Na Somália podemos compreender de forma brutal a lógica do imperialismo diante da tentativa de um movimento islâmico de construir um Estado-nação.

Se quisermos compreender a lógica da geopolítica americana no Oriente Médio e o sentido dos movimentos políticos islâmicos, devemos olhar para a Somália, porque esse é um caso-limite que nos permite ver com clareza o que fica nebuloso ou ambíguo em circunstâncias menos dramáticas. Entre os “estados-nação fracassados” do mundo a Somália é o primeiro colocado de acordo com os índices de “failed states” tanto da Peace Foundation quanto do Brookings Institute. É um país praticamente sem Estado, e, portanto, é um povo sem lei, sem ordem pública, sem sistema judiciário, sem proteção social, sem nada. É um povo que combina a extrema pobreza da população à organização por clãs e à dominação por senhores de guerra. É uma região no Nordeste da África que no último ano ganhou as manchetes dos jornais porque se tornou também foco de ampla pirataria marítima. É um território nacional onde fica clara a lógica imperial dos Estados Unidos e o caráter nacionalista e moderno não obstante fundamentalista dos movimentos islâmicos, que buscam estabelecer a ordem e organizar um Estado em meio ao caos, usando para isso a religião.

Ao contrário do que afirma o saber convencional ocidental, os movimentos islâmicos não se caracterizam principalmente por ser expressão do fundamentalismo religioso, mas por serem movimentos políticos voltados para a liberação nacional e a formação de um estado-nação. Eles usam a religião para enfrentar seus dois flagelos: o atraso e desunião de sua própria sociedade e a dominação externa. Para isso, procuram em cada país fazer o mesmo que os países desenvolvidos fizeram: construir uma nação e formar um Estado que sirva de instrumento para conseguirem, além da ordem, os objetivos políticos das sociedades modernas: liberdade, bem-estar econômico, justiça social e proteção do ambiente. Os Estados Unidos são o obstáculo fundamental à realização desta tarefa ao intervirem nos países e ao se aliarem aos setores mais atrasados e corruptos dela – que, no pior dos casos, são chefes-jagunços ou senhores de guerra. Ao invés de entenderem os movimentos islâmicos como movimentos políticos nacionalistas com os quais se pode discordar, mas se deve respeitar, os Estados Unidos os combatem com o argumento persuasivo para seus próprios cidadãos, embora absurdo, de que esses movimentos representam uma ameaça à segurança nacional americana.

Os dados em que me baseio para chegar a esta conclusão eu não os obtive lendo publicações de esquerda, mas The Economist e, mais recentemente, no número de abril de Foreign Policy, um excelente artigo do jornalista Jeffrey Genttleman. Ele já esteve doze vezes na Somália, e o considera “o país mais perigoso do mundo” – o que não é surpreendente já que é o país mais sem Estado ou sem lei do mundo. “A Somália”, diz ele, “conheceu um breve período de paz com a chegada ao poder dos islâmicos, em 2006. Mas a partir do momento em que os americanos os expulsaram, o país enterrou-se novamente no horror”. Em sua última viagem ao país ele contratou dez homens armados para protegê-lo.

A Somália é um país de 10 milhões de habitantes. Ao contrário de muitos países africanos, é um país homogêneo do ponto de vista da língua (todos falam o somali) e religioso (todos são muçulmanos sunitas). Sua estrutura é de clãs, mas essa é a estrutura tradicional de todos os povos. A Somália foi dominada no final do século XIX pela Grã-Bretanha e pela Itália. Logrou independência em 1960. Desde 1969 até 1991 foi dirigida por um general, Mohammed Siyad Barré, que pretendia modernizar o país, mas não lograva controlá-lo. Em 1991 ele foi derrubado pelos senhores de guerra regionais – e desde então imperou o caos na Somália.

A Somália está situada em um ponto estratégico da África, no seu “corno” Nordeste, dominando o Golfo de Aden e, juntamente com o Djibuti, a entrada para o Mar Vermelho. O interesse que ele provoca não é tanto devido a seus recursos naturais, mas a essa posição estratégica em uma região em que os recursos petrolíferos continuam a determinar a geopolítica imperial. Em 1992, depois da Guerra do Golfo, e em um momento de auge da hegemonia americana, o presidente George H. Bush (pai), a pretexto da desordem que reinava no país e no golfo, resolveu enviar milhares de marines para proteger os comboios de víveres. Os conselheiros do presidente, entretanto, a partir da constatação da divisão do país entre senhores de guerra rivais, subestimaram a capacidade de resistência nacional do povo somali. O resultado foi a “queda do falcão negro” – episódio militar relatado em filme de Ridley Scott no qual dois helicópteros Black Hawks foram derrubados em Mogadíscio e morreram 18 soldados americanos.

