Da Ilha de Gorée, a pouco mais de três quilômetros de Dakar, capital do Senegal, saíram entre 15 a 20 milhões de africanos para servir de mão de obra escrava em toda costa oeste dos Estados Unidos, no Brasil e no Haiti. Calcula-se que, destes, seis milhões não tenham chegado com vida ao outro lado do Atlântico. Ou seja, sequer chegaram ao destino – previamente traçado pelos senhores do mundo de então – cerca de 40% dos seres humanos amontoados como animais nos muitos navios de bandeira européia. A mesma Europa, por sinal, que hoje dominada pela lógica da exclusão, nega direitos aos trabalhadores migrantes e renega os mais elementares valores humanos.

Durante quase 400 anos, entre os séculos XV e XIX, o local – onde hoje está localizada Dakar, que sedia até o próximo domingo o Fórum Social Mundial – foi o maior centro de tráfico negreiro para a América. Por ser o ponto localizado mais a oeste do continente africano, era também o mais próximo para a travessia da carne humana. E dali (daqui), separados de seus entes queridos, partiram em duplas e com grilhões nos pés, homens, mulheres e crianças. Vidas desfeitas que vitaminaram, a suor e sangue, a riqueza das metrópoles. Vidas sugadas pelo açoite em intermináveis jornadas nas plantações, seja de cana de açúcar, algodão ou outro produto qualquer que o interesse do cifrão elegesse como prioritário.

Classificada como Patrimônio da Humanidade, a Ilha de Gorée voltou à cena do planeta nesta segunda-feira. Não mais como campo de concentração e anúncio de extermínio, não mais como centro de estupro ou aniquilação, mas de irmandade, congraçamento e solidariedade entre todos os povos, de todas as raças.

No Fórum Social Mundial, que reúne até o próximo domingo milhares de pessoas de mais de 120 países, a Central Única dos Trabalhadores, com apoio da Confederação Sindical Internacional (CSI-África) e da CGIL-Itália, transformou a Mansão dos Escravos, circo de horrores construído pelos holandeses em 1776 e atualmente transformado em museu, em palco para o lançamento da Cartilha “Igualdade faz a Diferença, Políticas para a Igualdade Racial e Combate à Discriminação”.

Na casa de dois pavimentos, visitada pelo Papa João Paulo II e por Nelson Mandela – que chorou ao ver os estreito buracos onde eram trancafiados os escravos –, a história emana das grossas paredes, faz brotar lágrimas e jorrar rios de reflexão. Ela ganha vida com a lembrança das meninas violentadas, dos jovens rebeldes jogados aos tubarões, das famílias dilaceradas pela separação, das tribos dizimadas, dos homens tratados como gado de engorda pelos senhores a fim de que pudessem enfrentar a dureza do percurso.

A longa e dura viagem até a incertidão era feita em barcos para 250 pessoas, que abarrotavam 400. Conforme o cálculo do “ajuste fiscal” de então, se previa a perda de 40% da “carga”, que deveria então ser lançada ao mar. A despedida da África era feita na “porta da viagem sem volta”, localizada embaixo da casa, ao centro, onde se pode ver e sentir junto à imensidão do mar, a profundidade da dor dos que por ali passaram.

“Este é um ato carregado de simbolismo, de uma emoção que carrega a intensidade das vidas ceifadas pela escravidão no passado, mas também no presente. Afinal, o neoliberalismo e o neocolonialismo mantém a mesma lógica perversa de exploração, particularmente sobre os países e povos da África”, denunciou Maria Júlia Nogueira, secretária nacional de Combate ao Racismo da CUT. O assalto das transnacionais aos recursos naturais do continente e a super exploração da mão de obra dos trabalhadores migrantes, com a negação de direitos básicos, alertou Júlia, são algumas das formas em que o passado continua contaminando e amaldiçoando o presente. “Comprometidos com a reparação desta injustiça histórica, temos apoiado as ações do governo brasileiro em benefício do povo africano, fortalecendo a integração e a solidariedade com maior presença do Estado no fomento a iniciativas que contribuam para a melhoria das condições de vida da sua população, como é a ação da Embrapa no continente”, apontou.

