O país está quase isolado do mundo: a ditadura controla rádio, TV e jornais;  cortou internet, celulares e telefones fixos. Raras notícias e imagens furam o muro de silêncio. São dramáticas. A aviação disparou contra a população rebelde. Há pelo menos 300 mortos, num país cuja população equivale à da cidade do Rio de Janeiro. Mercenários substituem os soldados que desertam. Percorrem as ruas da capital (Tripoli) armados, para reprimir manifestações. O aeroporto de Benghazi, onde começaram os protestos, foi bombardeado. O filho do ditador anunciou domingo que o regime resistirá “até o último homem” e ameaçou iniciar uma guerra civil.

Ainda assim, a revolução não recua. A população teria assumido o controle de diversas cidades. Em sequência ao banho de sangue, diversos ministros e muitos diplomatas desertaram. O embaixador adjunto do país na ONU pediu ao Conselho de Segurança (que está reunido nesta tarde de terça-feira, 22/2). As últimas notícias falam de barricadas em Tripoli — e de chamas em edifícios que simbolizam o regime. Mais uma vez, quem conduz a luta são os jovens.

Novo epicentro (depois da Tunísia e Egito) do terremoto desencadeado pelas multidões árabes, a Líbia é crucial por dois motivos. É o primeiro grande produtor de petróleo atingido pelos protestos. Além disso, há um componente simbólico destacado. O regime agora pendurado por um fio flertou, ao longo de seus 41 anos, com os dois grandes projetos políticos que marcaram o século 20: “socialismo real” e sociedades de mercado. Em ambos os casos, as multidões foram mantidas à margem, reprimidas, privadas de direitos políticos e de qualquer participação importante sobre seu futuro coletivo. Agora, tateiam em busca de uma alternativa.

Subjugada sucessivamente por romanos, islâmicos, otomanos e italianos, a Líbia tornou-se independente em 1949, por resolução das Nações Unidas. Foi governada a partir de 1951 pelo rei Idris, cujos laços com Inglaterra e França eram notórios. Em 1959, descobriram-se seus vastos campos de petróleo. Dez anos mais tarde, na esteira do nacionalismo árabe que tinha no egípcio Abdel Nasser sua principal referência, um grupo de jovens coronéis tomou o poder. Seu líder mais poderoso era Muamar Gaddafi, então com 27 anos.

À frente de um país rico e pouco habitado, Gaddafi alcançou avanços importantes, no terreno das condições de vida. O IDH da Líbia (0,755) é o maior da África e bem superior ao do Brasil (0,699). Montado nestas conquistas, o governante sentiu-se capaz de conduzir o Estado líbio, no cenário internacional, pelos caminhos que sua vaidade julgasse convenientes.

Entre a década de 1960 e o final do século passado, alinhou-se com o “socialismo real” e os nacionalismos de esquerda — inclusive suas correntes mais radicais. Considerou-se um parceiro de Fidel Castro e Yasser Arafat. Apoiou movimentos separatistas como o IRA irlandês e os radicais islâmicos das Filipinas. Advogou, em palavras, a unidade árabe. Na vida real, perseguiu os dissidentes na Líbia e os que se refugiavam no exterior, em muitos casos com assassinatos.

Em 1977, considerando-se inspirado por Nasser (que escrevera A Filosofia da Revolução) e Mao (autor do Livro Vermelho), redigiu, traduziu em múltiplos idiomas e publicou em grandes tiragens O Livro Verde (ler em inglês), uma obra tosca de política e filosofia.  Julgou-se líder de uma revolução cultural. Mudou o nome de seu país para Grande Jamahyria [Estado de massas, em árabe] Socialista Árabe da Líbia.

O declínio do “socialismo real” levou-o a posições mais extremadas. No início dos anos 1980, rompeu com Arafat, fechou os escritórios da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) em Trípoli e expulsou milhares de refugiados palestinos de “seu” país. Em abril de 1986, surgiram indícios de que a embaixada líbia em Berlim Oriental ajudara a articular um atentado a bomba numa boate em Berlim Ocidental, que provocou três mortes e 230 feridos — entre eles, dezenas de soldados norte-americanos. Em resposta, o então presidente dos EUA, Ronald Reagan, mostrou que era capaz de selvageria muito maior. Dias depois, aviões norte-americanos bombardearam Tripoli e outras cidades, provocando a morte de centenas de civis — entre eles, Hanna, filha adotiva de Gaddafi.

A ação não ficaria sem troco — mais uma vez, tendo como alvo civis inocentes. Em 1988, um avião de passageiros da empresa norte-americana Pan Am (falida em 1991) foi abatido por uma bomba, quando sobrevoava a cidade de Lockerbie, na Escócia. Morreram 270 pessoas, dentre as quais 189 estadunidenses. Acusado pelo crime, Gaddafi negou responsabilidade.

Iria assumi-la anos mais tarde, em 2003, como parte de uma guinada radical — agora ao encontro dos governos mais identificados com a política imperial do então presidente dos EUA, George Bush. Em agosto, o ditador líbio enviou carta às Nações Unidas admitindo a responsabilidade de seu país pelo crime e se propondo a pagar indenização de 2,7 bilhões de dólares às famílias das vítimas. Num gesto ainda mais eloquente, abriu a exploração das reservas de óleo líbias a empresas como a British Petroleum e a ENI, italiana.

Foi o suficiente para que também os governantes ocidentais o cobrissem de mesuras. Puxou a fila o então primeiro-ministro inglês Tony Blair. Famoso por seu alinhamento total às politicas de Bush, ele manteve com Gaddafi um “encontro histórico”, consumado numa tenda beduína, montada nos arredores de Tripoli. Seguiram-no o francês Nicolas Sarkozy (julho de 2007), o italiano Silvio Berlusconi (agosto de 2008) e, finalmente, a secretária de Estado dos EUA, Condoleezza Rice (setembro de 2008).

Num artigo publicado hoje, Gideon Rachman, principal analista internacional do diário londrino (e pró-capitalista) Financial Times, reconhece: “nos últimos anos, o líder líbio foi recaracterizado como sendo um pecador reformado, aliado na ‘guerra ao terror’ e valioso parceiro de negócios (…) As mudanças de atitude em relação a Gaddafi evidenciam a forma como as preocupações ocidentais em relação aos direitos humanos são quase sempre tingidas pela conveniência”.

Mas, seja qual for seu desfecho, a revolução líbia convida a própria esquerda a uma reflexão autocrítica. O caráter de um governo não está no que ele diz de si próprio, nem apenas nas políticas que conduz, mas também — e cada vez mais — no grau de participação e horizontalidade que é capaz de manter com as multidões. Ao escancarar este fato, o vendaval árabe oferece mais um presente inestimável à nova cultura política que está em construção.