Reunião do G-20 em Seul: mudanças e continuidades
Presenciamos em Novembro mais uma reunião do chamado G-20, grupo de países desenvolvidos e em desenvolvimento que vem discutindo e encaminhando propostas e medidas a respeito da crise econômica internacional desde 2008. Esse grupo de países (Alemanha, África do Sul, Arábia Saudita, Argentina, Austrália, Brasil, Canadá, China, Coréia do Sul, EUA, França, Índia, Indonésia, Inglaterra, Itália, Japão, México, Rússia, Turquia e a representação da União Européia) já vinha se reunindo desde 1999, na forma de uma reunião de máximas autoridades financeiras e monetárias dos países (isto é, ministros de Fazenda/Finanças e presidentes de bancos centrais), mas a eclosão da crise financeira aguda, a partir de 2008, altera a natureza das reuniões, onde seguem existindo as antigas reuniões de autoridades monetárias e financeiras, mas passam a acontecer também, simultaneamente ou não, reuniões dos chefes de Estado e/ou de Governo. Isso passa a acontecer a partir da reunião de Pittsburgh, EUA, ao final de 2008, no quadro da turbulência da crise e orientado por anterior reunião do G-20 no seu formato anterior ocorrida no Brasil. A estrutura de funcionamento é “semi-formal”, isto é, não existe uma institucionalidade, as decisões são tomadas por consenso entre os membros, não existe um corpo de funcionários do G-20 como tal, e a presidência é rotativa entre os participantes (desde 2008, presidiram o Brasil, em 2008, a Inglaterra, em 2009, a Coréia do Sul em 2010 e a França, local da reunião seguinte a da Coréia do Sul, presidirá em 2011). Por outro lado, instituições oficiais e formais funcionam como órgãos assessores, como a OCDE, o Banco Mundial e o FMI, e o BIS e o Comitê da Basiléia, na área financeira, e ainda o Comitê de Estabilidade Financeira (FSB, Financial Stability Board, na sigla em inglês, criado a partir de abril de 2009 para suceder o Forum de Estabilidade Financeira, por determinação dos “líderes” do G-20). Além disso, o G-20 se relaciona de fato com o Sistema ONU, embora as relações entre esses dois espaços, um semi-formal e de legitimidade discutível, embora com poder de fato, e outra com formalidade, institucionalidade e legitimidade, não sejam muito claras e definidas. No caso recente, a reunião de chefes de Estado e/ou de Governo de Seul se seguiu a uma reunião umas 3 semanas antes em Gyeongju, também na Coréia do Sul, de ministros de Fazenda/Finanças e presidentes de bancos centrais.
Desde a eclosão do período mais agudo da crise, em fins de 2008, o G-20 tomou a si o tema da administração da crise, do salvamento do sistema econômico e financeiro que ruía sob um mar de turbulências oriundas da especulação financeira, e da recuperação econômica. A partir de suas resoluções, foi também incorporando na agenda de discussão os temas do desenvolvimento e do emprego, do meio ambiente e da crise do padrão energético – em uma perspectiva que, de certo modo, assumia uma crise sistêmica e multifacetada. Assim, de acordo com o momento, as resoluções do G-20 trataram de forma mais superficial ou mais profunda esses vários temas. No caso da reunião na Coréia do Sul, do ponto de vista das medidas relacionadas à crise iniciada em 2008, prevaleceram as discussões sobre uma rede de proteção financeira, consolidação fiscal e alguns temas relacionados à questão do desenvolvimento, sobre os quais se focaram os anfitriões sul-coreanos (como a estrutura do G-20 é razoavelmente informal, o papel do anfitrião na condução da reunião e suas conclusões acaba crescendo de importância). Também houve uma posição mais clara sobre as mudanças na composição de cotas de participação no FMI (os países participam financeiramente e na estrutura de poder do Fundo Monetário Internacional a partir das cotas que possuem do Fundo), no sentido de uma transição mais rápida para uma participação maior e com direito a mais poder dos chamados países em desenvolvimento, particularmente China, Índia e, em menor escala, Brasil.
A reunião de Seul foi marcada pela seqüência da instabilidade nos países europeus – a discussão sobre novas turbulências financeiras em países da chamada “periferia européia”, como Irlanda e Portugal e da adoção de programas de austeridade por toda a Europa para enfrentar a questão do pagamento dos programas de salvação dos bancos –, pelo processo eleitoral dos EUA e o crescimento da oposição conservadora, e especialmente pela ameaça da chamada “guerra cambial” entre EUA e China, isto é, a possibilidade de desvalorizações competitivas das taxas de câmbio entre os dois países como medida de tentar reverter o desequilíbrio do comércio entre esses países, com os necessários reflexos sobre os demais países do G-20 e fora do G-20.
