Por Vilma Bokany*

A exoneração do ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, mostra que divergências de opiniões e contraposição às ordens em um governo autocrático e narcisista tem seu preço. A relação entre Bolsonaro e Mandetta já estava desgastada, e o ex-ministro já vinha sendo considerado um desafeto do presidente, mas a entrevista ao Fantástico, da Rede Globo, foi o estopim para sua demissão. Mandetta desafiou publicamente a autoridade de Jair.

O ex-ministro contava com apoio de 76% da população, segundo a última pesquisa Datafolha, realizada do início de abril, tendo crescido mais de vinte pontos desde o início da implantação das medidas de isolamento social para conter o avanço da pandemia causada pelo coronavírus. As medidas restritivas de circulação, adotadas pelo Ministério da Saúde, também detêm aprovação de ampla maioria da população.

Já Bolsonaro, que se opõe incisivamente às medidas e defende o retorno ao trabalho, às aulas e a reabertura imediata do comércio para reativar a economia, viu sua reprovação subir de 33% para 39% no mesmo período, e metade da população afirmou que ele mais atrapalha do que ajuda no combate à pandemia.

O substituto de Mandetta, o oncologista Nelson Teich, entra no lugar de um ministro que vinha gozando de grande aceitação popular. Terá um imenso desafio ao assumir o ministério mais importante na crise no momento que esta atinge seu pior momento e precisa montar uma nova equipe desconhecendo a estrutura do SUS. Propõe realizar a testagem em massa para conhecer e controlar a doença, o que, sem dúvida, Mandetta teria feito, não fosse um governo que restringe e controla recursos e um cenário mundial em que há escassez de testes e nem os a maior economia do mundo conseguiu fazê-lo.

Além disso, em textos publicados recentemente, Teich defende o isolamento horizontal, como Mandetta, e terá que driblar Jair, mantendo o isolamento sem, com isso, entrar em uma posição de confronto, ou arcar com as consequências de agradar o presidente, trair a ciência e suas próprias convicções e interromper o isolamento social, assumindo os riscos que essa atitude impõe ao sistema de saúde, insuficiente para lidar com o número de infectados e o consequente disparo no número de óbitos.

Mandetta nunca foi um defensor do SUS, apoiou o fim do Programa Mais Médicos, o teto de gastos com cortes à saúde, sempre representou os interesses do sistema privado de saúde, defendeu o golpe de 2016 e é contra a luta antimanicomial, mas vinha adotando posições tecnicamente bastante razoáveis e políticas públicas alinhadas com as orientações da Organização Mundial de Saúde e a comunidade científica mundial.

Não parece uma atitude estratégica trocar o técnico próximo à final do campeonato, assim como também não parece uma atitude provida de bom senso que um governo troque seu ministro da Saúde em meio a uma pandemia, especialmente quando este vem fazendo um trabalho tecnicamente razoável e suas ações desfrutam do apoio da opinião pública. Mas o governo Bolsonaro passa longe do bom senso e, especialmente neste caso, o que se vê é um presidente que nega a ciência e as evidências da crise, apoiando-se única e exclusivamente em suas convicções.

Sem dúvida, a disputa do protagonismo na gestão da crise abala a saúde pública. Bolsonaro mais uma vez precisou mostrar “quem manda”, o que caracteriza seu comportamento já demonstrado em momentos anteriores, quando se sentiu confrontado por outros membros do governo, como Gustavo Bebbiano, o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ou mesmo na substituição do superintendente da Polícia Federal no Rio, Ricardo Saadi. A defesa de posições mais razoáveis, contrastando com as presidenciais. Essa talvez constitua uma das características mais fundamentais do bolsonarismo.

Há, todavia, razões políticas além de morais por trás da demissão de Mandetta. O ex-ministro é do DEM, partido orgânico e forte de direita, que se destaca com Rodrigo Maia na presidência da Câmara e Davi Alcolumbre na presidência do Senado, na condução das políticas econômicas neoliberais, a despeito das trapalhadas do governo.

Bolsonaro sente-se ameaçado por Mandetta, Maia, o DEM, ou quem quer que se destaque e possa contrapor seus projetos para 2022. A demissão de Mandetta, para além das questões morais, traz também fortes razões eleitorais que merecem ser acompanhadas no decorrer da crise.

*Vilma Bokany é integrante do Grupo de Análise da Conjuntura da Fundação Perseu Abramo. O texto não reflete necessariamente a posição da instituição.

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