Um episódio na Resistência Francesa
Aperto o passo, aproximo-me, ponho-me à altura do inimigo, mas não o quero agredir pelas costas. Interpelo-o, como numa provocação, e ele, surpreso, leva a mão à cintura. Meu cassetete, porém, já lhe desceu sobre a cabeça, impelido pelo máximo de minhas forças.
“[…] volto para Marselha e para as ações guerreiras que se vão superando em ousadia. Como, entretanto torná-las contínuas e fazê-las progredir em crescendo? Com armas. Onde encontrá-las? A resposta é formulada na zona ocupada. “A chacun son boche” (a cada um seu alemão). E os há de sobra, perambulando pelas ruas e portando o armamento de que a Resistência precisa.
Para que os possamos atingir, nosso serviço técnico regional já encomendara a uma metalúrgica boa porção de bastonetes de aço, relativamente leves e fáceis de camuflar – adaptam-se ao bolso interno do sobretudo ou do paletó – mas bastante potentes para as ações de choque. Cada um de nós agora tem um desses por companhia.
Trata-se de tarefa coletiva mas de aplicação individual. – localizar e seguir um alvo ambulante, para conhecer-lhes o itinerário corrente e criar condições para o bote. Isso implica, naturalmente, estudar a topografia local e selecionar as áreas propícias: desde já estão excluídas as áreas centrais e de trânsito intenso. Preferimos, é claro, as ruas adjacentes.
Por elas passo a transitar, como distraído. Uma tarde, nas imediações do monumento des Réformes e próximo à igreja de la Madeleine, estou subindo uma rua em aclive, levemente sinuosa e quase erma, quando vislumbro o azinhavre de um uniforme isolado. Um sargento, penso, adivinhando-lhe o coldre sob a túnica. Sigo-lhe os passos, a certa distância, e percebo que ao cair da noite a rua é coberta por ligeira sombra. Mais: a uma certa altura, esvazia-se de transeuntes. Repito uma e outra vez a espreita e constato que o percurso se repete dia-a-dia.
Três jornadas depois, num quase deserto, estou outra vez no rastro do uniforme, que galga displicentemente a calçada direita. Duas pessoas passam por mim no mesmo sentido; parecem apressadas, e para meu alívio logo as perco de vista. A presa chega ao topo, e as janelas e portas ao redor não emitem sinal de vida – é chegado o momento. Aperto o passo, aproximo-me, ponho-me à altura do inimigo, mas não o quero agredir pelas costas. Interpelo-o, como numa provocação, e ele, surpreso, leva a mão à cintura. Meu cassetete, porém, já lhe desceu sobre a cabeça, impelido pelo máximo de minhas forças – tenho aos pés uma pedra caída. Sem detença, apalpo-lhe o coldre, retiro a pistola, recolho um punhado de munição. De súbito me entra pelos olhos a nova realidade: eu, que nunca matara corpo a corpo um homem, estremeço diante do sangue a cobrir a têmpora do nazista. Penso que posso ter matado um operário, um trabalhador comum compulsoriamente mobilizado. Percorre-me um frio agudo e, esquecido do resto da munição, surpreendo-me quase correndo ladeira abaixo.
Ao atingir uma transversal, busco conter-me e caminhar normalmente, mais que tudo para poder discutir comigo mesmo e voltar a ser uno. Tenho de me repetir verdades que pareciam assimiladas fazia muito: a fome e a humilhação do povo francês, os dois milhões de prisioneiros nos stalags (campos de concentração); os retirantes sob a metralha alemã, os judeus, comunistas e demais patriotas fuzilados. Enfim, seja qual seja sua origem social, o militar que acabo de abater traz o uniforme dos invasores, é portanto inimigo do povo francês, participante ou cúmplice da pilhagem do país e dos crimes nazistas. Respiro fundo. Ao entrar em casa, já novamente estou senhor de mim.