Este texto é o Prefácio ao livro Bolsa Família: Avanços, limites, possibilidades do programa que está transformando a vida de milhões de famílias no Brasil, de Marco Aurélio Weissheimer, publicado pela Editora Fundação Perseu Abramo em maio/2010.

 

Deixa-me imensamente feliz escrever este prefácio. O primeiro volume desta publicação foi e tem sido, uma referência para as pessoas que discutem, vivem e querem, cada vez mais, consolidar uma grande rede de proteção e promoção social no Brasil, por meio de políticas públicas direcionadas para os mais pobres em uma perspectiva emancipatória.

O presente livro, Bolsa Família: Avanços, limites, possibilidades do programa que está transformando a vida de milhões de famílias no Brasil, é uma reflexão séria e consistente sobre o programa que atinge, hoje, mais de 12 milhões de famílias pobres em todos os municípios do Brasil. O impacto mais imediato do Programa Bolsa Família sobre os cidadãos brasileiros beneficiados é possibilitar a conquista do primeiro degrau dos direitos fundamentais: o direito à alimentação adequada ou, em palavras mais firmes e brasileiras, o direito à comida. Sem ele, não há como construir o direito à vida, à dignidade humana, o acesso aos direitos e deveres da nacionalidade e da cidadania.

O direito à comida significa ter certeza de que poderá se alimentar bem todos os dias. Significa saber que pode comer hoje e que, nos dias seguintes, também vai ter condições de ter acesso a um alimento bom, de qualidade, em quantidade suficiente para uma sobrevivência digna e com saúde. No antológico Morte e vida severina, de João Cabral de Melo Neto, Severino, o retirante, já no auge da desesperança, pergunta: “Seu José, mestre carpina,/ e que interesse, me diga,/ há nessa vida a retalho/ que é cada dia adquirida?”. Combater a incerteza dessa “vida a retalho” é o mesmo que defender a vida, é criar condições para que ela surja e se desenvolva em sua plenitude. Sem a garantia do básico do dia a dia é fácil perder a esperança e o sentido de batalhar cada dia, pelo direito de viver e crescer.

A sabedoria popular nos ensina que “de barriga vazia ninguém pensa”. Acredito que essa situação é ainda mais grave e que de barriga vazia ninguém vive; nem uma nação. Não consigo conceber um país com justiça e igualdade sem que absolutamente todos tenham acesso a pelo menos, três refeições diárias. Mas, além de combater a fome de comida, assegurando o direito à alimentação na perspectiva mais ampla da segurança alimentar e nutricional, o Bolsa Família também auxilia a conter a fome de direitos.

O Bolsa Família não é um programa isolado, pois está inserido em um contexto mais amplo de ações, programas e políticas que formam uma rede nacional de proteção e promoção social. Ele está ancorado nas políticas públicas e de Assistência Social, que incluem, por exemplo, iniciativas como o Programa de Atenção Integral às Famílias (PAIF), materializado nos Centros de Referência da Assistência Social (CRAS). Nesses centros, psicólogos, assistentes sociais, educadores, entre outros profissionais, atuam com foco nas comunidades mais pobres e vulneráveis, exatamente onde se encontram os beneficiários do Bolsa Família. Hoje os CRAS somam 3.821 unidades cofinanciadas pelo governo federal em todo o Brasil.

Esses equipamentos, além de acolherem as famílias pobres, são também espaços emancipatórios que desenvolvem cursos de capacitação profissional, alfabetização de jovens e adultos, programas de inclusão produtiva, geração de trabalho, emprego e renda. Eles interagem diretamente com o Bolsa Família porque são a referência das famílias pobres beneficiárias dos programas. O Programa Nacional de Inclusão de Jovens – Modalidade Adolescente (ProJovem Adolescente) é decorrência dessa mudança. Esses jovens, de 15 a 17 anos, são acompanhados no contraturno da jornada escolar por meio de programas socioeducativos, atividades esportivas, culturais, reforço escolar, leitura, atividades ambientais e comunitárias.

 O Bolsa Família interage também com o Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Sisan), que vem se consolidando a partir da promulgação, em 2006, da Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional (Losan). Temos programas de apoio à agricultura familiar, como o Programa da Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar (PAA), vinculado ao Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (PRONAF). Este último é coordenado pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário. Outra relação importante é a do Bolsa Família com serviços de equipamentos que favorecem o acesso a alimentos pelas famílias pobres, como os restaurantes populares, as cozinhas comunitárias, os bancos de alimentos, as feiras que possibilitam a relação direta produtor consumidor, os programas de apoio à agricultura urbana e periurbana, hortas e lavouras comunitárias.