Em relação à negritude brasileira, frisou Maria Júlia Nogueira, “a CUT está empenhada em debater e consolidar ações afirmativas que diminuam as desigualdades e potencializem o protagonismo dos negros e negras, o que é essencial para a construção de uma nova realidade e de uma nova sociedade, justa e igualitária”.

A fim de que o debate sobre o continente africano ganhe maior projeção, assim como as bandeiras reivindicadas pelo movimento negro, a CUT do Estado de São Paulo vai promover um Primeiro de Maio focado no tema. Presente ao Fórum, o líder metalúrgico e presidente da CUT-SP, Adi dos Santos Lima está dialogando – e convidando – os sindicalistas africanos para que participem do evento. “Nosso sentimento, reforçado no dia de hoje com a visita à Ilha de Gorée, é que a história da África, que tanto nos diz respeito, continua esquecida, adormecida, e é preciso um gesto de despertar. Por isso o nosso objetivo é fazer do Dia do Trabalhador em São Paulo um espaço para diminuir as distâncias que ainda nos separam do povo africano, que está na nossa origem. É hora de valorizar sua contribuição para a construção da nossa identidade. Será uma comemoração que, assim como neste lançamento da nossa cartilha, a classe trabalhadora celebrará a valorização da vida, relembrando as suas raízes”, ressaltou Adi.

De acordo com o secretário de Políticas Sociais da CUT Nacional, Expedito Solaney, o lançamento da cartilha durante o Fórum Social Mundial dialoga com a necessidade de fazer um contraponto à ideologia reacionária e racista que move a globalização neoliberal, que representa a negação de direitos básicos a expressivas parcelas da população, particularmente no continente africano. Mas também no nosso país, declarou Solaney, “precisamos estar atentos ao combate à desigualdade, que necessita de políticas afirmativas para que a população negra tenha emprego digno e salário justo”. Lembrando que “o sistema capitalista ainda é uma forma de escravidão”, Solaney destacou que é preciso aumentar o nível de organização e consciência da classe trabalhadora para a sua superação.

Solaney lembrou que do ponto de vista mais imediato, a CUT tem estado à frente da luta pela erradicação do trabalho escravo, apoiando as ações do Grupo Móvel do Ministério do Trabalho, que tem libertado em média 25 mil dos 40 mil trabalhadores e trabalhadoras anualmente submetidos a tão pusilânimes relações. “É necessário ampliar os investimentos para erradicarmos definitivamente esta mazela que ainda existe em nosso país, penalizando brancos e negros, particularmente em estados como o Maranhão e o Piauí”. Para acabar com esta chaga, destacou, “defendemos que o governo federal coloque em pauta, com o máximo de urgência, a PEC 438, expropriando as propriedades rurais onde forem encontrados trabalhadores em condições análogas à de escravidão”. “Não podemos e não vamos permitir que seres humanos sejam tratados como coisas, como objetos descartáveis, como dejeto”, enfatizou.

Como jovem, mulher e negra, Rosana Souza, secretária nacional de Juventude da CUT falou sobre a emoção de participar da cerimônia na Mansão dos Escravos, contando com o apoio e a solidariedade de companheiros e companheiras de vários países como Bélgica, Canadá, Espanha, Estados Unidos, França e Itália. “É duro falar sobre a intensidade desta sensação. Difícil entender tamanha crueldade contra crianças, jovens e mulheres que eram trocados ou vendidos a preço de nada. Também foi triste ver um local que carrega tanto sofrimento. Mais difícil ainda é pensar no abuso sexual a que eram submetidas as mulheres negras que, infelizmente, continuam carregando o peso da discriminação e do preconceito em nossos países, sendo vistas muitas vezes apenas como objeto de prazer”, acrescentou Rosana.

Também participaram do evento a secretária nacional de Comunicação da CUT, Rosane Bertotti; o secretário de Relações do Trabalho da CUT Nacional, Manoel Messias, lideranças da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Seguridade Social (CNTSS), da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE) e da Apeoesp.