Tarso Genro: “Papel das Forças Armadas não é cuidar da Segurança Pública”
Em entrevista à Carta Maior, o ex-ministro da Justiça e governador eleito do Rio Grande do Sul, Tarso Genro (PT), afirma que, no Rio de Janeiro, está se jogando não apenas o futuro da segurança pública deste Estado, mas sim o destino das políticas de segurança pública em todo o país. “Não podemos alimentar a ideia de que as Forças Armadas são instituições que têm como papel prover segurança à população”, defende. Segundo Tarso, a preocupação em relação ao Rio de Janeiro não é com o que está acontecendo agora, mas sim com o que vai acontecer daqui para frente. “A experiência de substituição da polícia pelas Forças Armadas no enfrentamento do crime organizado, como ocorreu no México, é desastrosa”.
Carta Maior: A partir dos recentes acontecimentos no Rio de Janeiro, a segurança pública voltou ao centro do debate público no país. O governo federal instituiu uma política nacional para o setor, por meio do Pronasci. Qual é a concepção que embala essa política?
Tarso Genro: O Programa Nacional de Segurança Pública (Pronasci) é originário de uma lei e de um pacto político que promovemos, através do Ministério da Justiça, com os Estados, as prefeituras e os operadores da segurança pública no Brasil, secretários estaduais, comandantes de polícias militares, delegados de polícia e operadores da área do Direito. A 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública consolidou a ideia do Pronasci. Seus elementos são os seguintes:
Em primeiro lugar, a corresponsabilidade entre União, estados e municípios, de maneira conjugada. Os municípios passam a ser sujeitos ativos da segurança pública com políticas preventivas, especialmente para a juventude, oferecendo educação, trabalho e formação.
O segundo elemento é a concepção que origina os gabinetes integrados de segurança pública, que são um momento de convergência das três esferas federativas, das autoridades policiais e de representantes do Ministério Público quando for o caso. Essas instâncias conjugam seus esforços não somente no que se refere ao controle da criminalidade, mas também na questão operacional, ou seja, atuam de maneira combinada e integrada com equipamentos tecnológicos de alto nível.
O terceiro é a localização de zonas de conflito mais aguda e a transformação dessas áreas naquilo que chamamos de Territórios de Paz, que podem ser adaptados de região para região. Nestes territórios, é preciso implementar políticas de infraestrutura, políticas para a juventude, para as mães e mulheres da região, articulação de políticas sociais com a comunidade e garantir a presença permanente do Estado, não somente por meio do Ministério Público e de juizados, se for o caso, mas também com um policiamento permanente, com policiais treinados para isso. O nome não interessa: pode ser UPP, polícia comunitária ou polícia cidadã. São policiais que entram na área, são treinados para isso, ficam lá e são sempre os mesmos. Além disso, têm uma remuneração diferenciada, pois estão nos programas de formação do governo federal e também recebem um aporte da prefeitura.
O quarto elemento é uma articulação institucional do Estado com as comunidades organizadas para que não haja mais estranhamento entre as forças policiais e a comunidade. A ideia é que o cidadão se sinta confortável com a presença da polícia que ele conhece, para depor em processos, sem se intimidar diante dos criminosos que controlam o território. Esse território pode ser acessível diretamente a esses programas, como ocorre aqui na Guajuviras, em Canoas (região metropolitana de Porto Alegre), onde havia controle territorial armado por criminosos, ou pode ser um território de maior complexidade, como é o caso do Rio de Janeiro, onde o Complexo do Alemão é um dos exemplos mais complicados.
O Pronasci não é aplicável mecanicamente em diferentes regiões, preservando determinados princípios. A sua grande inovação é uma conjugação de programas de Estado de natureza social, com ações materiais de infraestrutura, qualificação de policiais, presença permanente da polícia, integração da polícia com a comunidade e esforço conjugado com financiamento do governo federal que alcançou neste último período valores extraordinários. Só para o Rio de Janeiro, repassamos, nos últimos dois anos, meio bilhão de reais em recursos federais.
Tomando o Rio de Janeiro como exemplo, qual sua avaliação sobre a implantação do Pronasci neste Estado, onde há um ambiente mais complexo e difícil do que o encontrado na maioria dos estados brasileiros?
