Márcio Pochmann fala da relação entre economia e política no pleito de 2010. Os temas em debate na campanha deste ano revelarão as opções políticas e ideológicas de cada candidatura. Diferente, portanto, de eleições anteriores, em que temas conjunturais ganhavam relevância. É o que opina o economista Marcio Pochmann, presidente do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). Ele fala ao Sul 21 também sobre a situação econômica do Rio Grande do Sul revelada nas últimas pesquisas do Ipea e aponta algumas saídas para o Estado. Participaram da entrevista Rachel Duarte e Marco Aurélio Weissheimer.

 

Qual a perspectiva para a economia, neste ano de eleições?

 Penso que 2010 será um ano singular na realidade econômica e social do Brasil. Antes, o debate era em torno da alta da inflação, a queda nos índices da economia, enfim, uma série de temas conjunturais que pautavam o debate político nas eleições. Diferente de outros períodos, agora a agenda de discussões será em torno de um programa de longo prazo, e não será meramente técnica. Vai depender dos candidatos e das opções políticas e ideológicas dos partidos e não apenas de consultorias contratadas para isso. Os partidos terão que mostrar quais são os seus projetos para o futuro do país.

 Isso já está aparecendo nesta pré-campanha? 

Não é possível saber ainda qual será a linha de cada um. Não tem nada claro. As diferenças estão nas entrelinhas e pouco ainda sobre as ideias do plano de governo que cada um pretende. Mas, é evidente, por exemplo, que a pré-candidata do PT, Dilma Rousseff (PT) defende a continuidade do governo atual. E, se formos comparar, em 2002 o pré-candidato José Serra (PSDB) não utilizava o mesmo discurso. Ele inclusive falava que seria um “continuísmo sem continuidade”. Os argumentos dele hoje, no que se refere ao debate na economia, são declarações vazias e apenas críticas ao modelo atual. Embora ele respeite e elogie o presidente Lula e diga que fará “mais do mesmo”, é o que diz o slogan: O Brasil pode mais.

Pode-se afirmar, como fazem alguns ‘especialistas’, que o sucesso do governo Lula com a política econômica se deve às ações do governo FHC?

 Não há como comparar as medidas do governo de Lula, diante da crise de 2008-2009, com o governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1997-1998. Naquela época, a crise foi muito menor e houve elevação dos juros, aumento da carga tributária, as alíquotas de sete impostos foram remarcadas para cima, além da cobrança de um novo tributo e corte nos gastos públicos. A crise financeira mundial de 2008- 2009 foi mais severa que a dos anos 90. Em vez de aumentar impostos, o governo desonerou setores industriais, baixou o IPI dos carros, a carga tributária caiu, nós não reduzimos os investimentos públicos, pelo contrário, e o salário mínimo teve um ganho real de 6,4%.

É possível identificar que existiram dois governos Lula? O primeiro até 2005 e um segundo, depois desse período?

Há continuidade nos dois governos, principalmente no que se refere às políticas sociais. A continuidade vem desde a recuperação do papel do Estado e a consolidação dos direitos sociais, dando efetividade a Constituição de 88, até a ampliação dos gastos sociais, que aconteceram desde 2003. Porém, há descontinuidade em relação a outros temas, como na política fiscal de um governo para o outro. A partir do segundo governo passou-se a trabalhar com metas para geração de emprego formal, crescimento acelerado acima de 5%, com Plano de Aceleração do Crescimento, o Plano de Desenvolvimento da Educação, investimento em tecnologia, e um papel mais protagonista no financiamento dos investimentos produtivos através dos bancos públicos. No segundo governo, também aconteceu uma reestruturação no Ipea para aumentar a eficiência e evitar sobreposição de ações. Investimos na formação dos pesquisadores e no trabalho do Instituto de forma articulada. Outra ação diz respeito às redes que nós constituímos com diferentes instituições, para buscar a complementação, a cooperação no âmbito de pesquisa e investigação. E, todos esses fatores contribuem para a descentralização do país como Estado gastador, inchado, com excesso de funcionários.

