“O impulso do Fórum Social Mundial oferece um novo alento ao abrir caminho para revigorar o pacto entre os novos movimentos sociais e as esquerdas.”

Por Hamilton Pereira (Pedro Tierra)*

Recorro a uma constatação singela, registrada há algum tempo por Hobsbawn, para iniciar este diálogo. O século XX se extinguiu como começou: engendrando utopias. E indagar: para onde aponta o século XXI? Contemplada, assim, por dois prismas simultâneos, essa constatação pode nos ajudar a compreender o que ocorreu em janeiro dos últimos anos em Porto Alegre e Mumbai: um cristal que recolhe a luz das experiências e da busca de alternativas contra o império da cinza – “o pensamento único” – para multiplicá-la pelos infinitos vértices e planos capazes de ferir, com as armas da cor, as nossas retinas e os nossos sonhos. A generosidade, entretanto, para não sucumbir, não pode obscurecer o permanente exercício da crítica.

Para o primeiro Fórum Social Mundial, a algum espírito sensível ocorreu a idéia de que as pessoas trouxessem consigo pedras dos seus lugares de origem, dos seus continentes. Depositadas sobre o recanto de um jardim à entrada da PUC-RS, formaram outro jardim de enigmas: um mosaico de pedras e sentidos. Devo me aproximar das pedras desse mosaico imperfeito, para dialogar com elas. São pedras de diferentes idades e formas. Trazem inscritos na superfície os códigos do vasto tempo mineral, do esmeril dos ventos e, também, dos frágeis tempos humanos. Pensá-las como testemunhos da aventura imemorial dos povos que as converteram em alicerces, paredes, ladrilhos, casas, estradas, monumentos. Pensálas como signos das vontades impressas em cada experiência que representam. E nas mãos de quem as trouxe até aqui, vindas do Sul e do Norte; da sensibilidade e da compaixão; das lutas contra a fome e o horror da guerra; da solidariedade; vindas do combate à indiferença diante da dor do outro e das antigas cartografias que nos ensinaram a precária noção de um planeta precário: os contornos da Austrália, da Ásia, da Europa, da África e da América percebidos como lugares tocados – freqüentemente de modo devastador – pelas mãos humanas. Examiná-las sob essa nova luz que escapa pelas frestas da lógica do mercado. Uma luz ao sul das engrenagens que trituram identidades culturais, línguas, povos, nações; de modo limpo, asséptico e silencioso. E na velocidade dos computadores.

Percorrido o tempo – breve e trágico – de um século, afastamo-nos das utopias unificadoras, redutoras e, portanto, autoritárias. Todos conhecemos o perigo que reside na alma dos(as) utopistas possuídos(as) pelas absolutas verdades que professam. Aprendemos a ler nas pedras inscritas do século XX até onde nos levam essas utopias: a Auschwitz ou ao gulag. Independente das forças políticas que a governem, Porto Alegre se desenha como a cidade da invenção, da reinvenção de utopias a partir da crítica, da pluralidade, da diversidade, da infinita multiplicidade dos nossos enfoques.

Refletindo sobre modernidade e romantismo, num pequeno texto incluído no volume A outra voz, Octavio Paz, severo crítico das utopias socialistas, nos adverte: “A utopia é a outra face da crítica e só uma idade da crítica pode ser inventora de utopias: o buraco deixado pelas demolições do espírito crítico é sempre ocupado pelas construções utópicas. As utopias são os sonhos da razão. Sonhos ativos que se transformam em revoluções e reformas”. Ele se referia às grandes utopias do século XVIII que resultaram da implacável crítica que as precedeu – convertida em ação revolucionária em 1789 –, que, por sua vez, seriam alimentadoras da crítica ainda mais radical do movimento operário e socialista do século XIX.

