Por Breno Altman

A empresa May 10, estabelecida em Hanói, tem uma longa história. Fundada em 1946 com o nome de EX 10, pertencia às forças armadas e fabricava uniformes militares. A produção era determinada pelos planos do governo, que também era o único comprador. Tudo começou a mudar com o novo curso da economia, decidido em 1986.

Parte de uma corporação chamada Garco 10, que controla 15 plantas industriais e emprega oito mil trabalhadores, a May passou a produzir camisas, calças, abrigos e costumes. Noventa por cento de suas vendas, situadas em 40 milhões de dólares anuais, destinam-se à exportação. E abastece o mercado interno através de sua rede varejista.

Vietnã 5 - Vietnã projeta-se como potência industrial até 2020
Uma das fábricas do grupo téxtil estatal Garco 10, com 49% das ações nas mãos dos trabalhadores (por Breno Altman/Opera Mundi)

Outra alteração importante: seu funcionamento hoje é determinado por regras de mercado. Investe, produz e comercializa conforme as tendências de oferta e procura. Ao menor custo possível, sempre em busca da maior taxa de lucro. “Tomamos nossas próprias decisões”, explica a jovem gerente de vendas, Cao Thi Kim Danh. “O objetivo da fábrica é garantir divisas para o país e ganhos sólidos para seus acionistas.”

O sócio majoritário continua a ser o Estado, com 51% de participação. Além dos eventuais dividendos, recebe 10% sobre a receita a título de imposto sobre valor agregado e 25% sobre os lucros. O outro parceiro são os trabalhadores, que controlam 49% da companhia.

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Cao Thi Kim Oanh, gerente de vendas: “O objetivo é garantir divisas para o país e sólidos ganhos para os acionistas” (por Breno Altman/Opera Mundi)

O modo de operação da May é a regra predominante entre empresas estatais do Vietnã, ainda o núcleo forte de sua economia. A maioria dessas companhias são ou estão se transformando em sociedades por ações. Às vezes os sócios minoritários são capitalistas vietnamitas ou até investidores estrangeiros, formando as chamadas empresas mistas. O que caiu por terra, entretanto, foi o planejamento centralizado.

“Abandonamos a economia de comando”, afirma o professor Vo Dai Luoc, 65 anos, presidente do Centro de Economia Vietnã, Ásia e Pacífico. “Nosso planos são indutores, de metas, com fortes mecanismos de regulação. Mas deixamos de funcionar com cotas de produção e vendas estabelecidas pelo Estado. Mesmo as empresas públicas trabalham pela lógica de mercado.”

A entidade presidida por Luoc é um sinal dos novos tempos. “Somos a primeira organização não governamental criada no país”, diz com um sorriso largo. Mas seu principal cliente é o governo. Um dos principais intelectuais vietnamitas e tido como um dos formuladores estratégicos da política de renovação, Luoc está encarregado de elaborar ambicioso plano para o futuro.

“Queremos ser um país plenamente industrializado até 2020”, ressalta o economista. “Para atingirmos esse objetivo, porém, novas mudanças terão que ser realizadas. Precisamos de uma revolução tecnológica que nos permita ter indústria de ponta, agricultura mais produtiva, melhores empregos e qualidade ambiental.”

O padrão que impera no país, de fato, ainda é o da produção de baixo valor agregado. Além dos bens agrícolas e do setor de serviços, seus principais ramos são a fabricação de têxteis e calçados, a extração de petróleo cru, o processamento de alimentos e a construção civil.

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Vo Dai Luoc, presidente do Centro de Economia Vietnã-Ásia-Pacífico: “Nossa meta é sermos um país industrializado em 2020” (por Breno Altman/Opera Mundi)

Esses segmentos estão diretamente associados com as riquezas naturais vietnamitas e a utilização extensiva de abundante mão de obra com baixa qualificação. Com essa matriz, nos últimos 25 anos, foi possível garantir expressivas taxas de crescimento e elevação do nível de vida. Mas os dirigentes avaliam que há perigo de fadiga.