Além disso, temos dado ênfase especial às políticas de capacitação profissional, como o Próximo Passo, que prevê a inclusão dos adultos das famílias beneficiárias do Bolsa Família nas oportunidades geradas pelos investimentos em infraestrutura do Programa de Aceleração de Crescimento (PAC). Contamos ainda com a qualificação profissional por meio do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) e do Ministério do Trabalho e Emprego, sob coordenação da Casa Civil. Nesse programa desenvolvemos, por exemplo, o PlanSeQ Turismo para promover a qualificação profissional e a inclusão de adultos das famílias beneficiárias nas oportunidades geradas pela elevação da demanda de trabalhadores decorrente da expansão do segmento e da realização de grandes eventos no país, como a Copa de 2014 e as Olimpíadas de 2016. As parcerias são importantes, como a que firmamos no MDS com a construtora Norberto Odebrecht para capacitar beneficiários do Bolsa Família em Rondônia. Somem-se a essas ações o Programa de Mobilização da Indústria de Petróleo e Gás Natural (PROMINP) e os de microcrédito, entre outros.

Em nosso trabalho, um aspecto muito importante tem se destacado e nos levado a reflexões que tem nos ajudado a aperfeiçoar nossas políticas. Trata-se da constatação de que as políticas sociais não se excluem, elas são complementares. Uma criança ou um jovem na escola não aprende sem ter saúde. Da mesma forma, não terá saúde se não tiver assegurado, junto com sua família, o direito fundamental à alimentação, à água potável, ao saneamento básico, à moradia. Uma criança ou um jovem não terá saúde psíquica e emocional, fundamental também para o processo de aprendizado, se não tiver uma família – direito vinculado ao direito à alimentação, à assistência social – que a acolha e uma comunidade que lhe dê referência, possibilitando o seu desenvolvimento pleno. Se esses laços familiares e comunitários foram corroídos, fragilizados ou mesmo quebrados, é fundamental que sejam restaurados. No limite, cabe ao Estado, com a participação da sociedade, acolher as crianças e jovens em espaços adequados que permitam o desenvolvimento pleno dos seus talentos.

O livro de Marco Aurélio Weissheimer apresenta um quadro social ainda dramático do Brasil que expressa as grandes desigualdades sociais que estamos revertendo hoje no País. É sempre bom relembrar, “guardar de cor”, como diziam os versos de Chico Buarque de Holanda, que o Brasil tem uma história social extremamente injusta.

O Brasil, em seu alvorecer, foi dividido em quinze grandes áreas, chamadas de capitanias hereditárias, que abrangiam todo o litoral e o interior conhecido do país e foram entregues a doze donatários, que gozavam de benefícios privados e direitos públicos. Esses homens privilegiados tinham poder de morte sobre toda população de sua terra, principalmente sobre os pobres, chamados pela legislação da época de peões, negros, escravos e índios. E, contra as pessoas mais “gratas”, os menos pobres, eles podiam decretar pena de degredo [exílio] de até dez anos.

As capitanias hereditárias, ao contrário do que dizem alguns historiadores, marcaram profundamente a formação do Brasil, inclusive na perspectiva dessa relação contaminada entre o público e o privado. No desdobramento das capitanias, vieram as sesmarias, extensões enormes de terras que não eram aproveitadas, as monoculturas, os grandes latifúndios improdutivos que levaram Francisco Adolfo Varnhagen – um historiador conservador, mas arguto observador da realidade brasileira – a dizer, no século XIX, que veio daí a mania do brasileiro de ter tanta terra. Afirmava, em seu primeiro volume da História geral do Brasil:

“a mania de muita terra (que) acompanhou sempre pelo tempo adiante os sesmeiros, e acompanha ainda os nossos fazendeiros, que se regalam em ter matos e campos em tal extensão que levam dias a percorrer-se, bem que às vezes só a décima parte esteja aproveitada, mas se tivesse havido alguma resistência em dar o mais, não faltaria quem se apresentando a buscar o menos”.

Como desdobramento das sesmarias e das grandes propriedades improdutivas, tivemos o coronelismo como uma espécie de poder quase estatal dentro do próprio Estado. Em algumas regiões os coronéis se impunham ao Estado e criavam uma relação com o poder público que dispensava quaisquer organizações sociais.

Mantivemos a escravidão até o apagar das luzes do século XIX. Até as vésperas do 13 de maio de 1888, ainda se discutia se os donos de escravos seriam ou não indenizados pela perda de sua propriedade. Não conseguiram ser indenizados, mas conseguiram impedir aquilo que Joaquim Nabuco sonhava, que era incluir, na vida nacional, inclusive com a democratização da terra, os nossos antepassados escravos. Não foram acolhidos, não foram construídos direitos que os acolhessem na vida nacional e no exercício da cidadania. Foram, literalmente, despejados nos mocambos, nas ruas, nos morros, nas favelas de nossa nação.