A crise das utopias no fim do século XX é filha da anemia crítica das esquerdas ao processo avassalador e totalitário – globalitário, na expressão de Milton Santos – do capitalismo financeiro, na economia, do mundo unipolar na dimensão político-militar e da dissolução das identidades, na cultura. Em parte porque as esquerdas, nos países centrais – mas também nos países periféricos… –, converteram- se em porta-vozes das classes trabalhadoras incluídas. O vigor das utopias geradas a partir de experiências como o Fórum Social Mundial resultará, salvo engano, de sua capacidade de suscitar dois movimentos: radicalizar a crítica ao sistema imperial vigente e restabelecer os laços entre os(as) excluídos(as), em escala global. A realização do Fórum em Mumbai, em janeiro de 2004, propiciou um momento fecundo em ambas as direções: incluiu a Ásia de modo definitivo na agenda do Fórum e trouxe para o centro do debate a problemática da guerra que atormenta quase dois terços da humanidade, naquele continente. A descentralização do Fórum aprovada em Porto Alegre nos últimos dias de janeiro aproxima “invenção política”, que é o FSM, de seus e suas protagonistas em cada continente. Em suma, a necessária radicalidade da crítica não deve obscurecer a dimensão da generosidade capaz de incorporar num novo projeto humanista a imensa legião dos(as) condenados(as) da terra.

Construção quotidiana do impensável

Neste continente de paradoxos, neste país de paradoxos, pensando naquela sociedade fechada, na virada da década de 1970 para a de 1980, não é demais lembrar a uma frase do Che: “A revolução acontece quando o impossível invade o quotidiano”. Para os argumentos que desejo alinhar, julgo necessário um registro das circunstâncias históricas que cercaram o nascimento do Partido dos Trabalhadores, no Brasil.

Ao forçar as portas do sistema político brasileiro, o PT constituiu-se simultaneamente num fato político e cultural. Político, porque recolheu a indignação e as esperanças de vastas camadas populares oprimidas e deu a elas a materialidade da ação coletiva contra a ditadura militar, já em declínio. Cultural, porque rompia com a tradição autoritária do comportamento das elites e da relação entre as classes sociais e se afirmava a partir de um exercício radicalmente democrático.

O movimento operário do ABC, que lhe deu o berço e o impulso, no fim da década de 1970, foi o sinal definitivo do esgotamento da ditadura militar. Revelou aos olhos de um país castigado durante mais de duas décadas de perseguição, de exílio, de delação, de tortura, de assassinatos de opositores políticos e de tentativas malsucedidas de resistência armada, nas ruas e nos campos, ou de resistência pacífica dentro do parlamento consentido, um sujeito social novo. Emergia com insuspeitada capacidade de mobilizar uma importante massa de trabalhadores até ali imperceptíveis dentro do seu macacão azul. Imperceptíveis até o momento em que cruzaram os braços num movimento grevista que haveria de sacudir o país.

Por outro lado, a emergência dos movimentos sociais de trabalhadores e trabalhadoras estabeleceu um ponto final na diáspora de duas décadas, na esquerda brasileira. De algum modo, ela antecipava a crise dos partidos socialistas e comunistas tradicionais, não por uma inspiração intelectual e profética, mas pela surda determinação de uma realidade social que exigia a fala de um novo personagem no cenário político do país. É possível dizer que vivíamos um processo de refundação da esquerda no Brasil, sob o impulso do novo movimento operário que infundiu nela a energia social capaz de livrá-la do gueto para onde fora empurrada pelo Estado policial.

Em raros momentos da história do Brasil assistimos a algo semelhante. O movimento operário do ABC e a reação em cadeia que ele desatou em diferentes regiões do país surpreenderam, de maneira fulminante, a ditadura militar, que se perguntava: como pôde se gestar tamanha força nos alicerces da sociedade sem que os controles policiais acusassem seus movimentos? A estupefação da esquerda tradicional não foi menor. Como era possível emergir um movimento daquelas dimensões espontaneamente, sem a fecundação prévia da teoria revolucionária, sem a mão organizadora dos partidos? Tudo indica que a realidade da classe operária brasileira e sua capacidade de organização, naquele momento, eram mais fecundas e mais revolucionárias que a teoria dos partidos da esquerda tradicional.

Na raiz de todo o processo se encontravam as políticas econômicas do regime militar que resultaram na concentração de grandes plantas industriais no sudeste do país e na mobilização da mão-de-obra indispensável para fazê-las produzir. São importantes os registros de algumas características originais dessa experiência de construção partidária, num país marginal e desmesurado – no seu potencial e nos seus problemas – no último quarto do século XX, para a compreensão das suas possibilidades nas relações com um fenômeno novo: o Fórum Social Mundial.

