Na crise, nem toda proposta econômica “fora da caixinha” é boa
Com o aprofundamento da crise e o cenário cada vez mais tenebroso, multiplicam-se as propostas bens intencionadas para enfrentarmos o risco de uma paralisia quase completa das atividades econômicas. Nesse ambiente, em que prevalecem os sentimentos de angústia, ansiedade e voluntarismo, muitas sugestões que aparentemente respondem a necessidades urgentes que proliferam neste momento são claramente equivocadas, quando não contraproducentes. Senão, vejamos:
REDUZIR OS SALÁRIOS DOS FUNCIONÁRIOS PÚBLICOS: na crise econômica atual o principal problema é o colapso da demanda. As empresas privadas, do camelô às grandes multinacionais, não têm nenhuma razão para acreditar que terão receitas para pagar suas contas (salários, fornecedores, impostos, amortizações de empréstimos) nas próximas semanas e meses. Neste contexto, somente o setor estatal – por sua dimensão, razão de ser e modo de se financiar – pode gastar sem se preocupar com as receitas fiscais, nem com qualquer poupança prévia. Como a história e a boa teoria econômica fartamente demonstram, o governo é o único ente do sistema econômico que consegue realizar despesas e custeá-las com os resultados da multiplicação da renda que serão alcançados a partir de seu próprio gasto. Ou, dito de outra forma, ao injetar poder de compra na economia, o Estado consegue dinamizar os negócios privados para a frente no tempo, capturando de volta mais à frente os valores que antecipou para a sociedade. Ora, precisamente por isso, mas não apenas, reduzir os salários dos funcionários públicos é uma péssima ideia que inequivocamente irá deprimir ainda mais a demanda agregada, agravando a contração da produção e da renda, em última instância, piorando as perspectivas do setor privado e das famílias de uma forma geral – além disso, é importante assinalar que no Brasil a participação dos servidores públicos no total de ocupados é relativamente pequena (12%) e que, em sua enorme maioria, recebem remunerações bastante modestas, quando abaixo dos valores de seus pares no mercado.
UTILIZAR AS RESERVAS INTERNACIONAIS: desde meados da década de 2000 o governo brasileiro tomou a sábia iniciativa de acumular reservas internacionais, aproveitando o bom momento de nossas exportações e da alta liquidez internacional. Graças a isso, o país conta hoje com reservas da ordem de 370 bilhões de dólares, o que nos protege nos momentos de crises agudas, de processos de fugas de capitais e do risco de colapso de nossas contas externas. Isso é uma grande conquista, com a qual praticamente eliminamos o crônico problema da “restrição externa” que ao longo da história fez nossa economia colapsar sempre que nos faltavam divisas internacionais (moeda reserva). Portanto, as reservas existem justamente para nos proteger de momentos turbulentos como o atual e não haveria pior momento para querer desfazer delas. Além disso, é importante ter em mente que as reservas são constituídas por dólares e, portanto, para utilizá-las o Banco Central seria obrigado a trocar quantidades cavalares de dólares por reais e transferir esses reais para o governo utilizar de acordo com as suas prioridades. O problema é que, de acordo com o paradigma econômico ortodoxo que orienta há algum tempo a política monetária brasileira, sempre que houver uma injeção excessiva de recursos na economia, caberá ao Banco Central enxugar essa liquidez por meio da venda de títulos públicos (o BC entrega títulos ao mercado e captura reais). Ao final, aquele gasto público adicional proporcionado pela troca das reservas internacionais teria como contrapartida um endividamento do setor público no mesmo montante. Logo, faz muito mais sentido financiar diretamente os gastos do governo por meio de endividamento público em reais no mercado interno (ou por meio de emissão de moeda) e manter as reservas como instrumento de proteção externa da economia brasileira.
AUDITORIA DA DÍVIDA PÚBLICA: essa é outra proposta que tem pipocado no debate, principalmente emanada de bem intencionados interlocutores da esquerda. A ideia é que, diante da calamidade e da urgente expansão do gasto público, faça-se um levantamento da dívida pública carregada por décadas pelo Estado brasileiro para identificar supostos desvios, malfeitos ou favorecimentos nos processos pretéritos de contratação dessa dívida. Aqui também a proposta não se justifica, por dois motivos. Primeiro, porque a dívida pública brasileira resulta de operações de venda de títulos públicos no mercado financeiro, ao preço da taxa de juros básica (Selic). Trata-se, portanto, de operações que se realizam aos olhos de todos, publicamente, determinadas em última instância pela interação entre oferta e demanda por liquidez no chamado mercado interbancário, balizadas por uma meta de juros perseguida pelo BC – claro que o patamar dessa meta de juros é altamente questionável, mas sua determinação decorre, em última instância, do paradigma monetário que orienta as cabeças das autoridades econômicas brasileiras e que é defendido diuturnamente nos jornais, nas rádios e nas TVs brasileiras com constrangedora transparência. Ou seja, nossa dívida pública atual não é objeto de contratação entre duas partes institucionais (governo e instituições financeiras)como no passado, mas sim de operações pulverizadas em um mercado impessoal, no qual sequer se consegue conhecer a identidade do credor. Se quisermos identificar algum dolo nesse processo de endividamento, ele está na ideologia de nossa classe dominante, defendido com esmero pela fina flor dos especialistas econômicos. Em segundo lugar, uma auditoria da dívida pública em um momento delicado como o atual provocaria um cataclismo no mercado, inviabilizando por completo não só a necessária emissão de títulos públicos para custear a urgente expansão do gasto público, como também impediria a própria rolagem da dívida velha, estrangulando de vez as finanças públicas.
UM PLANO MARSHALL: muitos têm feito menção a esse famoso Programa de Recuperação Europeia que foi realizado por iniciativa dos EUA na segunda metade dos anos 1940 com o objetivo de auxiliar os aliados dos norte-americanos no pós-guerra.O plano, entretanto, apesar da fama, foi bastante tímido no que diz respeito especificamente à injeção de recursos a fundo perdido (cerca de 100 bilhões de dólares atualizados a valores atuais) e, na verdade, teve sua maior força na concessão de créditos dos bancos privados dos EUA para empresas europeias. Diferentemente do que se costuma supor, portanto, o Plano Marshall foi muitíssimo mais modesto e incomparável, por exemplo, com as medidas de socorro financeiro (Quantitative Easing) que foram adotadas pelos bancos centrais dos países ricos desde a crise de 2008, cujo montante alcança 10 trilhões de dólares e que, agora, terão que ser majorados sem maiores constrangimentos.