Caetano e o sonho da revolução para o reino do Espírito Santo
Há ao menos um algo intrigante em recente entrevista de Caetano Veloso ao historiador Jones Manoel para a revista CartaCapital. “(…) quando eu penso em revolução, é algo muito maior, é passar do reino do filho para o reino do Espírito Santo, é uma mudança mais abrangente”, afirmou o artista.
Ateu, admirador recém-convertido ao pensador marxista Domenico Losurdo, ao qual foi apresentado, indiretamente, pelo próprio Jones Manoel a quem concedeu a entrevista, o que teria querido dizer Caetano com uma metáfora assim cristã, ou, como ele mesmo afirmou, com “um jargão religioso”? Não posso nem quero adivinhar, não é esse o propósito. Não me pareceu iconoclastia, bem ao estilo que sempre aguardamos do artista, no entanto.
O fato de Caetano ter recorrido a tal metáfora permite, acredito, a tentativa de compreender alguns sentidos que ele quis despertar a partir do universo que ele mesmo evocou. Sem iconoclastia, tampouco rigor teológico. E sim como parábola.
A passagem do reino do filho – Jesus, está evidente – para o do Espírito Santo, tal como descrita por Paulo em Gálatas, abre-nos um caminho. Nos sete primeiros versos do capítulo quatro, o autor dessa carta argumenta que a predominância do Espírito Santo completa a libertação da pessoa de sua condição de criança sujeita a tutores e a regras rígidas surgidas antes dela mesma. “Enquanto é menor, há pessoas que tomam conta dele e cuidam de seus negócios até o tempo marcado pelo pai”, afirma um trecho. Pela Bíblia, somos informados de que após a vinda do filho, aqueles que o buscarem experimentarão a transformação completa com o envio do Espírito Santo, sendo então alçados à condição de adultos. Paulo, aqui, fala da maturidade espiritual.
Crianças, sabemos, são rebeldes e contestadoras e, contraditoriamente, aguardam de seus tutores a resolução de seus problemas e necessidades mais imediatos. Ainda que estejamos aqui tratando de uma metáfora, é impossível não lançar um olhar à realidade, especialmente para a realidade brasileira, e lamentar profundamente o fato de que nem todas as crianças contam com tutores e sim, muitas vezes, com algozes. Continuemos, porém, no plano da metáfora, que é, de qualquer forma, o plano do ideal.
Crianças almejam por um pai, por uma mãe. Na sociedade profundamente patriarcal em que ainda vivemos, o pai ocupa este lugar simbólico de autoridade e provedor. A onipresença do pai é reforçada pelos termos religiosos predominantes por aqui. Freud discorreu sobre isso, sobre a necessidade do pai, em “Mal Estar na Civilização”. Naquele ensaio, o pensador alemão liga essa nostalgia do pai à necessidade da fé religiosa, como que a demonstrar a ilusão que lhe sustenta. Do pai, nos termos freudianos, é aguardada a solução dos problemas, impasses, angústias, dos mais imediatos aos mais recônditos.
Voltemos a caetanear. O pai enviou o filho, e a transformação, ou a revolução, completa-se com o reino do Espírito Santo, almejado pelo artista. Nos termos de Paulo, deixa-se de ser criança – como o apóstolo já havia proclamado em Coríntios. Ganha-se uma série de responsabilidades e uma certa tendência ao enfado, preços da maturidade, mas em contrapartida vem a dose possível de autonomia, que cada qual vai explorar de melhor maneira que puder, com as condições objetivas que tiver.
O que isso pode significar quando se alude a um país, a uma nação, como fez Caetano Veloso? Uma sociedade adulta não abrirá simplesmente o berreiro a cada quatro anos, não buscará na trapaça sobre o outro um método de sobrevivência nem ficará dormitando outros tantos anos enquanto as provisões estiverem chegando, não importa como nem de onde; afinal, o pai estaria lá para isso mesmo, é melhor e mais cômodo não pensar tais questões.
No Brasil, esta característica tem sido acentuada por séculos de autoritarismo, sutil ou explícito. Após trezentos anos de escravatura, logo após o ato oficial de abolição, os legisladores de então preconizavam a figura do patrão como aquele tutor a quem caberia “guiar e aconselhar”, cabendo nessa missão “castigos moderados como aqueles que infligem os pais aos filhos”, conforme propôs o deputado Rodrigues Peixoto e nos informa a pesquisa de Sidney Chalhoub em “Trabalho, Lar e Botequim”. A mística paterna e a ideia de uma ética do trabalho que exija submissão e confiança sólidas depositadas nas lideranças ou chefias é uma construção cultural que até hoje nos acorrenta a esse imaginário infantilizado.
O pai assemelha-se à mercadoria deus. Não se trata do deus mercadoria, mas seu inverso. A figura divina submetida a uma categoria mais geral, a categoria do mercado, que o coloca em prateleiras subdivididas por utilidades e conveniências. O deus mercadoria cria a mercadoria deus.
Não posso deixar de lembrar as entrevistas dos jogadores campeões da Libertadores, todos a evocar Deus como aquele que lhes deu a vitória. Como se Ele não estivesse com os derrotados – alterno letras maiúsculas e minúsculas, em parte, por minha formação cristã, em parte pelo contexto político desta análise. Um dos jogadores, inclusive, agradecia a Deus enquanto se regozijava da vingança contra um desafeto que havia apostado na derrota do time. Antes que sugiram que estou de má vontade com o time, parabéns ao Palmeiras. O que importa aqui é o acontecimento de vulto como referência.
O pai assemelha-se igualmente à figura do líder político. Caberiam neste ponto, apropriadamente, críticas feministas à estrutura mental da sociedade e também ao tratamento abominável reservado à mulher Dilma Rousseff, entre outras, líderes ou não. O fato é que se reserva ao “pai da nação”, ao líder político, a tarefa e a liberdade de solucionar as questões, e ora ou outra distribuir safanões – ninguém é de ferro – enquanto permanecemos em nosso eterno estado infantil. Autonomia e liberdade exigem mais que isso. A sociedade precisa tomar para si a tarefa de compreender o quadro complexo e assumir a participação política de fato. Importante também é saber se apropriar das mudanças positivas realmente consistentes e defendê-las como suas. O Brasil do leite condensado, da bala e do chiclete precisa crescer.
(A opinião contida no texto é de seu autor e não representa necessariamente o posicionamento da Fundação Perseu Abramo)
A entrevista de Caetano a Jones Manoel pode ser lida aqui.