Nessa minha longa trajetória procurei, antes de tudo, um mínimo de coerência As visões de justiça adquiridas na casa paterna se prolongaram pelas mãos de Pádua de Almeida e José Ingenieros, na compreensão de que não se pode viver sem ter diante de si um ideal.

Nessa volta de quase um século ao passado que acabamos de empreender, o leitor e eu, a minha vontade de viver e meu otimismo talvez tenham evitado pintá-lo com as tintas cruéis que na realidade teve. Nele assistimos a duas guerras de âmbito mundial que ceifaram dezenas de milhões de vidas com os meios tradicionais cada vez mais poderosos, mas, sobretudo no caso da segunda, de forma organizada e racionalizada, capaz de eliminar parte de todo um povo pelo trabalho forçado até a exaustão e as câmaras de gás. Vimos centenas de milhares de seres humanos desaparecerem em cinzas, nas frações de segundo de um bombardeio atômico. Milhões de homens – o mais precioso dos capitais – apodrecerem em prisões e campos de trabalho. Gerações que acreditaram na Convenção de Genebra viram a tortura institucionalizar-se em todos os quadrantes. E voltarem à cena os conflitos étnicos e as guerras de religião.

Mas esse quase século viu também a pujança das grandes lutas impulsionadas pelo socialismo nascente na URSS; o entusiasmo das grandes conquistas das frentes populares resgatando a dignidade operária; o sopro vigoroso da solidariedade internacional. O nazismo – que viera para durar um milênio – foi vencido, e a democracia restaurada.

Nesses combates vencemos às vezes – o mais das vezes fomos derrotados; mas todos os avanços civilizatórios arrancados ao capitalismo nesse século, no terreno das liberdades democráticas e no campo das condições de vida da população, foram resultado dessas lutas do movimento social, com a presença ou sob a direção dos que lutavam pelo socialismo.

Claro que a pior das derrotas, a que mais doeu, foi o desmoronamento do mundo socialista. Mas já percebia a falência do regime e dissociava o socialismo que sonhava construir, da experiência soviética e chinesa. Depositei, sim, esperanças em Gorbachev. Acreditei, com muita força, que ele conseguiria reverter a situação, apoiado nos aspectos positivos do regime, que não podem ser negados. Não tinha noção, no entanto, do grau de descalabro da economia soviética e do abismo de descrédito a que os comunistas haviam chegado. Por mais sensatos que fossem, os ”passos de tartaruga” de Gorbachev já não adiantariam. Fiquei surpreso e chocado pelo caráter fulminante dessa implosão. Reforçou-se na minha consciência a compreensão de que o socialismo deve ser construído não apenas para o povo ao qual se destina, mas com ele. Só pode existir se for uma obra coletiva, indissociavelmente ligado à democracia.

Hoje, quando o capitalismo triunfante se torna senhor absoluto do planeta, assistimos, de um lado, a inovações tecnológicas que transformam os processos produtivos, tornando possível um mundo de abundância, conforto e acesso à cultura e, de outro lado, à acumulação de desigualdades, ao aprofundamento da exclusão social no interior de cada país, à marginalização crescente dos países pobres, à mutilação da própria natureza. Centenas de milhões de seres humanos estão condenados pelo desemprego à pobreza extrema e à sua face mais cruel, a miséria.

Eivado dessas contradições, o mundo capitalista entra, assim, numa crise sem saída – e agrava problemas para os quais já não tem solução.

A utopia, o sonho de um socialismo renovado continuam, pois, tão necessários como antes: já não apenas como horizontes da libertação humana, mas também como condição de sobrevivência da natureza e da sociedade.

Nessa minha longa trajetória procurei, antes de tudo, um mínimo de coerência As visões de justiça adquiridas na casa paterna se prolongaram pelas mãos de Pádua de Almeida e José Ingenieros, na compreensão de que não se pode viver sem ter diante de si um ideal. Um pouco mais tarde, na procura de identidade entre o ideal e a vida, é o encontro com o marxismo e a riqueza de sua ciência social, e o mergulho na prática política revolucionária. Com o PCB, a mística partidária dos anos 30, e a trajetória romântica de militante e visionário. Sob o lema dos ideais contraídos, um halo de otimismo que muitas vezes se confunde com a ingenuidade.

Em cada página, junto com a vontade de acertar, erros de percurso. Na medida do possível, a recusa aos impulsos da intolerância. Em certas circunstâncias – sobretudo sob o cunho religioso das relações partidárias internas – a diluição do espírito crítico e a despersonalização fácil, ainda que transitória. E uma cultura precária no quadro tanto da arte quanto das doutrinas sociais.

Com a Renée, o amor profundo e privilegiado de toda uma vida.

E uma floração de amizades sinceras, sem as quais viver não tem sentido.
E uma constante e saborosa vontade de viver.
Alimentada sem artifícios. Pois, felizmente,
de viver a vida não me fartou…

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