O Partido dos Trabalhadores constituiuse, assim, no estuário de uma longa busca. Atraiu uma multiplicidade de experiências de lutas vindas de diferentes gerações de militantes e de várias vertentes da complexa rede de organizações populares que ganharam contorno sob a ditadura: o novo sindicalismo; as comunidades eclesiais de base, da Igreja Católica; as pastorais populares ligadas à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil que cumpriram um destacado papel na resistência ao regime; as organizações da esquerda clandestina que haviam tentado a resistência armada – ou militantes dispersos(as), remanescentes delas –; e setores de intelectuais que, dentro das universidades ou em centros de pesquisa, produziam um pensamento de resistência de diversos matizes à ditadura.

De pronto, somaram-se a eles, na construção da proposta do PT, os movimentos de trabalhadores e trabalhadoras do campo, renascidos com o apoio das pastorais populares e de alguns grupos da esquerda clandestina que haviam construído, em diferentes regiões do país, as oposições sindicais ou fundado novos sindicatos e movimentos urbanos – movimentos comunitários, associações de bairro, movimentos contra a carestia etc. Por fim, a proposta atraiu personalidades da resistência que atuavam, sob a legenda do Movimento Democrático Brasileiro, dentro do parlamento e grupos de militantes que se deslocaram dos antigos partidos comunistas.

Naquele momento, a sociedade fechada, mantida pelo Estado policial, estreitara de tal modo os limites da ação coletiva de cidadãos e cidadãs que mesmo a luta por reivindicações específicas em torno de reposição salarial ou melhores condições de trabalho adquiriu uma dimensão política inescapável e de contestação ao regime, como se dizia então. A ditadura havia gerado seu próprio impasse e o sujeito social que haveria de destruí-la: gestara, pelo projeto de desenvolvimento assentado sobre as grandes plantas industriais do setor automotivo, uma nova classe operária que se despedira de suas heranças rurais, ganhara uma desconhecida autonomia de ação e, de repente, se dava conta do papel fundamental que desempenhava na produção da riqueza do país. E revelou-se capaz de ser o ponto de convergência dos interesses, não raro contraditórios, de vastos setores da sociedade brasileira.

Essa nova classe operária adquiriu, ainda que de maneira difusa, a consciência de estar incluída no setor de ponta da economia, mas se encontrava excluída das decisões políticas do país. O passo seguinte era inevitável: a construção de um conjunto de instrumentos de ação sindical e política capaz de dar conseqüência aos anseios de liberdade e participação das classes trabalhadoras e dos setores médios da sociedade, com energia suficiente para afirmar-se como força política independente, em contraposição – no programa e no método – aos partidos conservadores tradicionais ou mesmos aos partidos comunistas clássicos.

Sedução da esfinge

Passadas duas décadas, desde o retorno ao regime representativo, nenhum organismo de natureza política ou social, religiosa, civil ou militar escapa à dilaceração em que se encontra a sociedade brasileira. O volume, a qualidade e o ritmo das mudanças que ocorreram nos últimos 20 anos aprofundaram o abismo que já separava pessoas ricas de pobres no país. Esse processo ocorreu simultaneamente com a queda da ditadura e os avanços democráticos que conquistamos. Em outras palavras, a democracia representativa, para milhões de brasileiros e brasileiras, veio acompanhada pelo aprofundamento da miséria. Isso, de algum modo, estimula, nos setores sociais excluídos, simpatias por soluções populistas de direita ou mesmo a busca de amparo sob o teto das políticas clientelistas das velhas oligarquias regionais revigoradas.

A miséria econômica de milhões de trabalhadores e trabalhadoras fatalmente incide sobre a ação dos seus movimentos sociais, debilitando-os, e sobre a sociedade política, retirando- lhe legitimidade. Abriu-se, assim, na década de 1990, uma crise de legitimidade tanto nos movimentos sociais como nos partidos. Sob a pressão das políticas neoliberais que resultaram particularmente nas altas taxas de desemprego, no aviltamento dos salários, os movimentos perderam consideravelmente sua capacidade de mobilização e se limitaram a uma defesa quase formal das conquistas anteriores. Na contramão desse processo, nutrindo-se da energia dos movimentos da década anterior, as esquerdas ocuparam sistematicamente espaços cada vez mais amplos na disputa política do país. Ampliaram suas bancadas parlamentares, assumiram governos estaduais, mais de quatro centenas de prefeituras, entre elas algumas das mais importantes cidades do país, e, num processo eleitoral inédito no Brasil, elegeram com votação esmagadora seu principal líder – Luiz Inácio Lula da Silva – presidente da República. De certo modo, o PT encarnou o grito organizado dos(as) excluídos(as). Ofereceu-lhes uma voz, entre outras vozes, na institucionalidade política estabelecida. Essa forte presença dentro da moldura institucional trouxe consigo uma inescapável ambigüidade para um partido que busca manter seus laços com as lutas sociais que lhe deram origem.

