O centrão e o lugar de fala da política
De repente, a nação desperta com os rumores no Congresso de uma nova Reforma Eleitoral. Volta o fantasma do voto distrital puro ou misto, ao estilo alemão. À crise das instituições provocada pelo primeiro mandatário, os partidos fisiológicos que perfazem a maioria da Câmara dos Deputados acenam com um casuísmo para substituir o voto proporcional pelo majoritário, no todo ou em parte. O objetivo subjacente aos discursos demagógicos do chamado Centrão, sobre o alegado aperfeiçoamento do sistema de representação, é assegurar o controle do Orçamento da União nas mãos dos parlamentares, independente do governo de plantão no Palácio do Planalto. Provavelmente a iniciativa esbarrará no Senado, por não atender os interesses dos senadores, nas urnas. Por caminhos enviesados, assim, se resguardará a virtude atribuída por muitos estudiosos ao liberalismo, que é domesticar a luta de classes por intermédio da institucionalização dos conflitos, o que tem por conditio sine qua non justo uma pluralidade representacional. Todo crime, contudo, deixa uma pista.
Esta, no caso, revela um assalto ao erário promovido por um grupo numeroso de parla-elementares e uma violência estrutural contrária aos segmentos sociais que, com escassos recursos financeiros e visibilidade social, daí em diante não terão estofo para concorrer em igualdade de oportunidades com candidatos aquinhoados, ou pelo dinheiro ou pela celebração midiática como Bebeto e Romário (Rio de Janeiro), Alexandre Frota e Tiririca (São Paulo), Darnlei e Lasier Martins (Rio Grande do Sul). É como se o Patropi voltasse aos tempos do voto censitário (Constituição de 1824) facultando a eleição apenas aos grandes proprietários e aos detentores de alta renda, de acordo com o figurino do Império sob Dom Pedro I. Por agora, acrescidos de celebridades em final de carreira à procura de emprego. Mantém-se formalmente o voto universal, mas na prática consagra-se a diferença viral entre cidadãos e subcidadãos, estendendo ao âmbito da representação congressual a desigualdade existente no plano socioeconõmico. O propósito é sangrar ao máximo a representação popular e os cofres públicos, a exemplo do que sucede com as espúrias Emendas Parlamentares Impositivas e os aportes bilionários para o Fundo Partidário. São dois crimes em um, reitere-se, acobertados pela narrativa de ocasião de escroques engravatados cuja vocação é viver “da” ao invés de “para” a politica, conforme a classificação do pai da sociologia moderna, Max Weber. Não se subestime a esperteza, a ganância e a desfaçatez dos seres subterrâneos que habitam o esgoto do Legislativo, berço admitido do presidente eleito porta-voz antissistêmico (sic), numa das poucas vezes que dispensou fake news.
É ingenuidade discutir os termos das propostas surgidas, qual rompantes inesperados, para deliberação na calada da noite. Isso é tarefa dos combativos deputados oposicionistas no palco equivalente a House of Commons, dos ingleses, para diminuir os prejuízos à capacidade de reação do povo ao genocídio pandêmico, à calamidade econômica e a escalada fascista. Fora do circuito institucional, a discussão sobre pontos específicos para a reforma eleitoral pretendida confere legitimidade à iniciativa golpista, segregadora, o que só convém aos proponentes da indecorosa Emenda Constitucional. Tal reforça a fachada que serve para dissimular as inconfessáveis motivações para a pantomima do Centrão. Para dialogar com os movimentos sociais, as entidades de classe e mesmo os indivíduos atomizados, a recusa ao pacote de cloroquina política à venda em Brasília deve privilegiar o atacado e não o varejo. O Tribunal Regional Eleitoral (TRE/RJ) mordeu a isca ao organizar um seminário sobre o tema da falsa Reforma Política, uma maquiagem mal feita sobre os parâmetros de expressão da vontade geral. Reuniu membros da Corte para esmiuçar a proposição que altera o modo como o voto, na modalidade novidadeira, preencherá as vagas do mais democrático (porque eletivo, na extensão) poder da República. Nas mesas, uma legião de homens brancos e héteros togados prontos para emitir platitudes sobre o Estado Democrático de Direito, sem auscultar a diversidade de sujeitos sociais e políticos.