Um novo patamar de desenvolvimento permitiria enfrentar mais adequadamente o gargalo da balança comercial, através da substituição de importações em eletroeletrônica, máquinas e equipamentos, química fina e derivados do petróleo. A criação de uma indústria mais limpa também ajudaria na preservação ambiental. A alteração do perfil tecnológico, por fim, propiciaria uma requalificação mais sadia e bem paga do trabalho.

Também está em debate a forma de condução da política industrial. Atualmente o governo e as administrações de província criam parques produtivos. Há cerca de 150 em funcionamento e outros 230 com licença concedida, em 56 cidades. Para esses parques, geralmente organizados por ramo de atividade, são discutidos projetos de investimento, que devem ser aprovados pelo Ministério do Planejamento. Tanto o Estado quanto empresários participam de seu financiamento.

A febre da industrialização fez com que todas as cidades mais populosas desejem ter seus distritos fabris. Também é um jeito de solicitarem acesso aos fundos nacionais de desenvolvimento e para infraestrutura. Muitas dessas áreas, no entanto, estão com baixa ocupação, abaixo de 60%, como reconhecem funcionários do próprio governo.

Impacto sobre o campo
Um dos problemas mais graves desse mecanismo é o sacrifício eventualmente inútil de terras agrícolas para sua implementação. Aproximadamente 75 mil hectares ao ano são perdidos pelas zonas rurais em favor dos projetos industriais. No delta do rio Mekong, a área mais cultivada do país, até 2020 serão transferidos 8,5 mil hectares.

O impacto sobre os camponeses é forte. “Não podemos investir porque não sabemos até quando ficaremos em nossas terras”, afirma Nguyen Van An, do município sulista de Can Tho. Ele e outros produtores de frutas estão temerosos pelo futuro desde que foi anunciado, em 2005, a construção de um novo parque industrial em sua província. “Os residentes ficam aguardando que apareçam os investidores para o parque e façam propostas de compensação financeira”, reclama An.

O professor Luoc é outro crítico dessa política. “O governo tem que parar de dar licença para áreas incompatíveis e voltadas à indústria tradicional”, afirma. “Apenas espaços com mais de mil hectares devem ser autorizados, com o objetivo de desenvolver prioritariamente a indústria de software, o ramo eletrônico e outros setores avançados. A expansão descontrolada significa baixos salários, camponeses sem terra e dano ambiental.”

A estratégia que propõe também atingiria a agricultura. Os limites para concentração da propriedade – por exemplo, nos deltas dos rios Mekong e Vermelho, os mais importantes do Vietnã, ninguém pode ter mais que três hectares de terra – seriam cautelosamente eliminados. Os camponeses receberiam incentivos para fundir suas terras em empresas agrícolas ou os mais pobres a vender seu direito de usufruto aos mais ricos.

“Não é possível aumentar a produtividade no campo com pouco espaço”, defende Luoc. “A pequena propriedade foi importante para a produção de alimentos e a estabilidade social, mas 80% da renda das famílias camponeses já são provenientes de atividades não-agrícolas. A indústria, o setor de serviços e o empreendedorismo urbano absorvem os filhos dos camponeses que vivem da autossubsistência.”

São ideias que escandalizariam o país até o final dos anos 1980. “O velho socialismo morreu”, afirma Dai Luoc. “Não existe mais nenhum país socialista no mundo. Apenas nações que estão em transição para esse sistema. O Vietnã é uma delas. Mas esse objetivo só é possível com desenvolvimento, riqueza e prosperidade. A garantia de que seguiremos nesse caminho é o poder político dos trabalhadores, aliado ao papel regulador do Estado na economia.”

Mas ninguém parece perder muito tempo com essa discussão ideológica. A palavra mágica no país é prosperidade, associada à compreensão de que apenas a industrialização pode assegurar bem-estar. Para conquistar esse nirvana, os vietnamitas se somam à máxima do chinês Deng Xiaoping: não importa a cor dos gatos, desde que cacem ratos.

Publicado no Opera Mundi em 4/5/2010