Humilhados, os americanos retiraram-se da Somália. No decênio que se segue, relata Jeffrey Genttleman, adeptos do islamismo sunita com base principalmente na Arábia Saudita voltaram sua atenção e seus esforços para lá. Construíram mesquitas, organizaram escolas corânicas, desenvolveram projetos de assistência social. O processo de renovação islâmica ganhou força em 2000 quando os anciãos dos clãs de Mogadíscio criaram uma rede informal de tribunais por bairros a fim de estabelecer um mínimo de ordem na capital do país. Eles prenderam os assassinos e os ladrões, julgaram-nos e os meteram na prisão, usando como lei a chária, ou seja, a lei islâmica que foi aceita por todos os clãs. É importante lembrar que o islã, diferentemente do cristianismo, é uma religião “legal”: o Corão é em boa parte constituído de preceitos legais. Os anciãos denominaram essa rede União dos Tribunais Islâmicos. Estavam, assim, construindo um Estado na Somália, e, para isso, usavam o islã como fonte de legitimidade e a chária como lei. O novo sistema conseguiu inclusive o apoio dos grandes (relativamente) empresários locais que assim logravam mais segurança para seus negócios sem ter que pagar impostos. Já que não pagavam impostos, eles resolveram contribuir para o Estado informal com a compra de armas.

Em 2005, a CIA, que vinha acompanhando os acontecimentos, decidiu intervir. O sistema islâmico que estava se formando lhes pareceu um perigo. Embora não houvesse qualquer indicação nesse sentido, a CIA entendeu que a Somália poderia ser um novo berço de jihad – de guerra santa – como havia acontecido com o Afeganistão. O governo americano decidiu então intervir; não chegou a dizer que buscava a democracia; interveio em nome da ordem interna do país e da segurança nacional dos Estados Unidos. Escaldado, entretanto, pela experiência anterior, ao invés de enviar tropas, decidiu aliar-se e pagar os senhores de guerra. Ou seja, decidiu aliar-se aos bandidos que eram os algozes da população há decênios. A primeira notícia que li a respeito desta aliança foi em The Economist. A estratégia dos impérios de se aliar aos grupos dominantes conservadores dos países dominados é antiquíssima, e foi nos tempos modernos sempre uma norma por parte dos países ricos em relação aos países em desenvolvimento. Mas a aliança com bandidos era um passo além: surpreendeu-me. Depois confirmei a informação através da leitura de outros jornais. Jeffrey Genttleman conta em detalhes como isto aconteceu. Um senhor de guerra lhe disse que dois agentes da CIA chegaram a Mogadíscio um determinado dia de 2006 com malas cheias de dinheiro e disseram aos chefes-jagunços: “Usem esse dinheiro para comprar armas. Se tiverem perguntas, enviem um e-mail para o endereço: [email protected]”. A estratégia, porém, não funcionou. O regime estabelecido pelos anciãos islâmicos já havia se desenvolvido. Reinava ordem em Mogadíscio. Usando a bandeira da religião os islâmicos haviam inclusive logrado que boa parte da população entregasse suas armas. E conseguiram persuadir as cidades costeiras a não se dedicar à pirataria. Quando não eram ouvidos, eles tomavam de assalto os navios sequestrados. No ano de 2006, segundo a Agência Internacional Marítima de Londres, só houve 10 sequestros de navios nas costas da Somália.

A reação à aliança dos Estados Unidos com os senhores de guerra foi fortalecer os grupos islâmicos mais radicais, que buscaram impor uma lei islâmica mais rígida sobre a população, especialmente sobre as mulheres. Este fato reassegurou a CIA quanto ao acerto de sua estratégia de aliança com os senhores de guerra, e esta foi mantida. Havia, entretanto, ainda a possibilidade de neutralizar os grupos islâmicos mais radicais através de uma aliança com os grupos não radicais que eram dominantes. Em setembro de 2006 o deputado democrata Ronald M. Payne, presidente da subcomissão da Câmara dos Deputados dos Estados Unidos sobre a África, propôs que se procurasse aproveitar essa oportunidade, mas não foi ouvido. Ao invés disso, o governo americano decidiu por uma intervenção armada, convocando para isso as forças armadas do país vizinho e tradicional inimigo – a Etiópia.

A Etiópia é um “bastião cristão” na “guerra das civilizações” criada pelos neoconservadores. Em acordo com a CIA, o governo da Etiópia assegurou que a Somália estava dominada por islâmicos terroristas, jihadistas, que se constituíam em uma ameaça para toda a região. Em dezembro de 2006, com o apoio e a participação de membros das forças especiais americanas, a Etiópia invadiu a Somália e, em uma semana, expulsou o governo islâmico praticamente desarmado de Mogadíscio. Para “extirpar” o movimento islâmico, os Estados Unidos responsabilizaram-se por ataques aéreos e por ataques com mísseis originados de seus navios de guerra.

