A chegada ao governo do Paraguai do ex-bispo católico Fernando Lugo, em agosto de 2008, abriu uma etapa tão cheia de novidades quanto de desafios na história desse país sulamericano. Ficavam para trás 35 anos de uma das mais cruéis ditaduras do continente -a de Alfredo Stroessner- e 19 anos de um corrupto continuísmo pós-ditatorial. "Herança maldita que continua contaminando tudo", apesar do processo de mudança em marcha, enfatiza o Padre Francisco "Paco" Oliva, 81 anos, sacerdote jesuíta comprometido com a teologia da libertação e com a causa dos pobres. O "Pa’i" (sacerdote, em guarani) Oliva, como é conhecido popularmente, é espanhol de origem. Chegou ao Paraguai em 1964, obtendo a nacionalidade cinco anos mais tarde. Em 1969, foi expulso pela ditadura, começando sua longa caminhada de 27 anos de exílio, que o levou até a Argentina, ao Equador, para a Nicarágua sandinista e, novamente, para a sua Espanha natal. Em 1996 pode regressar ao Paraguai e, desde então trabalha no Bañado Sur, uma zona muito marginalizada da capital, Assunção. Promotor do Parlamento Jovem, editorialista radial, analista agudo, o "Pa’i" Oliva jogou um decisivo papel nas mobilizações juvenis e populares de março de 1999 em defesa da democracia. Em 2008, foi designado "Cidadão Ilustre de Assunção" pela Junta Municipal da capital. Entrevista exclusiva com um dirigente popular histórico.

Qual é sua visão sobre o momento político atual ao compará-lo com a longa ditadura de Stroessner (1954-1989)?

Talvez poderia sintetizá-lo com uma imagem. O Paraguai é como um preso inocente do tempo da ditadura de Stroessner, a quem, finalmente, libertam. E passam os anos sem que possa encontrar seu próprio caminho na sociedade. Os 35 anos de ditadura se converteram em uma herança maldita que continua contaminando tudo.
A ditadura estava quase em decadência quando o segundo da nomenclatura de Stroessner, seu parente, Andrés Rodríguez Pedotti, se adiantou e o expulsou, em fevereiro de 1989, com um Golpe. Por trás dessa manobra houve duas razões principais. A primeira, o velho ditador já não servia para os grandes negócios do narcotráfico que outros queriam promover. A segunda, se o povo realmente conseguisse implementar a ruptura, a mudança institucional, as consequências teriam sido mais radicais.
Desse modo, ele caiu, mas sua herança de corrupção, clientelismo, justiça vendida etc. continuou vigente nessa etapa que se define como de transição. Porém, na realidade esse momento serviu para assegurar o continuísmo do Partido Colorado no poder durante os 19 anos seguintes, após a fuga de Stroessner. Com essa herança chegamos a ser o terceiro país mais pobre da América Latina e o segundo mais corrupto de todo o planeta.

No marco desse processo histórico marcado por ditadura e continuísmo… Qual é sua avaliação sobre a etapa iniciada em abril de 2008, com a eleição do bispo retirado Fernando Lugo para a presidência do país?

A eleição e a posse de Lugo foi como começar a tornar-se realidade os grandes sonhos de todos os/as paraguaios/as que, desde a independência, sonharam com outro país, mais equitativo, solidário, justo…
Era como abrir uma janela e contemplar o horizonte sonhado que estava ao nosso alcance. Pode-se supor a alegria desse momento. É importante recordar que elegemos a Lugo porque, por não ter sido, não estava contaminado pela corrupção imperante no país.

18 meses depois da chegada de Fernando Lugo à presidência (agosto 2008), quais são os aspectos mais positivos de sua gestão?

A primeira conquista e o que m ais está beneficiando aos empobrecidos do Paraguai -que estão acima de 50% da população- é a saúde para todos. Gratuita, tanto para as consultas quanto para as cirurgias e para ter acesso a uma longa lista de medicamentos essenciais. Um avanço significativo empanado parcialmente por alguns profissionais da saúde que, por meros cálculos políticos opositores, colocam empecilhos para que esse plano se torne efetivo.
Um segundo avanço é solicitar a modificação do Tratado Binacional com o Brasil sobre a energia elétrica gerada pela represa comum de Itaipu. O Paraguai não usa a energia produzida e, desde anos, o Brasil se beneficiava pagando um preço mínimo. Tudo foi resultado da corrupção de Stroessner, que vendeu sua Pátria. Apesar de que não foi obtido tudo o que o Paraguai reclamava, foi possível abrir a porta para ulteriores negociações mais equitativas.
O terceiro avanço é a luta decidida contra a corrupção. Não se pode dizer que Lugo fez com que ela desaparecesse. Porém, somente por tê-la enfrentado, se nota sua força significativa, permitindo compreender melhor seu enorme poder na polícia, nos tribunais de justiça, no parlamento, em ministérios e entidades nacionais ou privadas. Um verdadeiro câncer que invadiu todo o corpo da Nação e continua incrustado nele.
O quarto avanço é o indeclinável compromisso do presidente Lugo para com os pobres, indígenas e com os que sofrem. Lamentavelmente algumas das deficiências de sua gestão o têm debilitado.

