Líbia: que se preservem os direitos humanos do povo e a soberania da Nação
Qualquer pessoa honesta se preocupa, condena e repudia a morte de civis inocentes em decorrência do conflito em curso na Líbia e em qualquer outro lugar. É rigorosamente inaceitável o emprego de força militar contra a população civil deste país árabe, embora as autoridades líbias sustentem que não estão praticando este tipo de ação contra cidadãos desarmados. Razão pela qual saudamos o fato da Assembleia Geral das Nações Unidas ter suspendido por unanimidade a Líbia como país membro do Conselho de Direitos Humanos da entidade devido ao uso da violência pelo governo líbio na repressão aos protestos antigoverno. A resolução foi adotada pelos 192 países-membros da Assembleia, seguindo a recomendação feita pelo próprio conselho, sediado em Genebra. Essas ações enviam uma poderosa mensagem de que não há impunidade e que aqueles que cometem crimes contra a humanidade serão punidos, e que os princípios fundamentais de justiça e responsabilidade devem prevalecer. Espera-se agora que atentados semelhantes praticados por nações hegemônicas no mundo, como os Estados Unidos e seus militares, e da região, como Israel e suas tropas, levados a cabo contra populações alheias mereçam o mesmo castigo e sejam levados a responder perante o Tribunal Penal Internacional, ainda que tenham retirado suas assinaturas do Tratado de Roma.
As revoltas maciças que vêm ocorrendo nos países árabes do Norte da África e no Oriente Médio demonstraram que seus povos não mais suportam décadas de opressão e humilhação, saem às ruas erguendo as bandeiras de pão, emprego, justiça social, progresso, liberdade e democracia. E conscientes, no exercício de sua autodeterminação, sabem que os problemas acumulados devem ser resolvidos pela população dos seus respectivos países.
A geoestratégia desenvolvida pelos Estados Unidos, Inglaterra e França no Oriente Médio e Norte da África, especialmente após a Segunda Guerra Mundial, entrou em crise. A política de dividir os países, jogá-los uns contra os outros, o fornecimento de bilhões de dólares anualmente em forma de armamentos militares como que a fundo perdido ou de assistência comercial a fim de obter vantagens econômicas e garantir a necessária estabilidade, não importando se favoreciam ditaduras opressoras ou monarquias absolutas, está deixando de funcionar. Apesar dos vultosos recursos petrolíferos, que só beneficiam internamente os setores privilegiados, a pobreza alastrou-se. Não sobrou às massas da região, ante a abusiva elevação do preço dos alimentos, da falta de empregos e demais mazelas, outra saída que não a rebeldia em busca da dignidade e do respeito aos seus direitos. Parodiando Aladim e a Lâmpada Maravilhosa das 1001 Noites Árabes, o gênio escapou da garrafa e os Estados Unidos e seus parceiros da OTAN se vêem em palpos de aranha para dominá-lo, se é que vão conseguir.
A Líbia ocupa um território equivalente ao estado do Amazonas. Mais de 90 por cento desértico. Sua população gira em torno de 6 milhões que vive na orla do mar Mediterrâneo. Produz cerca de 2 milhões de barris/dia de petróleo de alta qualidade e detém abundantes reservas de gás natural. Esse petróleo se destina basicamente aos países europeus e dada a proximidade, o frete sai barato.
Seu principal dirigente, Muammar al-Kadafi, militar de origem beduina, na sua juventude se inspirou nas idéias do líder nacionalista egípcio Gamal Abdel Nasser. Os habitantes desse país, porém, têm milenárias tradições guerreiras. Diz-se que os antigos líbios fizeram parte do exército de Aníbal quando esteve a ponto de liquidar a Antiga Roma com as tropas que cruzaram os Alpes. A tribo – com seus clãs e subdivisões – é a única instituição que, ao longo de séculos, organiza a sociedade dos árabes que habitam as regiões colonizadas por italianos, no início do século 20, chamadas Tripolitânia, Cirenaica e Fezzan e que compões a atual Líbia.
Depois da independência da Líbia, em 1951, jamais se formaram partidos políticos. Durante a monarquia, toda a política girou em torno das tribos. Quando a revolução de Kadafi, reformulou em 1969 o papel político das tribos, elas se tornaram apenas guardiãs avalistas dos valores culturais e religiosos. Entraram em cena os comitês populares e o congresso popular. Contudo, a tradição das tribos e sua força social acabaram prevalecendo.