Os islâmicos entraram na clandestinidade, mas, algumas semanas depois, retomaram a insurreição. E com força. E com o apoio da população. O governo estabelecido em consequência da invasão etíope era constituído de senhores de guerra. Rapidamente, perdeu o apoio dos clãs poderosos que poderiam ser seus aliados. No início de 2009, foi estabelecido um novo “governo de transição” – o décimo quarto governo desde 1991 – desta vez presidido por um jovem islâmico moderado. Mas esse governo está sendo gradualmente encurralado em um pequeno território em Mogadíscio. Os islâmicos – agora os mais radicais mas nem por isso “terroristas” – já controlam a terceira cidade do país, Baidoa, e ali estabeleceram a chária. Eles estão mais bem armados, e fortalecidos em seu intento de criar um Estado na Somália, usando o islã como fator de coesão e a chária como lei. Seus adversários são os mesmos de sempre: os senhores de guerra e os Estados Unidos.

O uso da religião pelos movimentos nacionalistas para unir o povo em torno da bandeira nacional para modernizar seu país é antigo. O primeiro povo que construiu uma nação, organizou um Estado, e afinal se constitui como estado-nação moderno, industrializado, foi a Grã-Bretanha. Lembremos que nos albores da sua formação nacional, no século XVI, Henrique VIII estabeleceu para sua nação uma religião nacional, a Igreja Anglicana. Esta estratégia foi repetida por praticamente todos os movimentos nacionalistas que buscavam formar seu Estado e criar em um território um estado-nação. Quase sempre tiveram que usar da violência para derrotar os poderosos regionais e para conseguir a libertação nacional. Mas essa violência não justificava que fossem chamados de fundamentalistas ou de terroristas; nem que se falasse em guerra de civilizações. Porque não estavam fazendo outra coisa senão seguir a regra política fundamental do desenvolvimento capitalista ou da modernização: cada povo busca se constituir como nação, assenhorear-se de um território e nele estabelecer um Estado moderno, formando, assim, um estado-nação ou país soberano.

Esta tarefa foi feita inicialmente pelos povos dos países hoje ricos. Mas, depois, vem sendo copiada pelos demais países em desenvolvimento, que, entretanto, enfrentam uma dificuldade maior, porque agora contam com a oposição dos países ricos cujos interesses estão associados à manutenção do atraso. Em certos casos, porém, como é o caso da Somália, essa oposição se transforma em hostilidade devido a considerações de segurança nacional das grandes potências a meu ver equivocadas. Na era da globalização o controle imperial de fontes de matéria-prima faz pouco sentido, e confundir movimentos nacionalistas com terrorismo antiamericano do tipo representado pelo pan-arabismo da Al Qaeda, menos ainda.

Os povos muçulmanos que vivem nessa região não utilizaram inicialmente a religião como forma de união nacional. Pelo contrário, o primeiro grande líder nacionalista muçulmano a liderar uma revolução nacional em seu país, Mustafá Kemal Ataturk, estabeleceu um modelo de revolução secularista na Turquia nos anos 1920. O êxito dessa experiência levou à sua reprodução em muitos países. Gamal Abdel Nasser, no Egito dos anos 1950, foi provavelmente a experiência mais interessante nesse sentido, mas houve muitas outras, algumas cedo esmagadas pelas potências imperiais, como foi o caso de Mohammed Mossadegh, no Irã, quando, nos anos 1950, nacionalizou a produção de petróleo, outras mais duradouras mas igualmente fracassadas como a do partido bahatista no Iraque, ou então que sobrevivem com dificuldade, como o regime também bahatista na Síria e o regime militar na Argélia. Assim, ainda que por diversas razões, a estratégia secularista afinal fracassou. Por isso, quando, no final dos anos 1970 um movimento islâmico no Irã derrubou o governo corrupto e desmoralizado do xá que ali havia sido posto pelas potencias ocidentais, estava sendo definido um novo modelo de revolução nacional no qual a religião era usada para garantir a coesão nacional. Como os novos governantes adotavam convicções e práticas religiosas radicais, foram identificados como fundamentalistas – e de fato o eram – mas o que o Ocidente se recusou a compreender foi que essa não era e não é a característica principal dos movimentos islâmicos modernos.
 Estes não são movimentos religiosos, mas políticos. O objetivo não é converter os povos, mas estabelecer verdadeiros estados-nação em seus países tradicionais porque dominados por poderes locais e semicoloniais, porque profundamente dominados pelas grandes potências aliadas aos grupos locais poderosos. Em muitos países esses aliados eram respeitáveis oligarquias conservadoras; na Somália, porém, chegamos ao limite: a aliança do império é com os senhores de guerra.o país mais perigoso do mundo.

15 de março de 2010.

*Luiz Carlos Bresser-Pereira é professor emérito da Fundação Getúlio Vargas.