"Goulart reuniu-se com seus ministros e concluiu que a saída para reprimir as tentativas golpistas, e inclusive prender Lacerda, seria a instituição do estado de sítio. No dia 4 de outubro, Goulart pediu a decretação da medida ao Congresso Nacional".O ano 1963 havia começado bem para [João] Goulart. Um plebiscito decidiu, em janeiro, se deveria ou não continuar o parlamentarismo que lhe havia sido imposto, para que ele pudesse assumir a Presidência em setembro de 1961, logo após a renúncia de Jânio Quadros, do qual era vice. O parlamentarismo foi fragorosamente derrotado: quase 10 milhões de brasileiros disseram sim ao presidencialismo e apenas um milhão confirmariam o parlamentarismo. A direita, no entanto, não se conformava e articulava a derrubada do presidente. Os sinais mais claros da confrontação foram dados no segundo semestre de 1963. O governador do Rio de Janeiro, Carlos Lacerda, golpista conhecido, concedeu uma entrevista agressiva ao Los Angeles Times, afirmando que Goulart iria ser deposto, que havia uma conspiração militar em marcha, e criticou duramente alguns chefes militares leais ao governo.

Goulart reuniu-se com seus ministros e concluiu que a saída para reprimir as tentativas golpistas, e inclusive prender Lacerda, seria a instituição do estado de sítio. No dia 4 de outubro, Goulart pediu a decretação da medida ao Congresso Nacional. Logo depois, foi obrigado a retirar a proposta porque lideranças importantes como Miguel Arraes e Leonel Brizola (governadores do Pernambuco e Rio Grande do Sul), além das forças de direita, opuseram-se à idéia. […] Goulart pretendia reprimir os golpistas, entre os quais Adhemar de Barros, governador de São Paulo, outro dos envolvidos em articulações contra o governo constitucional. Lacerda e Adhemar saíram fortalecidos do episódio e com eles todas, e não eram poucas, as forças empenhadas no golpe. Os dois lados, então, eram o do governo, com a proposta de reformas de base, e o da direita, que pretendia não só manter o status quo como acrescentar exigências feitas pelos EUA de abrir, ainda mais, o país ao capital estrangeiro, e sobre ele exercer a tutela política e econômica, que o período da Guerra Fria ensejava. […] A atividade intervencionista da Embaixada dos EUA no país era impressionante. Em 1962, foram gastos mais de 20 milhões de dólares para, por meio do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad), financiar a eleição de parlamentares comprometidos com as teses da colaboração submissa. No golpe se viu o quanto isso foi importante.

[…] Eu sentia nele [João Goulart] a convicção de que era possível chegar às reformas pelos caminhos democráticos. Sabia, no início de 1964, que era a hora de evitar indecisões, e a assinatura do decreto de regulamentação dos investimentos estrangeiros e da remessa de lucros era parte dessa atitude. Goulart acreditava no seu esquema militar – o que se revelaria uma crença sem base real. Recorreu às massas populares para apoiar as reformas de base. As mais de 200 mil pessoas que lotaram a Praça da Central do Brasil, no Rio, no dia 13 de março viram um presidente determinado anunciando, no palanque, o decreto de encampação das refinarias privadas de petróleo, a declaração de interesse social para fins de desapropriação de uma faixa de 500 metros ao longo das estradas, ferrovias e patrimônios públicos de acumulação de água, além de diretrizes para uma reforma urbana que garantisse moradia à população mais pobre. […] No dia 15 de março, ele [João Goulart] enviou a Mensagem Presidencial ao Congresso. Nela, ele comunicava que a Lei de Remessa de Lucros iria ser cumprida imediatamente, anunciava a implantação da Embratel e da Eletrobrás. Propunha a adoção do princípio de que todo eleitor é elegível, a legalidade dos partidos políticos que afirmassem lealdade aos princípios democráticos e o direito de convocação de plebiscito para consulta ao povo sobre as reformas de base. A ênfase, no entanto, era para a reforma agrária. Goulart continuava acreditando ser possível construir um Brasil soberano e mais justo à base das reformas e de atitudes nacionalistas.

[No último dia do seu governo] o presidente chegou a Brasília, no dia 1º de abril, no começo da tarde e reuniu-se na Granja do Torto, entre outros, com Tancredo Neves, Doutel de Andrade, o general Nicolau Fico, comandante militar de Brasília, e o general Assis Brasil, chefe da Casa Militar. Elaborou um comunicado à Nação, informando-a das iniciativas golpistas e anunciando sua ida para o Rio Grande do Sul, para se unir às forças do III Exército, sob o comando do general Ladário Teles, e ao povo para manter a legalidade. Encontrei-me com Darcy Ribeiro, que me informou que o presidente tinha acabado de sair para o aeroporto. Fomos, eu e Darcy, para uma emissora de televisão falar à Nação […]. Conclamamos o povo a defender a legalidade. […] Disse que naquele episódio não haveria nem suicídio (como ocorrera com Getúlio Vargas, em 1954) e nem renúncia (como acontecera com Jânio Quadros, em 1961). Haveria resistência. Saímos dali direto para o aeroporto, esperando ainda despedir-me do presidente. Lá encontramos, entre outros, Tancredo Neves, Almino Afonso e os comandantes militares oficialmente ainda fiéis à ordem constitucional. O presidente já estava a bordo de um avião da Varig. Como a Presidência não tinha qualquer avião a jato e como havia a notícia de que o comando da Aeronáutica, golpista, dera ordens para interceptar o avião presidencial, era necessário um avião a jato que voasse mais alto que os caças da FAB. O presidente ficou quase uma hora aguardando dentro do avião Coronado, que não decolou. Fora sabotado. Eu e Darcy estranhamos a demora. Observamos que o general Fico estava pálido e começamos a desconfiar dele. Por fim, o presidente partiu em outro avião, de dois motores, da Presidência, um Convair, arriscando-se a ser alcançado por caças da FAB. A conspiração já alcançara Brasília. Com o presidente, seguiram, entre outros, o ministro da Saúde, Wilson Fadul, o ministro do Trabalho, senador Amaury Silva, e o chefe da Casa Militar, general Assis Brasil. No Rio Grande do Sul, o presidente encontrou Brizola e, apoiado pelo general Ladário Teles, acreditava poder organizar e liderar a resistência.

Na madrugada do dia 4, após reunião noturna na véspera, definindo rumos, com o deputado Rubens Paiva na coordenação da operação, saímos do Brasil. […] Só voltei a ver meus filhos em julho de 64, mas Yolanda foi encontrar-me em maio. Os primeiros tempos de exílio são de expectativa constante de retorno à pátria na semana seguinte. Qualquer notícia de solidariedade ou de resistência ganha dimensões extraordinárias. O passar dos meses foi amadurecendo nossa compreensão…


Trechos extraídos de entrevista a Emiliano José na Revista Teoria e Debate nº 48 (3º trimestre de 2001). Clique aqui para ler a entrevista na íntegra.

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