Um presidente insustentável?
Objetivamente, o presidente de Portugal recomenda às agências de avaliação de risco que obriguem os portugueses a confiarem no mercado financeiro e a confiarem tanto mais quanto menos o mercado confiar neles. Artigo de Boaventura de Sousa Santos para a Agência Carta Maior.
As declarações do Presidente de Portugal sobre a situação do país, que declarou insustentável, são difíceis de aceitar e causariam repulsa pública se os portugueses ainda dessem muita atenção aos dirigentes políticos e se os meios de comunicação não estivessem dominados por comentadores conservadores. O ritmo pausado contribui para conferir solenidade e finalidade à verdade do discurso, fazendo-a passar por discurso da verdade, uma verdade parida pela sabedoria oracular e registada na página da internet da presidência da República.
Os portugueses sabem por experiência que vivem momentos difíceis e que essas dificuldades são o resultado de uma acumulação de fatores nacionais, europeus e globais. No que respeita aos fatores nacionais, a acumulação vem de longe. Tudo começou quando os fundos estruturais e de coesão, depois de contribuírem para a necessária infra-estruturação física do país, ficaram reféns dos lóbis do betão (concreto) e se descurou o investimento na educação, na formação, na criação de um sistema nacional de ciência, na diminuição das desigualdades sociais de modo a que os ganhos de produtividade se transformassem em bem-estar dos portugueses.
Ora, os governos de Cavaco Silva contribuíram para este desvio fatídico. A formação profissional foi entregue à corrupção generalizada; iniciou-se o desinvestimento nas universidades públicas, sujeitando-as à pilhagem dos seus recursos para alimentar os aviários universitários que então proliferaram; em termos de desigualdade social, o país era mais injusto em 1995 que em 1990 (e mais que em 1980). O que é hoje “insustentável” começou a sê-lo há muito, e nesse processo Cavaco Silva foi mais parte do problema do que da solução.
Quanto aos fatores europeus, os portugueses sabem que a Europa está num momento de bifurcação: ou se desagrega ou se transforma numa Europa federal ou confederada, com partilha democrática de custos e benefícios, de políticas e aspirações. A segunda opção é a única desejável e só se realiza quando os cidadãos europeus a assumirem como sua e disserem “Basta!” à transformação da crise real em pretexto mal disfarçado para destruir todos os direitos sociais por que lutaram, com tanto sangue vertido, ao longo de todo o século XX. Quanto aos fatores globais, os portugueses começam a saber que a União Europeia se deixou minar pelo capitalismo financeiro global. O FMI é uma instituição nefasta que os EUA não deixaram intervir no país durante a crise mas que a UE acolhe como um imenso cavalo de Tróia em cujo bojo se escondem os bancos alemães e franceses à espera que lhes sejam pagos empréstimos feitos a juros confiscatórios.
Com objetivos convergentes, foi permitido às agências de análise de risco converter os orçamentos nacionais em campos de apostas para o cassino financeiro. Tais agências são peritas em utilizar as afirmações irresponsáveis dos responsáveis políticos “locais” para transformar em realidade as especulações em que assentam as suas previsões.
Objetivamente, o presidente da República recomenda às agências que obriguem os portugueses a confiarem no mercado financeiro e a confiarem tanto mais quanto menos o mercado confiar neles. Isto, sim, é insustentável!
Por que razão tudo isto, sendo claro, escapa ao presidente da República? Porque está em campanha eleitoral, tendo deixado de fazer política de Estado para passar a fazer política partidária, e querendo testar a sensibilidade da mídia para o apoiarem e ao seu relutante partido. Os resultados mostram que tem razões para se sentir confiante. Tragicamente, a sua confiança é construída à custa da destruição imprudente e injusta da confiança dos portugueses no país e no mundo em que vivem, o que é particularmente grave num período de crise. Mas a cegueira eleitoral é assim mesmo, tanto mais seletiva quando menos o devia ser.
Ao presidente da República escapa que os portugueses podem começar a pensar que ele quer acima de tudo ser reeleito, pouco lhe importando se é reeleito presidente de um país ou presidente de uma ruína de país.