A inclusão do PT no sistema político brasileiro, contudo, não deteve, ao longo da década de 1990, a usina de produzir exclusão social. Entraram em cena os(as) novos(as) excluídos(as). E são milhões. Não se encontram inseridos(as) em nenhum setor importante da economia. Nem da política. Com exceção do momento do voto. Vivem, para utilizar um eufemismo, na informalidade, como se diz por aqui. São invisíveis. A sociedade só percebe sua existência quando transgridem. Então, lança sobre eles(as) o fisco e as operações policiais. Vão constituindo assim, a cada dia, fora dos muros de uma sociedade fraturada, as classes perigosas. Primeiro são os(as) negros(as) e os(as) pobres percebidos(as) com certo incômodo, mas tolerados(as) com um misto de desprezo e condescendência; depois, como alvo de políticas compensatórias; mais tarde, como alvo das armas da polícia.

Lançados(as) para fora dos muros dos condomínios, das cercas dos latifúndios, do amparo das leis, é possível imaginar a sorte que espreita os(as) excluídos(as) dentro de alguns anos, caso o governo Lula não consiga interromper esse processo movido pela insensibilidade da lógica de acumulação do capital financeiro, pela cegueira da inércia e do conservadorismo das políticas econômicas e pela falta de imaginação política das esquerdas no sentido de libertar-se das amarras do modelo neoliberal que herdou.

À medida que se aprofundou o abismo entre a economia formal e informal; entre os os(as) trabalhadores(as) de uma e de outra; entre as pessoas que sobrevivem, ainda que precariamente, num posto de trabalho e as que amargam o desemprego; entre as representadas; entre as que elegem e as que são eleitas; entre as que moram e as que só têm o viaduto; entre as que comem regularmente e as que disputam com os ratos o lixo das grandes cidades para se defender da fome, os movimentos sociais e o Partido dos Trabalhadores passaram a ser acuados pela esfinge do Estado brasileiro assentada sobre os alicerces da exclusão social.

Essa esfinge, velha de cinco séculos, tem demonstrado enorme capacidade para destruir a sangue e fogo, ou para digerir imperceptivelmente, as mais autênticas e autônomas formas de organização social e política dos(as) excluído(as). Assim foi com a rebelião dos(as) escravos(as) negros(as) em Palmares, durante o período colonial; dos(as) sertanejos de Canudos e do Contestado, na Primeira República, ou com as pequenas rebeliões camponesas do último quarto do século XX, na Amazônia; assim tem sido com todas as tentativas dos partidos populares que puseram os pés na institucionalidade e acabaram por fazer da permanência nela seu maior objetivo. À medida que avançamos para dentro de um território hostil, que modifica constantemente seus contornos e regras, não podemos deixar de ter os olhos fixos nas classes perigosas para escapar do deslumbramento e da sedução da esfinge. É preciso estar atento ao fato de que a adoção do discurso e dos métodos políticos das elites não nos levará a outro destino senão ao dos(as) sócios(as) subalternos(as) de um sistema que desejamos combater. A chamada sociedade da informação introduziu definitivamente um conjunto de exigências ético-culturais na sua pauta como condição para respaldar a ação dos partidos e movimentos sociais.


Retorno à multidão

De como resolver aquela ambigüidade – resultante de sua presença simultânea nos movimentos sociais e na condução de governos nos municípios, nos estados e agora na União – dependerá a profundidade das transformações propostas pelo Partido dos Trabalhadores e pela frente que ele lidera, para a sociedade brasileira. Não é demais lembrar que o partido disputou pela quarta vez a Presidência da República e venceu. Venceu e convenceu o povo brasileiro das necessidades da mudança no modelo econômico, social e cultural de desenvolvimento.