Quando discutimos o programa, trabalhamos com duas hipóteses relacionadas com a questão da ocupação territorial. A primeira seria uma ocupação territorial feita, em primeiro lugar, pelos programas sociais, desdobrando-se a partir daí uma ação policial de alto nível conjugada com esses programas. A outra hipótese de ocupação territorial é quando existe um controle armado por quadrilhas e o Estado é substituído por essas quadrilhas organizadas. No Rio de Janeiro, sempre soubemos que enfrentaríamos esses dois tipos de territórios. Tanto o governador Sérgio Cabral quanto o secretário Beltrame sempre estiveram muito conscientes disso.
A introdução do Pronasci no Rio de Janeiro foi processual. O programa teve um bom acolhimento da Polícia Militar e do governador. Como era um programa novo, exigiu uma modificação cultural que foi patrocinada pelo governador Sérgio Cabral e que permitiu o acolhimento do Pronasci. O que aconteceu no Complexo do Alemão, com a entrada dos blindados das Forças Armadas, era previsível e possível dentro da concepção do Pronasci. Esse acontecimento, por outro lado, põe o programa em seu ponto mais elevado e exige que escolhamos um caminho. Caso contrário o programa pode entrar em crise.
Nos acontecimentos do Rio de Janeiro, era necessário o uso daqueles aparatos militares para derrubar as barreiras, algumas delas de concreto, colocadas pelos criminosos. Também era necessário – e continua sendo – um apoio logístico e um apoio na retaguarda dos policiais. O grande problema que o Rio de Janeiro terá que enfrentar agora é sobre quem deverá permanecer nas áreas ocupadas: as forças armadas ou as forças de segurança do Estado? Isso tem efeitos completamente diferentes. A presença ostensiva e permanente das Forças Armadas substituindo a Polícia baixa a autoestima dos policiais e reduz a confiança da população nos policiais que são treinados especificamente para cumprir essa função de policiamento.
Estou fazendo essa colocação, não partindo do pressuposto de que há um sentido de permanência das Forças Armadas naquela região, mas atento a determinadas declarações de oficiais que chegam a dizer: “viemos aqui para ficar”. Essa formulação, na minha opinião, é equivocada, por dois motivos. Em primeiro lugar, porque leva um militar a falar sobre segurança pública, que não é sua função. Em segundo, cria na comunidade uma expectativa de que a presença do Exército pode ser permanente na região. Para essa presença ser correta, como está sendo até agora, ela tem que ser provisória, previsível e para dar sustentação à entrada das forças policiais do Estado, devidamente treinadas para isso.
Essa permanência ou não de aparatos militares mais ostensivos não depende também da intensidade e da natureza reação do crime organizado à ação das forças policiais do Estado? No caso do Rio, o deslocamento em massa de criminosos para outras favelas não aumenta a força dessa dimensão “mais militar” para resolver o problema?
Essa é a concepção dominante até hoje. Mas creio que ela está baseada em um equívoco de fundo. Primeiro, porque as Forças Armadas são treinadas para a guerra. Essas operações de guerra não podem ser realizadas em uma ocupação territorial com população civil. Em segundo, porque a complexidade da “limpeza do terreno” – para usar uma expressão usada pelos militares – para a ocupação de uma força militar na guerra é totalmente diferente da ocupação de um terreno habitado por população civil, com o objetivo de isolar um grupo de criminosos. A primeira hipótese envolve uma ação direta, violenta, planejada e, ordinariamente, de terra arrasada. Já a segunda é uma presença onde a comunidade participa e escolhe e onde a minoria representada pelos criminosos é isolada inclusive por meio de enfrentamento armado, quando necessário.
A preocupação que as pessoas que ajudaram a conceber o Pronasci tem em relação ao Rio de Janeiro não é com o que está acontecendo agora, que está bem, mas sim com o que vai acontecer daqui para frente. A experiência de substituição da polícia pelas Forças Armadas no enfrentamento do crime organizado, como está acontecendo no México, é totalmente desastrosa. Desastrosa para o Exército, para a segurança pública e para a população. Não há exemplo onde isso tenha acontecido com sucesso a não ser, obviamente, em ocupações de cidades em época de guerra. Esse, é claro, não é o caso do Rio de Janeiro.