Aqui, vamos debruçar-nos sobre a apatia da população em face do que se trama nos bastidores da política, metonimicamente, em nome da própria população. Esse é um texto que aborda o lugar de fala da política, considerando a hegemonia das ideias liberais. Para tanto, partiremos de ilustrações de fácil visualização sobre as ações políticas legítimas na sociedade civil, o espaço destinado aos embates políticos e o acervo temático da política. O aparente descaso da cidadania com a usurpação de seu direito à representação plural na sociedade política, isto é, nas instituições pertencentes ao aparelho de Estado, – não é mera obra do acaso e nem pode ser reduzido à criminalização ferrenha da política deflagrada em 2004, com o escândalo dos Correios. Origem do que ficou conhecido, midiaticamente, com o ruidoso epíteto de Mensalão. O furo é mais embaixo, tem a ver com o enraizamento do ideário do liberalismo na história republicana do Brasil. Fenômeno que se adaptou ao racismo e ao autoritarismo no cotidiano das relações sociais, embora oculto pela mitologia nacional construída em torno de um paraíso harmônico, sem conflitos e avesso às hierarquias, como mostrou Lilian Schwarcz (Sobre o Autoritarismo Brasileiro, 2019).
Um. Na tradição liberal, as ações de cunho político reputadas legítimas são individuais, inspiradas no conceito de “desobediência civil”, de Henry David Thoreau, que viveu nas primeiras décadas do século XIX. O exercício da desobediência civil circunscreve-se aos atos praticados por indivíduos, sem vinculação com associações. Thoreau, que chegou a estar preso por questões tributárias, negou-se a pagar impostos mudando-se para a floresta. “Desejo recusar sujeição ao Estado, afastar-me dele e manter-me à parte de modo efetivo”. Não à toa, a sentença lavrada contra Paulo Galo por atear fogo na estátua de Borba Gato mencionava sua militância no grupo autodenominado Revolução Periférica. Sem entrar no mérito controverso da empreitada, que não mirou as frações de classe responsáveis pelas injustiças sociais na atualidade, senão um pretenso símbolo colonialista e patriarcal, o advogado de defesa do líder dos entregadores paulistas interpretou a menção como uma “criminalização dos movimentos sociais”. Estava certo. Ao indicar que a ação correspondia à articulação organizada por um coletivo para atingir uma determinada meta política, o juízo condenou-a. “Um dos motivos para a insatisfação com o Judiciário é que a dogmática estatal liberal, sua plataforma operacional principal que o modelou, entende como não pertinente à sua tarefa a avaliação da eficácia das sentenças”, observa Joaquim Falcão (Valor Econômico, 06/08/2021). O nó está na anacrônica dogmática estatal liberal.
Dois. Em meados dos anos 90, um movimento paredista composto por petroleiros foi duramente reprimido pelo governo Fernando Henrique, que chegou ao ponto de autorizar a invasão de refinarias por tanques do Exército num cenário bélico. O importante a destacar foi a argumentação brandida por FHC para justificar a repressão à greve. Aos grevistas era legítima a reivindicação de uma pauta trabalhista, mas interditado o erguimento de bandeiras políticas como se lia em faixas à frente de passeatas: “Não à Privatização da Petrobrás”. Isso tornou ilegítimo o movimento. O espaço apropriado para o debate de opiniões políticas é único e exclusivamente o Parlamento, jamais as ruas. Se suas lideranças quiserem introduzir-se na esfera do político que se candidatem a uma cadeira legislativa, decretou o príncipe dos sociólogos. Novamente a tradição liberal se manifestava, ao definir os limites espaciais da política. Trabalhador é para trabalhar, estudante é para estudar.