O Fórum Social Mundial inquire e apresenta novos desafios para essa árdua construção democrática conduzida por socialistas no Brasil. Aguça a sensibilidade e amplia a percepção para a pluralidade de temas novos que a lógica globalitária lança para as esquerdas. E abre perspectivas inéditas de equacionamento, em escala global, para as grandes questões vividas pelos(as) excluídos(as) em escala global. Não por acaso o presidente Lula empunhou a bandeira do combate à fome e à miséria como prioridade de governo.

O impulso do Fórum Social Mundial oferece um novo alento ao abrir caminho para revigorar o pacto entre os novos movimentos sociais e as esquerdas. Contribui para evitar a armadilha, sempre presente, que deseja aprisioná-las na moldura de partidos puramente de representação como seus ancestrais: os partidos socialistas e sociais-democratas. No plano da formulação estratégica das forças de esquerda, no Brasil, o desafio que nos propõe o Fórum Social Mundial traduz-se em: discernir os novos caminhos pelos quais passa a energia transformadora da sociedade – os seus novos atores – que já não são os mesmos de 20 anos atrás; de compreender-lhes a pulsação; de nomear com clareza quais são as suas contradições mais profundas e aglutinar as forças políticas interessadas em – e capazes de – oferecer a base social para as transformações demandadas pelos(as) “novos(as) excluídos(as)”.

Uma experiência concreta, entre outras, encarna essa busca: a experiência do Orçamento Participativo, em Porto Alegre e outras cidades brasileiras governadas por frentes de esquerda. Abre caminho para fixar um novo paradigma das esquerdas nas relações institucionais, a partir de um processo consistente de participação da cidadania. Numa década de predomínio das políticas neoliberais, como foi a década de 1990; de uma ideologia privatista; do individualismo e consumismo como valores sociais determinantes; da produção industrial da indiferença, as esquerdas brasileiras vieram construindo um processo de contra-hegemonia assentado sobre valores opostos: a solidariedade, a ação coletiva, a participação popular, o exercício de direitos, o reforço da esfera pública, a democratização das relações Estado–sociedade.

Uma experiência valiosa, não apenas por navegar na contracorrente do pensamento único, mas por representar “a superação, de maneira contemporânea, da crise do socialismo burocrático, respondendo de maneira criativa e original à principal política da decadência e da derrocada do Leste Europeu, ou seja, a relação autocrática do Estado com a sociedade” (GENRO, Tarso; SOUZA, Ubiratan de . Orçamento Participativo. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1997). Essa experiência, entre outras, indica um caminho proposto pelas esquerdas brasileiras para estabelecer laços consistentes com os(as) “novos(as) excluídos(as) e para combater a indiferença das classes trabalhadoras incluídas, no caso brasileiro, com o poderoso estímulo do exercício da cidadania”.

“Outra contribuição universal do Orçamento Participativo é a criação de uma esfera pública não estatal.” (Id., ibid.). A sociedade esboça instrumentos democráticos de controle do Estado à medida que constitui de maneira autônoma, num exercício de democracia direta, um processo de co-gestão da cidade com o governo eleito e a Câmara de Vereadores. Não elimina, nem mesmo diminui as atribuições da Câmara de Vereadores, que permanece como espaço legítimo da democracia representativa, ao contrário, valoriza esse espaço fixando novos critérios de relação entre as pessoas eleitas e cidadãos e cidadãs protagonistas do processo.

A experiência do Orçamento Participativo, com os novos conteúdos que aporta ao debate sobre o rumo das esquerdas, nos aproxima deste fato novo, o Fórum Social Mundial. A própria trajetória dos partidos e suas relações com os movimentos sociais, ao superar as antigas concepções de subordinação dos movimentos, mantém pontos de contato ponderáveis com a matriz de pluralidade ideológica, autonomia de ação e diversidade temática que caracterizam o Fórum Social Mundial. Faz-se agora necessário o esforço para formular as múltiplas perspectivas de ação, em escala global, que preencham o calendário de lutas, no quotidiano de cada movimento social. Em outras palavras, é preciso encontrar as formas permanentes de ação quando deixamos o “estado de multidão” em Seattle, Washington, Praga, Gênova, Florença ou Porto Alegre.

