por Mariana Martins

por Mariana Martins

A negativa do jornal O Globo, no início do mês, em publicar uma peça publicitária da Campanha Afirme-se em defesa das ações afirmativas relacionadas à questão racial recoloca de forma explícita um importante debate acerca do direito à comunicação. O episódio estabelece uma situação de fato em que liberdade de expressão é confundida com liberdade comercial das empresas privadas de comunicação. A publicação, mais antigo veículo do maior grupo de comunicação do país, alega possuir uma política comercial específica para o que chama “peças de opinião” e, por esta razão, teria mais que decuplicado o valor a ser cobrado pela veiculação do anúncio ao tomar conhecimento de que se tratava de uma campanha pró cotas.

O pesquisador sênior da Universidade de Brasília Venício A. de Lima diz que este é um caso que merece ser observado a partir das diferenças entre liberdade de imprensa e liberdade de expressão. A primeira, na opinião do professor, está relacionada à proteção dos interesses daqueles responsáveis pelos veículos de comunicação e não deve ser confundida com a segunda, que é um direito humano e, no Brasil, constitucionalmente positivado. Lima pondera que a liberdade de expressão, no atual contexto das práticas de comunicação, depende da inserção de opiniões diversas nos grandes veículos de massa. Estes, portanto, precisariam refletir não só a opinião dos seus donos.

No caso da não publicação do anúncio da Afirme-se, o que está colocado é, justamente, a utilização de uma política comercial, justificada supostamente pelo princípio da liberdade de imprensa, para restringir o direito da campanha publicizar sua opinião a favor das ações afirmativas e o direito dos cidadãos de receberem informação sobre o tema desde uma perspectiva diversa da dos veículos das Organizações Globo. Segundo Lima, na página de O Globo na internet, o jornal apresenta a tabela de preços comerciais e nela está escrito que a empresa cobra de 30% a 70% a mais em anúncios de conteúdo opinativo. Contudo, no caso em questão, o valor variou em aproximadamente 1300%.

Curiosamente, a tentativa da Campanha Afirme-se publicar o anúncio está intimamente relacionada ao fato de os grupos a favor das ações afirmativas perceberem que não conseguiam espaço editorial, ou seja, na cobertura jornalística regular para apresentar seu ponto de vista. Assim, por ocasião da audiência pública no Supremo Tribunal Federal (STF) que discutiria entre os dias 3, 4 e 5 de março duas ações de inconstitucionalidade movidas contra a criação de cotas nas universidades públicas para descendentes de negros e indígenas, a campanha resolveu fazer intervenções publicitárias em jornais de grande circulação nacional em defesa da constitucionalidade das leis que estão em vigor.

A intervenção publicitária produzida pela agência Propeg, que também é parceira da campanha, contava basicamente com três produtos: um manifesto ilustrado que seria publicado em jornais considerados formadores de opinião pelos organizadores da Afirme-se, um spot de rádio e um uma vinheta, que estão disponíveis no blog da campanha. De acordo com Fernando Conceição, um dos coordenadores da Afirme-se, as doações das entidades que fazem parte da campanha e a captação de recursos com outras organizações foram suficientes para pagar a publicação do manifesto em quatro jornais de grande circulação – O Estado de S. Paulo, Folha de S. Paulo, A Tarde (BA) e O Globo (RJ). “Nós resolvemos comprar especificamente nesses veículos porque eles já vêm fazendo campanhas sistemáticas contra as cotas há tempos. Como nós temos outra visão e não encontramos lugar livremente para expor um outro ponto de vista, resolvemos comprar o espaço”, explica Conceição.

Como é de praxe nas campanhas publicitárias, a agência responsável passou a negociar o preço do anúncio de uma página inteira a ser publicado no dia 3 de março com os veículos selecionados. Por se tratarem de anúncios ligados a Organizações Não Governamentais, os preços acordados ficaram em torno de R$ 50 mil. O valor exato negociado com O Globo foi orçado em R$ 54.163,20.

Valor impraticável

Fechados os valores, a agência enviou a arte ao jornais. Dois dias antes da campanha ser publicada, a coordenação da campanha Afirme-se foi comunicada pela agência Propeg que o anúncio havia sido submetido à direção editorial de O Globo e que os responsáveis julgaram que a peça era “expressão de opinião”. O jornal dizia que, sendo assim, o valor deixava de ser negociado anteriormente e passava para R$ 712.608,00. “Um valor irreal, impraticável até para anuncio de multinacional”, queixa-se o coordenador da campanha.