Dizia-se que os direitos trabalhistas eram empecilho para o crescimento do trabalho formal e que o salário mínimo não seria um instrumento para impulsão de crescimento. O que os estudos do IPEA revelam sobre isso?

Há 10 anos, quando se falava em aumentar o salário mínimo, diziam que teríamos uma inflação mais alta, a quebra das microempresas e um déficit previdenciário. Mas depois da ousadia do governo Lula, que encontrou uma forma de reajustar o mínimo, justamente em um período recessivo, com políticas de transferência de rendas, percebeu-se que o salário mínimo não impacta na inflação. Tivemos melhorias no mercado de trabalho brasileiro, programas sociais, redução das desigualdades, incremento e ampliação no salário mínimo. O crédito melhorou e há recuperação do volume de gastos sociais. Todos esses fatores permitiram que o país voltasse a ter mobilidade social ascendente em grande escala, o que não ocorreu durante a década de 90.

A reforma agrária, em sua visão, está tendo a atenção devida?

 A pequena propriedade tem participação importante na economia do país, mas acredito que a relevância da reforma agrária está em dois fatores diferentes e pouco discutidos. Primeiro: a reforma agrária hoje é uma questão de soberania nacional, em razão da disputa por fontes de água doce e pela própria soberania territorial para a produção alimentar. Países como a China estão hoje comprando grandes áreas de terra para sua produção, assim como grandes corporações internacionais. A África hoje é um exemplo disso. Muitos países praticamente já não possuem acesso às suas fontes de água e às suas terras produtivas. O segundo tema é a sustentabilidade ambiental. O monopólio na produção agrícola serve de vetor da degradação. O Estado tem muito mais condições de regular a degradação ambiental em relação ao pequeno e médio produtor rural. No entanto, para discutirmos a reforma agrária precisamos mudar a forma de ação do Estado para atuações integradas. O assentamento não é um tema da agricultura de maneira isolada, ele requer uma ação matricial do Estado. É necessário investir em educação, tecnologia, saúde, linhas de crédito, capacitação, enfim, ações setoriais, mas articuladas.

Qual foi o dado mais significativo resultante da Pnad (Pesquisa Nacional pela Amostra de Domicílios)?

A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – Pnad 2008 é a melhor pesquisa que temos hoje sobre a realidade social do Brasil. A pesquisa comprova a volta da mobilidade social no país. A partir da década de 30, a mobilidade social foi um dos charmes da industrialização brasileira, comparado ao que a China tem hoje. Na década de 80 e 90 tivemos uma escassez de mobilidade social. Durante os anos noventa chegou-se a dizer que era a época que vivíamos no “Brasil de 2/5”, isto é, apenas 2/5 da população teriam efetivo acesso aos direitos sociais e ao emprego formal. Foi naturalizada a ideia de que a estrutura econômica brasileira era uma pirâmide de base larga e ponta estreita. A Pnad demonstra que desde 2003 temos a volta da mobilidade social, e a estrutura social do país já se aproxima do desenho de um barril, com o crescimento de todas as camadas da população e as classes médias maiores.

O Rio Grande do Sul vem caindo no PIB (Produto Interno Bruto) brasileiro. Qual a sua avaliação da estrutura produtiva e social do estado gaúcho no início de século? O RS está preparado para os desafios do século 21?

O estado gaúcho enfrenta dificuldades em se recompor frente ao restante do país. No Rio Grande do Sul ainda  se mantém uma desigualdade singular. A Metade Sul vive como se estivesse no século XIX. A Região Norte, fortemente marcada pela agropecuária, tem o perfil do século XX. E, a Região Nordeste apresenta setores mais dinâmicos, alguns deles apontando para o que estamos vendo nascer no século XXI. Para o Rio Grande do Sul enfrentar os desafios do século 21, ele precisa recuperar perante as outras regiões o seu papel na produção de grãos e na indústria, que está hoje muito defasado. Uma alternativa para o RS, e também para o Brasil, é desenvolver mais instituições financeiras e bancos voltados para o financiamento à agricultura familiar, e bancos comunitários. É inadmissível um país do tamanho do nosso ter menos de 160 bancos,

Depois da crise de 2008-2009, já é possível identificar avanço na governança mundial?