Em algum momento, Boaventura de Sousa Santos, importante intelectual português, colaborador do Fórum Social Mundial, definiu como um espectro bicéfalo o inimigo que enfrentamos:
A sua primeira cabeça é a eventualidade de, à medida que a democracia perde a capacidade de distribuir riqueza social, estarmos a caminhar para sociedades que são politicamente democráticas e socialmente fascistas. O novo fascismo não é, assim, um regime político; é antes um regime social, um sistema de relações muito desiguais que coexiste cumplicemente com uma democracia política socialmente desarmada. A segunda cabeça do espectro é a tentação hegemônica de se pensar que a primeira cabeça do espectro pode ser exorcizada nos países ricos mediante a contínua e crescente exploração dos países pobres. Esta segunda cabeça é a globalização neoliberal e é a mais insidiosa porque, no deserto de alternativas por ela criado, se arroga credivelmente ser a única solução do problema que ela própria constitui. (Revista Visão, edição de 2 de maio de 2002).

Produção industrial do inconformismo e aprendizado da nova insurreição

O Fórum Social Mundial constitui-se, em âmbito internacional, no fato político-cultural mais significativo para as esquerdas, desde a queda do Muro de Berlim. No Brasil, por exemplo, a capacidade que o governo Lula demonstrar de introduzir novos elementos na agenda da esquerda e os desdobramentos que vier a produzir dentro e fora do país poderão redimensionar esse fato e conferir a ele um novo significado. O Fórum Social Mundial marca, a seu modo, um momento de convergência diante da ofensiva avassaladora do neoliberalismo. E demonstra uma capacidade insuspeitada de modificar a pauta do debate mundial ao polarizar as atenções, já no seu momento inaugural com o Fórum Econômico Mundial, de Davos. Não é ocioso lembrar que a agenda de Davos, em janeiro último, dispensou uma parcela importante de tempo ao debate em torno do combate à fome e à miséria no mundo. Incorporando, nos seus termos evidentemente, uma agenda que, antes da emergência do FSM, era olimpicamente ignorada.

Chama a atenção de quem examina a trajetória das esquerdas brasileiras ao longo dos últimos 20 anos um aspecto curioso: apesar de terem se afastado das estratégias de transformação social por meio de rupturas (guerra de guerrilhas, guerra revolucionária, insurreição popular) e, portanto, adotado o processo de acumulação de forças combinando lutas sociais e ocupação de espaços institucionais, não pautaram com o devido relevo o debate em torno do processo e dos meios para a conquista da hegemonia das idéias na sociedade e o papel que desempenha, nessa disputa, a formulação de um projeto cultural. A sociedade brasileira herdou da ditadura militar (1964–1985) um vasto aparato de telecomunicações que foi concebido naqueles anos como uma eficiente rede de “integração nacional”, para recuperar a linguagem da época, e como um sistema de controle social que pode ser expresso nesses dados da década de 1980:
A Rede Globo chegou então a 1982 – ano da primeira eleição direta para governadores após 1964 – como a quarta maior rede de televisão do mundo, composta de seis emissoras geradoras, 36 afiliadas e mais cinco estações repetidoras, o que dava um total de 47 emissoras, cobrindo 3.505 dos 4.063 municípios brasileiros, ou seja, 93% da população do país e 99% dos 15,8 milhões de domicílios com TV existentes naquela data. (LIMA, Venício A. de. Mídia, teoria e política. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2001).

Desejo fazernos refletir sobre o controle quase totalitário exercido pelo regime militar e o complexo construído à sua sombra sobre uma sociedade, em grande medida, iletrada. Ocorre que as elites liberais à frente da democracia representativa que sucedeu a ditadura apoderaram-se desse complexo e, sem modificá-lo substancialmente, deram-lhe funcionalidade para a nova fase que se abria nas disputas políticas no Brasil. A expressão “totalitário”, que mencionei acima, não se refere, por suposto, apenas à cobertura de 93% da população do país, mas, além disso e sobretudo, à quase impossibilidade de se veicular um discurso substantivamente diverso do discurso oficial.

Essa matriz evoluiu ganhando complexidade nos anos mais recentes, de um lado pela conjugação das telecomunicações com os meios de comunicação de massas e com a informática, porque, a partir da “revolução digital”, elas não podem mais ser tratadas como áreas distintas. De outro lado, na dimensão propriamente política, diante do impulso do movimento de massas que emergiu no fim da década de 1970 e início da década de 1980, de uma nova correlação das forças políticas nas lutas sociais do país, do desmoronamento do regime militar e da necessidade de um novo pacto das elites. Aquele aparato – agora já não representado apenas pelas Organizações Globo, mas dividido com outras redes de informação e entretenimento – passou a cumprir novos papéis.

