“Por que o preço da comida sobe e o auxílio de R$ 600 cai?” A resposta a esta pergunta, proposta do programa do Observatório da Coronacrise exibido na noite da última sexta-feira, dia 18 de setembro, pode ser assim resumida, em alguns pontos que se complementam:

– o governo Bolsonaro destruiu os mecanismos de estoques reguladores de alimentos. A Conab (Companhia Nacional de Abastecimento) tem, por exemplo, estoques de arroz equivalentes ao consumo de apenas um dia da população brasileira. Na verdade, o governo atual repete o que já vinha sendo feito desde o período Temer. A última vez que a União comprou arroz para formação de estoques reguladores foi no governo Dilma, em 2015;

– o governo desmontou instrumentos públicos como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos), o PNAE (Programa Nacional de Alimentação Escolar) e o Pronaf (Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar) que, somados, contribuíam para incentivar a produção de comida fora do monopólio das grandes corporações;

– essas escolhas do governo retiram do Estado o poder regulador do circuito de oferta e procura e deixam o fornecimento de alimentos inteiramente na mão dos grandes produtores e especuladores, que estão retendo os estoques para obter maior preço e mais lucro;

– o arroz é um símbolo da alta de preços dos alimentos, mas não é o único “vilão”. Feijão e óleo de cozinha, por exemplo, também subiram. Mas, tomando o arroz como exemplo da ação dos especuladores, vale ressaltar que as exportações deste produto cresceram 40% no último semestre, demonstrando que os grandes produtores preferiram vender para fora do país em busca de melhores preços;

– atualmente, dez empresas privadas são responsáveis por toda a comercialização de arroz no Brasil. A concentração evidencia a ação especulativa e aponta sua autoria;

– os grandes produtores detêm hoje 4,2 milhões de toneladas de arroz em estoque, suficientes para abastecer por mais de cinco meses o mercado interno. Esses estoques estão sendo “escondidos” para forçar a subida dos preços, não importando se vão fazer falta na mesa da população;

– as grandes corporações dedicam a maior parte das terras de plantio, 60%, para a produção de commodities, ou seja, cereais como a soja, destinada à criação de gado, e outras, que não se destinam prioritariamente à alimentação das pessoas;

– nos últimos 20 anos, houve queda de 40% na área destinada a plantio de arroz;

– enquanto isso, o auxílio-emergencial não apenas perde valor por ter sido reduzido a R$ 300, mas porque seu poder de compra já vinha sendo corroído pela alta de preços dos alimentos, causada pela escolha do governo de deixar a formação de preços na mão unicamente do mercado. Em setembro, o poder efetivo de compra do auxílio já era de apenas R$ 415.

Portanto, a “explicação” dada pelo presidente (“a lei da oferta e da procura”) tenta esconder a omissão do governo e sua decisão de deixar os mais pobres à própria sorte.

Essa é uma síntese do debate que contou com a participação da dirigente do MST Ceres Hadich, mestre em Agroecologia e Agricultura Sustentável e moradora de assentamento, do economista Gerson Gomes, com passagens pela Cepal (Comissão Econômica para América Latina e Caribe) e pela FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura), e da ex-ministra do Desenvolvimento Social e Combate à Fome, a economista e doutora em Saúde Pública Tereza Campello. O debate foi mediado por Ellen Coutinho, dirigente da Fundação Perseu Abramo.

“A crise alimentar faz parte da crise estrutural do modo de produção capitalista”, comentou Ceres. “Estamos enfrentando uma crise inflacionária nos alimentos”, disse ela, destacando que isso é especialmente grave se considerado que a economia está em queda e a renda dos trabalhadores também.

“Isto é um caso de especulação. Não são os agricultores os responsáveis, porque esses alimentos já foram plantados e colhidos”, argumenta. Para arrematar: “Dez grandes cerealistas controlam toda a distribuição de arroz no Brasil. Estão se aproveitando da crise para agregar mais lucro nestas transações”.

Créditos: Elemar Bilha e Cardoso/MST

Colheita de arroz em assentamento do MST no Piauí

 

Para Gerson, é falsa a explicação de que a alta dos preços tem ligação com o auxílio-emergencial, que teria feito a população consumir mais alimentos. O aumento já vinha se desenhando desde antes e, principalmente, o que ocorre é queda no consumo dos alimentos por parte da população, fato evidenciado pela volta da fome ao cotidiano nacional, como noticiado durante a semana.

“Em 2017 e 2018, o IBGE mostra que 80 milhões de brasileiros tiveram algum problema de alimentação. E nada indica que de lá pra cá houve melhora, ao contrário”, afirmou o economista.

“O problema do desmonte dos mecanismos públicos de regulação, que tem a ver com uma visão ideológica de que o mercado é autorregulável, explica esta crise”. Em sua opinião, a ideia de que o mercado por si só trará equilíbrio “é uma coisa superada, atrasada. Claro que o mercado resolve: eles reequilibram a demanda impondo racionamento por intermédio do aumento dos preços. Este país não tem uma política de segurança alimentar”, concluiu.

Tereza Campello destacou algumas manifestações públicas do atual governo para ilustrar os argumentos apresentados por Ceres e Gerson. “Nesta semana um dos técnicos do Ministério da Fazenda disse que esse problema é sazonal, ou seja, quando o povo não puder comer, o preço vai cair. ‘Como nós cortamos o auxílio emergencial, o povo vai parar de comer’. Eu acho isso de uma gravidade, e um técnico falar isso impunemente… Ele deveria estar preocupado com o interesse público”, criticou.

Na lista de gestos oficiais que ela classifica como “escândalo”, Tereza lembrou da sugestão da ministra da Agricultura de que o povo passe a comer macarrão e batatas. “Isso também impacta culturalmente o povo, porque temos um símbolo que é o arroz e o feijão. Só faltava dizer ‘por que não vão comer como os norte-americanos?’ Isso é um acinte”.

A ex-ministra também ressaltou a revelação, durante a semana, de que o governo pretendia retirar de circulação o Guia Alimentar da População Brasileira, tal como elaborado pelo governo Dilma. “O ministério vinha tramando como destruir o guia, que orienta as pessoas a não comer produtos ultraprocessados. Atendendo o lobby da indústria, o governo tenta desconstruir esse guia, mas isso vira um escândalo e houve mobilização para impedir essa tragédia”.

Por fim, Tereza Campello lembra que desde 2016 vêm sendo desmontados os pilares que fizeram o Brasil sair do mapa da fome em 2013. Segundo ela, a própria FAO destacou esses pilares quando premiou o Brasil:

– os governos Lula-Dilma assumiram a fome como uma questão estratégica a ser enfrentada, assumindo liderança política. “Dizer que não tem fome no Brasil, como fez o atual presidente, não resolve o problema”;

– promover o acesso aos alimentos. “Não há falta de comida, o povo passa fome porque não tem acesso. Para enfrentar isso, promovemos o aumento do emprego, valorização do salário mínimo, Bolsa Família e merenda escolar – antes as crianças só comiam biscoito com suco”;

– fortalecimento da agricultura familiar. “Abrir cisternas, fazer o Pronaf, prover assistência técnica”;

– Consea (Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional). “Transparência e participação popular. Uma das primeiras medidas do governo Bolsonaro foi extinguir o conselho”.

“Os quatro pilares foram destruídos pelo atual governo”, afirmou. E, resumindo a política do atual governo em relação ao tema: “É o cúmulo do absurdo e do descompromisso”.

Para assistir o debate, promovido pelo Observatório da Coronacrise, clique aqui.

`