O pão, a farinha, o feijão, carne seca, quem é que carrega?
Andava hoje pela terra seca que virou a seção de CDs da Fnac da av. Paulista, e fiquei pensando: é irônico, mas o tempo presente tem sido generoso com aquilo que antigamente chamávamos (e ainda chamamos) jabaculê.
Andava hoje pela terra seca que virou a seção de CDs da Fnac da av. Paulista, e fiquei pensando: é irônico, mas o tempo presente tem sido generoso com aquilo que antigamente chamávamos (e ainda chamamos) jabaculê.
Como me disse em entrevista outro dia o cearense Emanuel Gurgel, inventor da banda-e-marca forrozeira Mastruz com Leite, CD não é mais comércio. É cartão de apresentação. Serve para divulgar o produto (como Emanuel gosta de chamar as músicas dos artistas, e talvez os próprios artistas). Mas não é mais o produto em si.
E de repente me pareceu que, se ele está certo (e está, não está?), aquelas poucas caixetas de plástico com música dentro nas prateleiras não são hoje menos nobres do que eram, e sim o contrário.
Quando a indústria fonográfica era um império, eu recebia pilhas dessas caixetas toda semana, de graça – quem ia à Fnac comprar seus próprios CDs pagava por eles e por parte dos meus também. VEJA bem, era para que eu, talvez, as avaliasse (as músicas?, ou as caixetas?), mas, ora, esse escambo se chamava jabá.
Continuo recebendo pilhas (um pouco menores) de CDs toda semana, e acredito que isso continua se chamando jabá. Mas é tudo bastante diferente agora. Não se trata mais de algo de valor simbólico acondicionado dentro de algo com determinado valor material, negociado entre gravadoras (& seus empregados) e veículos de comunicação (& seus empregados). Trata-se de um cartão de visitas. Uma apresentação emitida por alguém que gostaria que eu conhecesse o seu trabalho – e desse notícia dele aos meus (quais?) leitores.
A caixeta hoje é muito valor simbólico, e pouquíssimo valor material. Ainda custa caro para quem a faz – ainda é um jabá, mas é um jabá mais Frankenstein, mais desengonçado, menos vagabundo e robótico do que já foi. Ainda somos cínicos, mas hoje nos alimentamos mais de símbolos que de consumismo compulsivo. Não me admira que Fausto Silva esteja tão mais magro ultimamente.
Mas, ah, voltando à música, essa que parece tão escassa nas Fnacs de hoje: quando ela não vem em caixetas, mas sim em MP3, links de internet etc., ela é 100% valor simbólico (ok, estou ingenuamente desconsiderando a grana que todos pagamos à informática e às telecomunicações – quais são os jabás desses novos sertões?).
De vez em quando, quando tudo fica tão simbólico, chego a achar que estamos no tempo em que ainda não éramos nascidos.
*Pedro Alexandre Sanches é jornalista, autor dos livros "Tropicalismo – Decadência Bonita do Samba" e "Como Dois e Dois São Cinco".
Leia mais
– Artigo: Música solidária, por Daniel Benevides (publicado em Teoria e Debate nº 76, março/abril 2008)
– Entrevista: A MPB, por um de seus codificadores – Entrevista com Almir Chediak, por Ozeas Duarte e Paulo Baía (publicado em Teoria e Debate nº 33, novembro/dezembro/janeiro de 1997)
– Artigo: O funk e a juventude pobre carioca, por Bia Abramo (publicado em Teoria e Debate nº 48, junho/julho/agosto de 2001)
– Livro: Ao Som do Samba – Uma leitura do Carnaval carioca, de Walnice Nogueira Galvão (publicado pela Editora Fundação Perseu Abramo)
– Livro: A Síncope das Idéias – A questão da tradição na música popular brasileira, de Marcos Napolitano (publicado pela Editora Fundação Perseu Abramo)