Num país de instituições frágeis e de partidos políticos mais frágeis ainda, o poderoso complexo de comunicação de massas – sobretudo a TV – foi posto em movimento a partir da credibilidade construída diante da sociedade e passou a atuar diariamente não apenas como indutor de hábitos de consumo, mas como condutor das opções políticas de cidadãos e cidadãs, de tal maneira que hoje ocupa “[…] um lugar inconteste de ‘intelectual orgânico’ da sociedade brasileira (o que) não deixa de ter relação com a crise real desses outros intelectuais coletivos que são os partidos atualmente legalizados, e também com a crise da classe intelectual e do pensamento crítico”. (MATTELART, A.; MATTELART, M. Carnaval de Imagens: a ficção na TV. São Paulo: Brasiliense, 1989). Sofisticou-se em certa imprensa brasileira a prática de vender opinião injetada no conteúdo mesmo da notícia de tal modo que o(a) cidadão(ã) – ou o(a) consumidor(a) – é agressivamente conduzido(a) a preocupar- se com uma agenda selecionada pelos meios e recebe o discurso permeado por juízos do veículo que consome, sobre os fatos do dia ou da semana.

Mais do que compreender intelectualmente, as elites brasileiras concertaram sua ação para o novo período partindo do entendimento de que o poder político depende relativamente pouco, exceto em tempos de crise extrema, da intervenção coercitiva do Estado. Ele se apóia, ao contrário, na força de uma visão de mundo, num sistema de pressupostos e valores sociais aceitos como ‘senso comum’ que legitimam a distribuição do poder (hegemonia). […] O Estado desempenha um papel na divulgação da visão de mundo, mas o sistema cultural legitimador, decisivo para o poder político, é mantido principalmente por instituições privadas, autônomas.. (HALLIN apud LIMA, op. Cit.).

Idéia de ação cultural revolucionária

Esse complexo painel que serve de pano de fundo para as disputas pela hegemonia na sociedade brasileira exige das esquerdas não apenas o esforço para a compreensão objetiva do processo, mas, igualmente, para conferir certo grau de convergência na definição da agenda dos problemas do país, considerando que não é possível nem desejável uma unificação dos enfoques. Essa diversidade não significa necessariamente fragilidade, ao contrário, pode ser uma riqueza. Excluídas do grande negócio das comunicações no país, as esquerdas brasileiras não dispõem de um único meio de comunicação de alcance nacional. O esforço deve orientar- se em expandir e qualificar cada vez mais no âmbito das comunicações para alcançar a maior capilaridade possível na base da sociedade e, ao mesmo tempo, disputar os espaços formais na “grande mídia”.

A disputa pelo controle democrático dos meios de comunicação supõe uma resposta sobre o que desejamos dizer à sociedade. Diluir as diferenças entre o que propõe a direita e as esquerdas tem levado essas últimas a colherem sucessivas derrotas, no Sul e no Norte. Os processos políticos que protagonizamos no continente, em particular na América do Sul, indicam a existência de um vasto e profundo anseio de mudanças na sociedade. Os processos eleitorais que resultaram na vitória de Lula, Kirchner e Tabaré Vasquez; a resistência do povo venezuelano ao golpe contra Chávez e o referendo que se sucedeu; a aproximação com Lagos, no Chile, e a proposta de constituição da Comunidade Sul-Americana de Nações reconfiguram o perfil das democracias na América do Sul. Vivemos um momento privilegiado no continente, arduamente construído pelas esquerdas, sob severas condições impostas por Washington. Esse processo revela que as esquerdas souberam evitar a tentação do gueto, o isolamento e a derrota a que nos levaram as sucessivas tentativas das soluções de força. Resta enfrentar o gigantesco desafio de governar sem abandonar os compromissos com as classes perigosas que nos deram raiz, sem perder o norte que aponta para a construção de sociedades democráticas e soberanas. Resta investir todo o potencial dos nossos povos para formular um modelo de desenvolvimento sustentável e socialmente justo. Resta materializar em ações de governo a busca secular da integração efetiva na economia, na sociedade e na cultura, que alimentou o sonho dos(as) Libertadores.