As notícias provenientes da Líbia e transmitida pelos grandes meios de comunicação têm sido em alguma medida contraditórias. Com enviados especiais à região, reportagens in loco da CNN e da Telesur, por exemplo, mostraram-se conflitantes. É necessário esperar algo mais para se saber com precisão o que ocorre na realidade em meio ao caos que se produziu. Fica evidente, no entanto, que a cobertura que a grande mídia internacional dá agora à Líbia e deu anteriormente à Tunísia e ao Egito tem natureza absolutamente distinta. A hipocrisia predomina. Afinal de contas, as ditaduras desses últimos eram amigas, a de Kadafi, apesar da aproximação dos últimos anos com as potências hegemônicas, sempre foi considerada politicamente inimiga.
Salta à vista que a voracidade pelo petróleo e gás líbio e não uma solução pacífica e justa para a guerra civil que se está estabelecendo é que motiva as forças políticas, essencialmente conservadoras, a conclamar nos Estados Unidos e em algumas nações européias por uma intervenção militar imediata da OTAN. Notícias recentes de Washington informam que quarenta neoconservadores, à frente o ‘falcão’ Paul Wolfowitz, enviaram uma carta ao presidente Obama pedindo que intervenha militarmente na Líbia para derrubar Muammar Kadafi e “acabar com a violência”. Os signatários são analistas políticos e ex-altos funcionários do governo de George W. Bush. A organização neoconservadora Foreign Policy Initiative (FPI), considerada a sucessora do Project for the New American Century (Pnac), coordenou a medida e divulgou o texto. Alertando que a Líbia está “no umbral de uma catástrofe moral e humanitária”, a carta, divulgada no dia 25 de fevereiro, exige a adoção imediata de medidas de força.
De outra parte, Obama depois de se reunir com o secretário-geral da ONU, Ban Ki Moon, declarou que "Estamos trabalhando com a ONU, com a Cruz Vermelha e outras organizações para buscar uma solução humanitária para a crise líbia, mas ao mesmo tempo seguimos explorando outras ações.”
Durante sua intervenção no Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas, a secretária de Estado, Hillary Clinton, ressaltou a necessidade de abordar os problemas da Líbia de dentro. “O presidente Obama e eu acreditamos que podemos fazer diferença trabalhando desde o interior da Líbia em vez de ficar de fora atuando simplesmente como críticos ou observadores.” E Phillip Cownley, porta-voz da Casa Branca, acrescentou: “Estamos tratando de nos pôr em contacto com indivíduos na Líbia que são ativos opositores ao governo.”
Por sua vez, o coronel Dave Lapan, porta-voz do Pentágono declarou à imprensa que as Forças Armadas dos Estados Unidos estão posicionando navios e aviões em torno da Líbia e que o exército norte-americano estuda vários planos de contingência. "Nós estamos reposicionando forças, em caso de necessidade para que ofereçam essa flexibilidade uma vez que as decisões forem tomadas". O reposicionamento das tropas, navios e aviões ao redor da Líbia significa o início de uma escalada militar na crise. A intenção é que uma ofensiva sobre a Líbia seja executada pelas forças da OTAN, sob mandato da ONU e comandada pelos Estados Unidos. Discretamente Grã-Bretanha, França, Espanha, Alemanha e Itália despacharam para a área navios de guerra sob o pretexto de retirada de cidadãos. Para os Estados Unidos é estrategicamente fundamental a ocupação da Líbia a fim de exercer pressão sobre o vizinho oriental, o Egito, caso Cairo decida, em decorrência de nova correlação interna de forças, denunciar o Acordo de Camp David entre Israel e Egito, conhecido como Acordo Béguin-Sadat.
Os milhares de manifestantes que há 15 dias vêm se manifestando nas ruas de Benghazi, Trípoli e outras cidades, contra e a favor do governo Kadafi, continuam reafirmando sua rejeição a qualquer intervenção estrangeira porque asseguram que isto ameaça sua soberania. Uma ação militar externa provocaria mortes, migrações forçadas maciças e enormes danos à população civil, além de precipitar um novo e perigoso cenário – provavelmente bélico – em toda a região. Incumbe aos cidadãos líbios e só a eles a busca de uma decisão, seja de que caráter for, sem qualquer ingerência estrangeira. Os fatos não podem evoluir para a busca de uma justificativa de intervenção militar, lembrando-se o que ocorreu e ocorre no Iraque e no Afeganistão.
O governo brasileiro afirmou que não vai abrir mão de sua posição na defesa de que as soluções para crises sejam encontradas de forma multilateral e em fóruns internacionais. Mas isto não basta. É preciso acrescentar que vai lutar por uma solução pacífica que preserve os direitos humanos da população líbia, mas também sua autodeterminação sem que a soberania da nação líbia seja violentada.
Max Altman, jornalista e membro do coletivo da Secretaria de Relações Internacionais do PT