Procurado pela equipe do Observatório do Direito à Comunicação, o jornal O Globo não respondeu aos pedidos de entrevista. No entanto, o diretor comercial da publicação, Mario Rigon, concedeu entrevista ao portal Comunique-se ao qual disse que  considerou a peça da campanha como “expressão de opinião” e diante disso, “seguiu a política da empresa, que determina um valor superior para esse tipo de anúncio”. “De fato vimos que se tratava de uma expressão de opinião, mas não nos cabe julgar o mérito da causa. É a nossa política comercial, tratamos assim qualquer anunciante que queira expressar sua opinião”, disse Rigon ao portal.

Este Observatório também buscou consultar o Conselho de Autorregulamentação Publicitária (Conar). Por intermédio da assessoria de imprensa, o conselho adiantou que não tem posição sobre o caso, visto que foge do escopo da entidade se posicionar sobre a política comercial dos veículos.  “Nós não nos posicionamos sobre regulação de mídia exterior, atuamos exclusivamente sobre o conteúdo das mensagens publicitárias”, disse Eduardo Correia, assessor de Imprensa do Conar. O assessor falou ainda que a entidade precisa ser provocada por processos para se posicionar sobre o conteúdo de uma peça e que nas questões de política comercial das empresas eles não  devem opinar.

Ainda analisando o caso, o pesquisador Venício Lima lembra que, diante da falta de regulamentação da mídia no Brasil, as empresas privadas, na maioria das vezes, podem agir como bem entendem e praticar os preços que lhes convêm. Lima acredita ainda que seja provável que O Globo esteja, a partir da lógica comercial, protegido legalmente para fazer esse tipo de cobrança, o que é apenas “um lado da moeda”.

É fato que a liberdade comercial baseia-se na lógica de que as normas podem ser estabelecidas pelas próprias empresas e que, portanto, podem causar distorções quando estas se cruzam com questões editoriais. No caso em questão, fica evidente a falta de transparência quanto aos critérios adotados por O Globo para considerar o anúncio como conteúdo opinativo e aplicar um valor diferenciado. Os outros três jornais que publicaram a peça publicitária não tiveram a mesma compreensão e a tabela aplicada foi a de anúncio publicitário comum.

A Afirme-se move uma ação contra O Globo no Ministério Público do Rio de Janeiro por conta do episódio. A campanha pede que, com base no que diz a Constituição Federal com relação à liberdade de expressão, o jornal seja obrigado a publicar o anúncio por um valor simbólico.

Fernando Conceição defende que a atitude de O Globo foi claramente de abuso de poder econômico e que se configura como dumping, prática condenada pelo próprio mercado. “Foi uma maneira que a direção de O Globo encontrou para cercear o direito constitucional que é a liberdade de expressão por meio do abuso do poder econômico”, denuncia Conceição.

Anticotas

Pesa ainda contra as Organizações Globo como um todo uma constante militância contra as ações afirmativas relativas à questão racial, dentre elas as políticas de cotas para negras e negros nas universidades públicas. Esta militância é liderada inclusive pelo atual diretor da Central Globo de Jornalismo, Ali Kamel. Kamel é autor do livro “Não somos racistas: uma reação aos que querem nos transformar numa nação bicolor”, que nega a existência do racismo e, portanto, da necessidade de políticas reparadoras.

Pesquisa do Observatório Brasileiro de Mídia, citada por Venicio Lima, revela que grandes revistas e jornais brasileiros apresentam posicionamento contrário aos principais pontos da agenda de interesse da população afrodescendente – ações afirmativas, cotas, Estatuto da Igualdade Racial e demarcação de terras quilombolas. A pesquisa analisou 972 matérias publicadas nos jornais Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo e O Globo, e 121 nas revistas semanais Veja, Época e Isto É – 1093 matérias, no total – ao longo de oito anos.

Lima chama a atenção para o fato de a cobertura de O Globo merecer um comentário à parte na pesquisa. Dentre os três jornais pesquisados, foi aquele que mais editoriais publicou sobre o tema, mantendo inalterados, ao longo dos anos, argumentos que se mostraram falaciosos, como o de que as cotas e ações afirmativas iriam promover racismo e de que os alunos cotistas iriam baixar o nível dos cursos.

Lembrando destes dados da pesquisa, Lima acredita que O Globo estabeleceu uma barreira comercial e que, do ponto de vista legal, eles podem estar cobertos pelos princípios da livre iniciativa. “Mas, esta conduta, tendo em vista o conteúdo que deixou de ser publicado, infringe o direito à informação. A questão que fica para o Ministério Público do Rio de Janeiro é legal. Cabe a eles encontrarem alguma forma jurídica de pensar o caso sob o ponto de vista do direito à informação. Para mim, essa postura deixa as Organizações Globo numa situação difícil para posteriormente falar de liberdade de expressão”, conclui o professor.

Publicado no Observatório do direito à comunicação em 16/3/2010