Três. Com o encerramento da malfadada ditadura militar, que censurou torturou matou, alguns departamentos nas Universidades Federais propuseram a abertura de uma disciplina de Introdução à Ciência Política, em cursos tidos por estratégicos para o processo de redemocratização que se abria (Economia, Comunicação e Direito). A ideia, na esteira do centenário pensador francês Edgar Morin, era desfragmentar o conhecimento através de uma interdisciplinaridade holística, contribuindo para a formação intelectual não-tecnocrática dos profissionais dessas áreas. O curso de Direito, à época, mostrou-se refratário à sugestão que não acarretava a contratação por concurso de outros docentes para cobrir o oferecimento. Arguiu que o conteúdo da nova disciplina estava contemplado no programa de Direito Constitucional no corpo da graduação. Dito diferente, afirmava que o mesmo atendia o repertório temático contido na Introdução à Política. Como se a agenda da sociedade civil pudesse ser subsumida na sociedade política e a distinção entre o direito e a justiça, exprimida pelos movimentos por igualdade de gênero e étnico-racial, bem como de direitos e reconhecimento pelos grupos LGBTQIA+, MST e MTST acenassem lutas pleonásticas sob a ótica da Constituição de 1988. Logo, por supuesto, já integrassem o aparato cognitivo dos aprendizes que mais tarde engrossariam os quadros de um poder da República. O que era preciso aprender sobre política constaria na letra da Carta Magna.
Estes ensinamentos mutiladores do conhecimento e da política respondem pela ideologia liberal, convertida quase num senso comum para a sociedade in toto (civil e política). Delimitam as ações políticas com legitimidade na sociedade civil aos atos individuais, concentram a agenda política legítima no cercadinho estreito da sociedade política e esgotam a pertinência da política ao que consta nos dispositivos constitucionais, jogando no freezer o pulsar da vida societal e a reinvenção de formas inovadoras de sociabilidade, seja nas relações sociais, seja na ocupação do território das cidades por locais para a prática de esportes, atividades culturais ou simplesmente lazer na permanente competição pela justiça com o capital imobiliário. As falcatruas fabuladas pelo Centrão, para o esvaziamento da representatividade de setores sociais minoritários no bojo das instituições políticas, desenvolvem-se no arcabouço ideológico desenhado acima. Descontando-se as ilegalidades por debaixo dos panos, evidentemente. Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay.
Para construir uma contra-hegemonia, há que retomar a pergunta clássica: qué hacer?
a) Investir em ações políticas coletivas na geografia líquida da sociedade civil. Esforço que exige curar a doença senil da institucionalização da práxis das esquerdas, buscando uma reaproximação com os movimentos sociais e o locus de moradia dos trabalhadores(as). A política para ser emancipadora necessita transcender os muros assépticos da institucionalidade, penetrando todos os poros do ambiente social das classes subalternas;
b) Atuar no cotidiano das periferias, dando voz político-organizativa à juventude e ao precariado, condenados pela dinâmica predatória do capitalismo ornitorrínquico ao subemprego e à informalidade. Há que confrontar a negação do alicerce fundamental do regime democrático, a consciência do direito a ter direitos para alavancar mudanças e;
c) Empoderar os sujeitos que trazem à tona, hoje, um conjunto de aspirações tão diversificadas quanto complexas ao escancarar as contradições que opõem, na realidade, a conquista de direitos à concepção liberal de justiça dominante no aparelho de Estado.
“O que vê a lista, diz: É muito. / Mas o que a escreveu, diz: É o mínimo” (Bertolt Brecht).
Luiz Marques é professor de Ciência Política da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Doutor pelo Institut D’Études Politiques de Paris (Sciences Po) e ex-Secretário de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul (governo Olívio Dutra).
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Este é um artigo autoral. A opinião contida no texto é de seu autor e não representa necessariamente o posicionamento da Fundação Perseu Abramo.