Por exemplo…

R: Os titubeios e a falta de decisão por parte do presidente no desempenho de sua tarefa. Alguns relacionam isso ao seu modo de ser. Outros, à sua prática histórica enquanto bispo da Igreja Católica. O bispo escuta aos seus fieis; porém, costuma tomar decisões sozinho. Uma pessoa à frente de uma diocese e à frente de uma nação necessitaria da ajuda de uma boa equipe de assessores. Pensamos muito sobre como poderemos ajudá-lo. E temos feito isso em muitas ocasiões. Eu, pessoalmente, em três ocasiões. Mas, não conseguimos nada.
Outro elemento é que tem lhe faltado "diplomacia" para conquistar algumas pessoas; em saber substituir aqueles que foram nomeados por ele, mas que falharam; em defender-se de sua família.
Outro problema são os advindos das polêmicas causadas por suas paternidades reais ou inventadas pelo9s inimigos. Se forem reais essas acusações, são graves irresponsabilidades pelas quais, agora, está pagando as consequências com um alto custo.
A quarta deficiência é que, por sua inexperiência e falta de uma equipe de assessoria mais sólida, nem sempre esteve rodeado por pessoas honestas e preparadas.

Existe atualmente um debate sobre o tipo de sociedade que o Paraguai necessita?

 É difícil responder a isso. Durante mais de um século estivemos caminhando por um caminho tortuoso e cada vez mais foi piorando. Seria necessária uma espécie de refundação da Nação. Esse desafio deve ser considerado em 2011 quando celebremos o Bicentenário da Independência.
No entanto, falta espírito de cidadania. Somos mais habitantes do que cidadãos. Com uma história gloriosa durante a Independência; porém, empanada por muitos anos de ditadura. Hoje falta uma espécie de contrato social com o qual possamos viver e crescer. Ser de esquerda, socialista, comunista, camponês, empobrecido etc. é ser considerado pela parte minoritária da população como sinônimo de "terrorista" e pretexto para criminalizar a luta social. Necessitamos de um debate profundo que ainda não começou.

É a primeira vez que um bispo católico é eleito presidente de um país latinoamericano? Que impacto tem esse "fenômeno"?

Creio que é a primeira vez que esse fato acontece na democracia moderna. Quanto ao impacto, dá a impressão de que o povo foi mais sereno ante esse fato do que alguns personagens da Igreja institucional. Imediatamente, colocou-se contra.

Como repercutiram as repetidas denúncias, nos últimos meses, sobre a paternidade do presidente Lugo? Refiro-me à sua credibilidade enquanto estadista…

Creio que teria sido melhor se não houvesse acontecido; porém, uma vez que aconteceu, sem dúvida, causou dano.
Os políticos se aproveitaram e, inclusive, querem, a partir dessas denúncias, fazer um julgamento político, o que é um absurdo. E tudo isso em meio às piadas e à falta de respeito, com total impunidade.
O ditado "quem estiver livre de pecado, atire a primeira pedra" não foi cumprido pelos detratores de Lugo.
Os crentes sem muita formação ficaram impactados negativamente. Curiosamente, o povo simples e empobrecido foi quem reagiu com maior maturidade.

Após o golpe de Estado em Honduras, em junho de 2009, muitas vezes falou-se sobre a possibilidade de acontecer algo similar no Paraguai. Essa possibilidade é real?

Creio que sim. E o modo através do qual a oposição embaralha a destituição do presidente Lugo é mediante um julgamento político. E continuamente ele está sendo ameaçado com isso. O que os deterá logo que conseguirem o número de votos necessários no Parlamento para destituí-lo?
O medo à carência de causas reais que justifiquem esse julgamento. E o medo à reação do povo que poderia borrá-los do mapa político durante anos nas próximas eleições.

Impossível pensar no Paraguai sem levar em consideração o atual contexto latinoamericano marcado por uma forte presença de movimentos sociais pujantes e pela presença de vários governos progressistas. No cotidiano do Paraguai, esse contexto se faz sentir?

Com certeza. Penso na presença conceitual do chamado Socialismo do Século XXI. E se nota concretamente o desejo dos presidentes Chávez (Venezuela), Lula (Brasil), Correa (Equador) e Evo Morales (Bolívia) de apoiar ao presidente Lugo.
Paradoxalmente, as instituições internacionais, tal como o Mercosul, são um fracasso para os países pequenos como o Paraguai. Na América Latina, todavia, não compreendemos, tal como aconteceu na Europa, que os países grandes, decididamente, deveriam ajudar aos seus sócios menos afortunados.
Assinalo algo que daria tema para outra entrevista. O governo dos Estados Unidos continua influindo negativamente no desenvolvimento de nossos países.

Para onde caminha o Paraguai nos próximos anos?

Nesse momento, não é seguro predizer sobre isso. Os que queremos as mudanças e ganhamos por mais de 400 mil votos as eleições, pensamos que o Paraguai deve progredir pelo caminho de uma maior equidade. Porém, estão os que corromperam o Paraguai durante décadas no poder e pretendem voltar. E também estão os que chamamos "amos" do Paraguai (grandes produtores de soja, pecuaristas, industriais, empresários, empresas multinacionais) que temem perder seus privilégios caso se vejam obrigados a partilhar sua riqueza. Uma contradição evidente e de difícil resolução…

[Sergio Ferrari, em colaboração com o diário independente suíço "Le Courrier"]

*Sérgio Ferrari, colaborador de Adital na Suiça. Colaboração E-CHANGER, ONG miembro da Plataforma Comunica-CH

 

Traduzido e publicado pela Adital em 16/3/2010