Escola Militar do Realengo
Logo me habituo ao ritmo e ao rigor das instruções – o militar, afinal, deve ser antes de tudo um forte.
Entro para a Escola Militar do Realengo em 1930 ou, para ser mais preciso, a dois meses de Prestes lançar o manifesto de repúdio à Aliança Liberal e a sete do movimento político-militar encabeçado por Getúlio Vargas. A República Velha passa por sua maior e definitiva crise e, como a parte dos cadetes, chocam-me os desmandos políticos, os descaminhos éticos que assolam o país.
Para estudar no Realengo, havia dois caminhos: ou se era transferido automaticamente dos colégios militares, ou se tinha de prestar exame de admissão. Os obrigados a isto freqüentavam o Curso Anexo da Escola Militar, preparatório, razão por que nos chamavam anexins ou, antes, «anechins».
E de fato, não apenas pela origem como pelo conseqüente modo de ser, constituíamos uma faixa distinta no corpo de cadetes. A imensa maioria dos 750 alunos do Realengo provinha dos colégios militares de Fortaleza, Barbacena, Rio e Porto Alegre, e, após esses cinco anos de disciplina severa, em certa medida já estava impregnada da índole castrense. Na escola, pois, sentia-se no seu elemento. Os anechins, por seu turno, indóceis e irreverentes como qualquer jovem, experimentáramos nos colégios civis certo grau de liberdade, o que implicava maior espírito de iniciativa. Aos noviços da caserna, por conseqüência, o regime da Escola do Realengo afigurava-se grandemente opressivo. Estranhávamos a dureza dos exercícios, o rigor dos regulamentos, a rigidez dos instrutores.
Buscavam inculcar-nos, claro, e com paciência relativa, as características do oficial exemplar, crente de sua excelsa missão, para as mais árduas tarefas de quase-automatismo, de obediência incondicional, de fé inabalável e cega.
A nostalgia do antigo modus faciendi levava a que os anechins tivessem comportamento até certo ponto próprio e buscassem válvulas de escape. Assim, se durante o dia estávamos isolados no interior do quartel, amiúde estaríamos galgando à noite os altos muros – para ir ao cinema ou, via expressos da Central do Brasil, para noitadas em Bangu e Santa Cruz.
Com ou sem escapadelas, no entanto, tínhamos de cumprir o exaustivo de nossa jornada. Às 5:30, arrancava-nos da cama o clarim. Das 6 às 11, triturava-nos a moedeira de marchas e simulações de combate nos campos de Gericinó. (Desde sempre magrinho, após meus primeiros dias de soldado passo uma semana estirado e hirto, todo distensão muscular). Em seguida, a parada sob inspeção de comando. Ao meio-dia, a primeira refeição.Um intervalo de meia hora entre o rancho e as aulas, a que invariavelmente chegávamos surrados e com sono, donde a preferência por carteiras afastadas do professor, para que este não notasse os cochilos. Às 18 horas o jantar e, após uma hora de folga nas ruas do bairro, os estudos, e fugas, e catres noturnos.
[…] Acresce, no que me toca, que além de anechim pertencia a um subgrupo: o dos cadetes laranjeiras, composto pelos que, vindos das demais latitudes do Brasil, não tinham vida familiar e social no Rio. Também nos finais de semana tínhamos nossas farras noturnas, claro, mas e nos domingos de dia? Ou ficávamos lendo, ou íamos à Parada de Lucas chupar laranja até sair sumo pelos ouvidos.
Era tal a mofa sobre os laranjeiras, que certa feita ocuparam uma página da nossa revista com a charge: “As escolas de Filosofia ou as filosofias na Escola”, que classificava os cadetes segundo nossa realidade: havia os estóicos (sempre a valsar, felizes), os platônicos (sempre aos beijos com as namoradas) e os epicuristas (os laranjeiras, sempre à sua mesinha de estudo, até tarde da noite e alheios à vida trepidante das ruas)
[…] Em que pese o choque inicial da vida castrense, este anechim laranjeira não tardará a sentir-se a gosto na Escola.
Logo me habituo ao ritmo e ao rigor das instruções – o militar, afinal, deve ser antes de tudo um forte.
Logo me envolve o clima geral de irreverência, autopilhéria incluída, Se os ingleses projetavam em Brummel a imagem do galã garboso, não deixaríamos por menos – fortificados pelo xarope de exercícios, cada um de nós, irresistível sedutor, era um “bromil” (nome de um fortificante da época).
Logo mergulho no vasto mar da camaradagem cadete, manifesta, entre tantos exemplos, na mobilização de retaguarda para cobrir-nos o “bromiliar” noturno e impedir-nos a punição.
Logo me encanta o fervilhar da cidade grande, sua arte, suas belezas naturais, bem como o estar-me tornando economicamente autônomo – o soldo é parco e a família ainda envia extras, mas me sinto dono do meu nariz.