"Quando veio o golpe de 1964, a Igreja apoiou, ajudou a preparar, e fez a Marcha da Família."[O] início dos anos 60 foi um tempo de grande mobilização. Bem, eu era mais velha, podia ser mãe deles. Não estava mais tão mágica, já tinha mais os pés no chão, era mais realista. Em 1962, 1963, o pessoal tinha certeza de que a revolução vinha chegando – a revolução do nosso lado. Ninguém imaginava que viria o golpe militar. Estava tudo indo tão bem: até os ministros já estavam se modernizando. Foi uma época muito rica, porque todo mundo participava, a grande massa discutia.

[O clima dessa época era muito semelhante ao de hoje,] com outras características. Agora a gente vê as coisas de forma muito mais realista do que antigamente. As propostas têm mais os pés no chão. Agora é menos mágico, menos romântico. O pessoal agora está muito mais politizado. Naquela época, o grande tema dos estudantes era a reforma universitária. […] A gente pensou: "Temos de fazer o presidente da UNE (União Nacional dos Estudantes)." Aí fomos catar o [José] Serra, que estava estudando engenharia. […] Nós descobrimos que [ele] era inteligente e que, se déssemos uma engomada nele, ele toparia. Então, a gente pegou o Serra e disse: "Você vai ser o presidente da UNE." Ele disse: "O que é UNE?" "Bom, UNE é isto e aquilo." "Ah, tudo bem." E começamos a ganhar a UNE.

Eu participava [desses movimentos] porque era uma pessoa, professora universitária; então, tinha de participar. Aqui no nosso convento não tinha oposição a isso. Mas o bispo e a hierarquia eram muito contrários. […] A nossa congregação dependia diretamente de Roma. Graças a Deus, não dependia do bispo. O bispo não mandava na gente; e, na época, havia um papa bom, avançado [papa João XXIII]. Além disso, nós tínhamos superioras avançadas. Eu lhes contava nossas atividades. E elas diziam: "Ai, que coisa bonita! Vá em frente! Allez, allez." A gente só falava em francês dentro da congregação. Vocês sabem, não é? Era proibido falar português.

O comportamento da hierarquia ficou bem marcado com a troca de cartas entre Betinho, como líder da JUC [Juventude Universitária Católica], e o cardeal do Rio. Foi uma discussão que antecipou, de certa forma, os postulados da teologia da libertação. Na época, D. Jaime Câmara fez o papel que D. Eugênio Sales cumpre hoje: o cristão não pode se aliar aos comunistas, como a JUC vinha fazendo na UNE etc. e tal. Não era só proibição de se aliar aos comunistas, mas de participar da política. […] A Igreja estava sempre a favor dos governos. E dos governos reacionários, lógico. E quando começamos a criar esses movimentos, a JUC, a JOC – Juventude Operária Católica -, aí diziam que estávamos fazendo comunismo. […] Nossa Senhora! O que eu era xingada! Ouvia palavrão, era chamada de comunista: "Freira comunista." "Você é comunista." E o pessoal da alta sociedade me convidava para jantar. Eu dizia: "Vou, mas olhem, hein, eu sou comunista. Vocês não vão me fazer mudar de idéia, tá?" No jantar, a gente conversava. Eles diziam: "Mas a senhora não vê que é comunista?" Eu respondia: "Primeiro vocês vão me explicar por que ser comunista é mau." Eles não sabiam o que era comunismo. "Ah, o comunismo é tirar as coisas da gente." Quando veio o golpe de 1964, a Igreja apoiou, ajudou a preparar, e fez a Marcha da Família.

Todas [minhas amigas participaram dessas marchas]. As mesmas que me diziam que a Igreja não devia fazer política. Estavam todas lá, de terço na mão, marchando. Eu caçoava delas. Então o Lucas Garcez (ex-governador de São Paulo) veio me procurar [dois dias depois do golpe]. Falou com a superiora e comigo. "Eu aconselho a senhora a ir para a Europa, porque o governo militar… olha aqui." E mostrava uma papelada deste tamanho, contendo toda a minha vida. "Eles sabem tudo o que a senhora fez. Vão pegar a senhora. A senhora vai ser presa. É melhor ir para a Europa. Inclusive, eles estão facilitando a sua saída. Podem dar uma bolsa de estudos para a senhora estudar na Europa." Eu respondi: "De jeito nenhum! Se eles querem me prender, que prendam. Daqui eu não saio."

[…] Até 1968 era brincadeira. Estavam brincando de ditadura. Eu me lembro. A gente ia visitar os presos e entrava facilmente. Estava todo mundo lá jogando cartas. Ficavam pouco tempo presos e ninguém era torturado. Mas em 1968 a coisa começou a engrossar. As passeatas cresciam; a repressão aumentava. Um dos centros da luta era a rua Maria Antônia. Outro era a nossa clínica [de atendimento psicológico gratuito], lá na rua Caio Prado.


Trechos extraídos de entrevista a Maria Rita Kehl e Paulo Vannuchi na Revista Teoria e Debate nº 09 (1º trimestre de 1990). Clique aqui para ler a entrevista na íntegra.