Ainda vivemos o mesmo modelo de desgovernança mundial anterior à crise. Temos um descompasso entre o poder das corporações internacionais e os poderes públicos. Depois de alguns séculos de superação do poder das corporações sobre as sociedades, voltamos a viver em um mundo dominado por elas. Hoje, 500 corporações detêm 50% do PIB mundial e colocam em xeque a democracia. Não podemos mais dizer que os países têm empresas, mas são empresas que têm países. Se alguma dessas grandes corporações quebra, ela arrasta consigo os países, como foi o caso do Lehman Brothers. O modelo de governança mundial construído ao longo da segunda metade do século 20, com instituições como a ONU, Banco Mundial e o FMI vive uma profunda crise de legitimidade e capacidade de regulação dos mercados. Outro elemento propulsor da crise e que demonstra essa desgovernança mundial é o padrão de produção e consumo que agride o meio ambiente e que é regido pelos interesses privados das corporações. Por isso, pensar em sustentabilidade em longo prazo é tão difícil. Precisamos pensar um novo modelo de governança mundial pública para superar esses elementos.

Na sua avaliação, os desdobramentos da crise na Europa podem afetar a economia brasileira em 2010?

Estamos falando de um capitalismo globalizado aqui. Países tão importantes para o crescimento industrial, como os da Europa, têm impacto em todos os lugares do mundo sim. Mas não diretamente no Brasil. Nós temos apostamos no mercado interno e nos investimentos em exportação, o que é uma alternativa diante da crise européia.

Recentemente a revista britânica The Economist publicou artigo sobre o nível de crescimento da economia brasileira. Para a publicação, o ritmo do Brasil pode ser comparado com o da China, o que seria um problema, pois “o Brasil não é a China”. O que você pensa sobre isso?

Na minha opinião, a revista The Economist não tem condição de fazer esta análise. Esta opinião é muito mais de fundo ideológico do que técnico. Não é uma visão realista. O Brasil pode tranquilamente ser considerado a China da década de 50, pois somos o país que mais cresceu no mundo nos últimos tempos. O crescimento tende a ser de 7 a 8% ao ano. Para que se sustente isso, é preciso política econômica, fiscal, e isso tudo foi construído no governo atual.

O movimento de união dos Bancos Centrais para salvar o mercado financeiro foi mais uma demonstração de força da hegemonia neoliberal?

Foi uma ação muito importante dos Estados, que demonstraram capacidade de atuar sob o padrão monetário global. Em razão desse movimento, foi possível evitar que, após a recessão, entrássemos em um momento de depressão. Foi importante perceber que as economias dos países são totalmente interdependentes. É curioso perceber, por exemplo, que os EUA são cada vez mais dependentes das decisões do Comitê Central do Partido Comunista Chinês. Porém, percebe-se o início de uma tentativa de retorno do discurso neoliberal, defendendo que o Estado já pode se afastar da economia. É preciso desconstruir essa noção do neoliberalismo que trata o Estado como um hospital ou uma ambulância, que resgatam mortos e feridos no campo de batalha, e, mostrar que o Estado deve ser um indutor permanente de um crescimento equilibrado e sustentável. 

*Marcio Pochmann é formado em Economia pela UFRGS com especialização em Ciências Políticas e Relações do Trabalho. É mestre e doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde leciona desde 1995. Foi consultor do DIEESE (Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos), do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e organismos multilaterais das Nações Unidas, como a Organização Internacional do Trabalho (OIT).