A questão social só se coloca, efetivamente, no Brasil, a partir da Revolução de 1930, ainda que sob os limites impostos da época, pela questão do autoritarismo, do Estado Novo, do corporativismo. De qualquer forma, a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) em 1943 representa um avanço notável do ponto de vista dos direitos trabalhistas. No entanto, ficou praticamente restrita aos trabalhadores urbanos; os rurais não tiveram direitos reconhecidos.

Lembro-me bem, durante a minha infância e adolescência no interior de Minas Gerais, da situação dos trabalhadores do campo que, como os imigrantes europeus no início do século XX, tinham de se submeter às condições impostas pelo empregador. Diferentemente de seus companheiros das cidades, eles viviam uma situação que ecoava o período da escravidão: não tinham férias, salário mínimo, repouso semanal remunerado, previdência social, tampouco regulamentação da jornada de trabalho. Os direitos sociais trabalhistas, sindicais e previdenciários começam a chegar ao campo timidamente em meados dos anos 1960 do século XX, com o Estatuto do Trabalhador Rural e, posteriormente, no período mais dramático da ditadura o Funrural, uma lei que garantia aos trabalhadores rurais, inicialmente, a metade do salário mínimo. Mais tarde, tornou-se o Prorural.

A dívida social do nosso país é muito alta e estamos empenhados em revertê-la. Claro que, para isso, deveremos fazer ainda uma longa caminhada, possivelmente de algumas décadas, para consolidarmos, aperfeiçoarmos, integrarmos, ampliarmos as ações e as políticas sociais na perspectiva de construirmos uma sociedade de direito, mas também de fato, que assegure, efetivamente, na vida real, a todas as pessoas, um patamar comum de direitos e oportunidades.

Nesse sentido, o Programa Bolsa Família, que Marco Aurélio estuda e debate tão bem, cumpre um papel civilizatório e é estratégico no processo de resgate dessa dívida. Ao se debruçar sobre o programa, o autor faz análises abertas sem cair no criticismo impiedoso daqueles que não acolhem nenhuma política de inclusão social. Mas não se furta a apontar questionamentos e reparos muito razoáveis que nos ajudam a pensar e a buscar os melhores caminhos. Este livro contribui para o aperfeiçoamento do programa, que vai se tornando uma referência histórica, comparando todo o conjunto das nossas políticas sociais e medindo os impactos na vida dos brasileiros, sobretudo dos mais pobres. 

É crescente o reconhecimento internacional do papel das políticas sociais, em especial do Bolsa Família, na organização das políticas públicas e seu impacto na promoção do desenvolvimento sustentável. Um exemplo desse movimento é a interlocução que estamos mantendo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), a partir de uma reflexão em torno da complementaridade das políticas sociais e políticas trabalhistas. É muito forte, por exemplo, os efeitos das nossas políticas na redução da desigualdade social, no combate à pobreza. Entre 2003 e 2007, segundo estimativas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 16,5 milhões de pessoas conseguiram ultrapassar a linha da pobreza no Brasil. Conseguimos cumprir, ainda em 2005, a meta de redução de pobreza fixada nos Objetivos do Milênio pela Organização das Nações Unidas (ONU). 

Mas sabemos que ainda temos um caminho longo pela frente porque partimos de uma dívida social histórica que deixou marcas profundas em nossa sociedade. Essa situação é agravada pelo fato de o Brasil não ter feito no passado as políticas necessárias, o que nos impõe uma série de desafios para conseguirmos alcançar o ideal de igualdade social. Quebramos o pacto da “conspiração do silêncio” que havia no país em relação ao problema da fome, para utilizar uma expressão de Josué de Castro. Mas temos de avançar nessas conquistas, a começar pelo desafio de intensificar e aperfeiçoar os mecanismos de intersetorialidade das políticas, explorar ainda mais o potencial integrador do Bolsa Família e de todas as outras políticas, o que pode ser feito com a ampliação de espaços de interlocução interministeriais, integrando várias áreas do governo.

O fortalecimento do Bolsa Família, nessa perspectiva intersetorial, é um dos caminhos para que possamos consolidar a nossa rede de proteção e promoção social rumo ao objetivo de promover as bases de um Estado de bem-estar social. O propósito é firmar uma sociedade em que as oportunidades sejam iguais para todos. Esta publicação contribui para esse trabalho, apontando os progressos e indicando os pontos que ainda precisam ser mudados para que possamos acompanhar e atender melhor a evolução das demandas de todos os cidadãos brasileiros.

 

Brasília, novembro de 2009.