, posso garantir. Ele então abriu os braços, um enorme sorriso e gritou a pleno pulmões: “Kapitão, Kapitão….há quanto tempo! Mas que saudade! Fico feliz em encontrá-lo novamente! Venha e vamos tomar um cafezinho”. E me deu um forte abraço. Eu estava estarrecido. Naquele momento não sabia o que era pior: a presente ameaça de ser preso novamente (só que agora sem testemunhas), ou ser visto no centro da cidade abraçado a um torturador. Foi uma eternidade. Quando recobrei os sentidos estava dentro de um daqueles cafés da Praça Sete, e o cara pedindo dois cafés. Aí disse a ele que estava atrasado para o ônibus e que agradecia muito, mas não ia dar. Ainda me lembro que perguntei a ele sobre meus livros, ao que ele respondeu que tinha tomado por empréstimo, e que em breve devolveria. Até hoje estou esperando.


 

* Parte do depoimento integral – e-mail de contato: [email protected]

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