Preocupou-nos também, durante os episódios que ocorreram no Rio de Janeiro, que, em determinado momento, quem falava sobre segurança pública era o ministro da Defesa e não o ministro da Justiça. É óbvio que o ministro da Defesa tem o direito de manifestar-se e falar sobre o que as Forças Armadas estão fazendo lá. Agora, não compete ao ministro da Defesa falar sobre Segurança Pública. Quem deve falar sobre isso é o governador, o secretário da área e o ministro da Justiça. Esse dado contingente que se viu no Rio de Janeiro – tomara que seja contingente – não pode ser tomado como uma mudança de inflexão no projeto de segurança pública do Rio de Janeiro. Se assim for tomado, pode comprometer seu futuro. Acredito que isso não ocorrerá, pois conheço a competência do governador Sérgio Cabral e dos operadores de Segurança Pública do Rio, especialmente o secretário Beltrame.
Para além do enfrentamento direto do crime organizado e de suas quadrilhas de narcotraficantes, quais devem ser as prioridades, inclusive no seu governo no Rio Grande do Sul, na área da Segurança Pública?
A situação do Rio Grande do Sul é muito diferente da do Rio de Janeiro. Nós não temos aqui nenhum território em que a polícia não possa entrar. Apesar das dificuldades e até da degradação sofrida pelas políticas de Segurança Pública no Estado, não existe nenhum território onde a polícia não entre de maneira ostensiva ou reservada, seja a Brigada Militar ou a Polícia Civil. Ou seja, o nosso caso não é de ocupação militar prévia, mas sim de presença da polícia, de presença ostensiva do Estado, com a elaboração e introdução de programas voltados aos jovens para retirá-los do caminho das ofertas de “boa vida” dos traficantes, e de alocar quadros altamente preparados para o policiamento comunitário.
Além do que está sendo feito no bairro Guajuviras, temos outros exemplos positivos aqui no Rio Grande do Sul, que foram implementados nos últimos três anos. Um deles é o sistema de vídeo-monitoramento no Litoral Norte, que está começando; outro é o trabalho que vem sendo realizado na área de Segurança Pública pelo prefeito de São Leopoldo, Ari Vanazzi. Neste último caso, com muita dificuldade, aliás, pois a Brigada Militar, não sei por ordem de quem, se recusava a participar do Gabinete Integrado de Segurança Pública. Isso não vai ocorrer no meu governo. A Brigada Militar e a Polícia Civil vão participar de todos os aparatos necessários à implementação do Pronasci. Vamos definir quais são os territórios prioritários – que, na minha opinião, estão situados na Região Metropolitana -, estimular e consolidar os programas que estão começando ou em transição em diversas prefeituras e também estender o conceito de território para a área turística, como pretendemos fazer na Metade Sul do Estado, aqui na costa doce.
Tudo isso tem que ser compreendido dentro de um processo onde as autoridades devem ir, gradativamente, ocupando os espaços institucionais e políticos. O que não teremos certamente no Rio Grande do Sul é um quadro militar falando sobre Segurança Pública. Agora, vamos estabelecer uma política de cooperação, seja com o Exército ou com outras forças, sempre que isso for necessário. Tenho certeza de que termos um correto regime de colaboração.
Em que sentido as Forças Armadas podem colaborar, então, nas políticas de segurança pública?
Quando nós falamos no papel das Forças Armadas na segurança pública não estamos falando, na verdade, no caso específico do Rio de Janeiro, cuja presença de tropas, neste momento, era necessária. O que estamos falando diz respeito ao futuro do sistema de segurança pública no país e de um novo modelo de segurança pública. No Rio de Janeiro, a chamada força de pacificação está sob o comando de um general experimentado de alto nível, que já participou de missões de paz, inclusive no Haiti, o general Fernando Sardenberg. Qual o problema que se visualiza daqui para diante? As Forças Armadas terão condição de intervir em todos os lugares do país onde a situação da segurança pública é precária? As Forças Armadas passarão a ser, a partir de agora, uma espécie de apêndice do sistema policial? É claro que não.
Então, me parece que, no Rio de Janeiro, está se jogando não apenas o futuro da Segurança Pública naquele Estado, mas sim em todo o país. Ou seja, não podemos alimentar a ideia de que as Forças Armadas são instituições que têm como papel prover segurança pública à população. As Forças Armadas têm uma missão muito mais complexa e profunda do que essa. Aliás, é o que diz a nossa Constituição Federal.