A presença de Apolonio e Mário Pedrosa, entre outras figuras como Lélia Abramo, Sérgio Buarque de Holanda e Antônio Cândido, exprime não apenas o alento das gerações anteriores à aventura que se reiniciava.

A presença de Apolonio

“Nalgum lugar faz-se esse homem…
Contra a vontade dos pais ele nasce,
contra a astúcia da medicina ele cresce.
e ama, contra a amargura da política.

Não lhe convém o débil nome de filho,
pois só a nós mesmos podemos gerar,
e esse nega, sorrindo, a escura fonte.

Irmão lhe chamaria, mas irmão
por quê, se a vida nova
se nutre de outros sais que não sabemos?

Ele é seu próprio irmão no dia vasto,
na vasta integração das formas puras, sublime arrolamento de contrários
enlaçados por fim.”

(Drummond, “Contemplação no banco”.)

Alguns de nós pudemos presenciar a entrada de Apolonio de Carvalho, ao lado de Mário Pedrosa no Colégio Sion, naquele fevereiro de 1980, no momento da fundação do Partido dos Trabalhadores. Poucos teremos refletido sobre o significado dela. Dois homens maduros, provados por trajetórias de militância incomparáveis. Vindos de tradições distintas. No severo cenário de um convento católico… Um, encarna o militante anti-fascista, que combateu o autoritarismo getulista, nos anos trinta, o franquismo na Espanha, os nazistas na resistência francesa, nos anos quarenta, identificado com a tradição da III Internacional. Outro, um intelectual apaixonado pela revolução, crítico de arte, referência entre os “malditos” por sua identificação com Leon Trostki e a IV Internacional. Acenavam, ambos, para os sobreviventes de uma geração que jogara sua vida e suas esperanças na luta contra o regime militar, para militantes dos movimentos comunitários cristãos e para os líderes da nova classe operária brasileira gestada no ventre da expansão industrial dos anos de chumbo.

O massacre de militantes e dirigentes, a destruição metódica das organizações populares, pelos comandos repressivos da ditadura não fora completo. Os sobreviventes saídos das prisões ou retornados do exílio traziam consigo o alento das lutas anteriores, das experiências anteriores, dos sonhos anteriores. A força bruta do regime não alcançara a completa ruptura. Penso no significado deste fato quando acompanho, nos últimos meses, os jovens argentinos, os trabalhadores, as classes médias, os desempregados argentinos realizando assembléias nas praças públicas buscando recolher frágeis traços de esperança e unidade para compor um horizonte.

Que força nos unificava naquele 10 de fevereiro de 1980? Que solda flexível e generosa colava os sonhos fragmentados, as esperanças, as propostas, as idéias, os caminhos, as experiências de lutas acumuladas durante anos de silêncio e medo? O impulso de uma classe operária que saiu de si mesma e foi capaz de imantar os sonhos e unificar num vasto coro a multiplicidade das vozes dos oprimidos da sociedade brasileira. A presença de Apolonio e Mário Pedrosa, entre outras figuras como Lélia Abramo, Sérgio Buarque de Holanda e Antônio Cândido, exprime não apenas o alento das gerações anteriores à aventura que se reiniciava. Não apenas denuncia que a vitória da ditadura não fora completa. Revela o momento em que a classe operária forjava os instrumentos para que a esquerda se despedisse dos guetos a que fora submetida pela repressão e pela clandestinidade e se reencontrasse com a sociedade brasileira. Revela também que nosso povo reinventava insuspeitadas energias para oferecer alternativas ao país.

Aqui chego ao sentido da escolha dos versos que abrem estas linhas. Ao recordá-los imaginei que Carlos Drummond de Andrade em algum dia de sua vida deixou de lado sua luta árdua e sutil com as palavras para dedicar-se à fotografia. E converteu-se num lambe-lambe de praça pública para capturar, servindo-se de certos rituais não isentos de magia, o homem do povo Apolonio de Carvalho. Não consigo imaginar nenhum militante da revolução brasileira no século XX que melhor se aproxime desse retrato.

Importa saber se hoje, 22 anos depois de nos lançarmos ao mar, nos reconhecemos naqueles que deixaram o porto de partida. A presença de Apolonio nos vigia como um testemunho permanente e terno sobre as nossas escolhas. Ou como um espelho depositário de vastas tempestades. Essa luz fugitiva no horizonte é o porto de chegada ou apenas uma escala, na misteriosa e fascinante cartografia que vamos desenhando, enquanto navegamos? Aprendemos a sobreviver à solidão de quem busca o radicalmente novo. Na sua busca permanente pelo impossível, a trajetória de Apolonio de Carvalho nos inspira. Como a surpreendente e desassombrada poesia de seu amigo, pantaneiro como ele, Manoel de Barros, esse velho “armador de impossibilidades”. Percorrendo durante toda a sua vida os avessos da ordem, Apolonio aprendeu a ouvir e compreender que “no osso da fala dos loucos, tem lírios…”

Brasília, 19 de fevereiro de 2002.


* Pedro Tierra é poeta.

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