O crescimento de posições políticas conservadoras na Europa e nos EUA reforçou ainda mais as tendências já evidentes na anterior reunião do G-20 em Toronto, Canadá, e expressas no documento final do encontro, de colocar mais ênfase na questão da chamada “consolidação fiscal”, agora colocada como uma pré-condição para o crescimento sustentável de longo-prazo, mesmo em um quadro em que o próprio documento (“Declaração dos Líderes”) afirma que os riscos prevalecem: “Alguns de nós estamos experimentando forte crescimento, enquanto outros se deparam com altos níveis de desemprego e recuperação lenta”.1. Ou seja, evidencia que começam o ajuste antes de que se generalize a retomada da atividade econômica, e isso é evidente quando se olha para os EUA e a ampla maioria dos países europeus. Alguns analistas econômicos de formação mais firmemente keynesiana chegam a afirmar que essa mudança de orientação e políticas, somada a ainda prevalecente ausência de instrumentos reguladores mais eficientes em relação à especulação financeira, podem jogar a economia internacional de novo em uma trajetória de forte recessão.
Neste quadro geral do documento, chega a soar como mera retórica o item 5, que fala que “Nós reconhecemos a importância de nos remeter às preocupações dos menos vulneráveis. Para isso, estamos determinados a colocar os empregos como o coração da recuperação, prover proteção social, trabalho decente e também assegurar crescimento acelerado para os países de baixa renda”.2
Especificamente sobre os temas tratados na reunião, vale a pena citar o cuidado com que foram redigidos aparentemente os parágrafos que dão a entender a preocupação com o tema da chamada “guerra cambial”, buscando incluir as preocupações dos EUA sobre a moeda chinesa sem diretamente citar o tema e molestar de alguma forma os chineses (vale de novo lembrar que as decisões/declarações são feitas por consenso, o que sempre impede qualquer referência a algum tema que um dos participantes não queira abertamente que seja citado ou decidido). Sobre os temas de comércio, de novo, como em Toronto, referências sem data à necessidade de concluir a Rodada de Doha de negociações comerciais na OMC como conseqüência de textos que reafirmam princípios do livre comércio e tentam exorcizar a possibilidade de novas barreiras ao comércio e o protecionismo, embora sem datas ou orientações mais precisas de como concluir o processo negociador multilateral na OMC.
Sobre a chamada regulação financeira, dessa vez se avançou mais sobre esse tema, com muitas referências a novas normas prudenciais e de regulação financeira (mais evidentes inclusive na declaração dos ministros e autoridades monetárias em Gyeongju). Ou seja, nesse nível parece que se chegou finalmente a um acordo sobre novas regras, apontando para um “Acordo de Basiléia III” (referência aos acordos anteriores de regulação da atividade bancária e financeira). Apesar disso, muitos analistas apontam que as regras seguem muito focadas nos bancos, e seriam restritas no sentido de evitar a atividade de fundos especulativos e outras instituições financeiras de fato que operam paralelamente aos bancos.
Outro ponto importante diz respeito a que, no bojo das discussões sobre regulação financeira no nível nacional, “guerra cambial”, consolidação fiscal e outros assuntos, ficou estabelecido um nível consultivo de acompanhamento recíproco entre os países, o chamado “Mutual Assessment Process” (sigla em inglês MAP, em uma tradução livre o Processo de Avaliação Mútuo). Esse mecanismo vai aos poucos ser operacionalizado (ou não…) com a colaboração de outras instituições de apoio ao G-20, como o FMI, mas em funcionamento permitiria que os vários países membros monitorassem conjuntamente suas políticas e de alguma forma, as “negociassem” no que diz respeito à possibilidade de influência sobre os interesses dos demais. Aparentemente é uma aposta na regulação “concertada e multilateral”, contrariando o quadro de decisões de política meramente nacional que tem prevalecido até aqui, concretamente, no enfrentamento da crise e das turbulências. A ver como vai funcionar.
Finalmente, vale apontar uma série de pontos que dizem respeito a questão do desenvolvimento e que foram progressivamente introduzidos na discussão, especialmente pelos anfitriões sul-coreanos. A ver no próximo período se foram de fato incluídos de forma profunda na discussão, ou foram apenas uma concessão política retórica a uma preocupação dos que sediaram e secretariaram o encontro.
Adhemar S. Mineiro, técnico do DIEESE e assessor da CSA.