Num período histórico em que os(as) conservadores (as) buscam diluir as diferenças, para as esquerdas torna-se crucial explicitá- las como condição de reforçar a confiabilidade no programa que apresenta. A ousadia de formular uma crítica impiedosa aos fundamentos do pensamento único deve ser secundada pela necessária recuperação das utopias que nutriram as lutas dos setores populares nos últimos 150 anos. Se, hoje, as sociedades apresentam suas demandas e, sobretudo nos países do Sul, exigem urgência nas soluções, desejam também conhecer os contornos do projeto de longo prazo que oferecemos a elas. Em suma, a exigência ético-cultural se instalou na medula do processo de transformação sonhado pelos (as) novos(as) excluídos(as), que pressentem, ainda que de modo impreciso, que não haverá lugar para eles(as) sem um profundo processo de regeneração social, em escala planetária.

Num mundo em que a palavra radical foi abolida dos dicionários da política, cabe às esquerdas apontar os caminhos que nos reconciliem com a radicalidade, não apenas no exercício da crítica, mas, sobretudo, no que se refere à subversão da lógica do processo que diariamente reproduz as condições materiais da exclusão social, tanto no interior das fronteiras nacionais como nas relações entre o Norte e o Sul. Restabelecer, na pauta do debate mundial, outra tábua de valores que balizem perspectivas diferentes para o desenvolvimento humano é a tarefa central que nos exige a “nova insurreição”.

Retorno à reflexão de Venício A. De Lima comentando o grande educador brasileiro Paulo Freire: A idéia de ação cultural revolucionária em Freire precisa ser compreendida no contexto do que ele considera o problema central da segunda metade do século XX: a desumanização. Este fato, segundo ele, constitui a libertação como o objetivo fundamental a ser atingido pela ação cultural. A desumanização se caracteriza por ser um processo “que marca não apenas aqueles cuja humanidade foi roubada [os oprimidos], mas também os que a roubaram [os opressores]”. Assim, no processo de libertação (ação cultural revolucionária) “os oprimidos não devem, ao procurar reconquistar sua humanidade, se transformar, por sua vez, em opressores dos seus opressores, mas sim restaurar a humanidade de ambos”. Freire identifica a libertação como “o processo [ou luta] pela afirmação dos homens enquanto pessoas”. Para ele “a grande tarefa humanística e histórica dos oprimidos” torna-se então a de “libertar- se a si próprios e seus opressores” por meio de um permanente processo histórico de libertação. (LIMA, op. Cit.).

Carta do Sul

Este texto, de minha autoria, foi lido pela primeira vez no ato de encerramento do 2º Fórum Social Mundial, em 2002, em Porto Alegre, ao lado do texto do escritor português José Saramago.

Regressamos como os pássaros migradores. Sabemos que Davos é branca. Porto Alegre, um arco-íris, onde pousar para beber a multiplicação das cores que inventamos. Aprendemos que Davos é a ordem. O silêncio branco. Nova York, o poder e o medo. Porto Alegre, a liberdade. A palavra tecendo sonhos, como agulhas urdindo um tapete sem desenho prévio.

Somos filhos da vertigem. Desse impulso de extrair do impossível mundo das cifras e da ferocidade capitalista, um outro mundo possível… As mãos que trazemos tatearam noites e labirintos. Não moldam no ar o frágil desenho da cidade futura. Sabem da terra proibida pelo arame; do trabalho escasso; do pão escasso; da fome. Recolhem das ruas do mundo destroços da alegria, da paixão, da dor, da exploração, da violência, do êxodo de tantos, dos sonhos arquivados da multidão, soterrados pela demolição dos direitos, da resistência e, novamente, da alegria e da paixão e propõem um novo mosaico. Um novo mosaico possível…

Morremos em Eldorado dos Carajás; a caminho de uma escola em Ramallah; no sonho que anoitece sob a burka de uma mulher em Mazar-i-Sarif; numa clareira na selva colombiana; em Gênova, no corpo de Carlo Giuliani; ao pé das Torres Gêmeas, em Nova Iorque; numa esquina em Kandahar. E renascemos nas ruas rebeladas de Buenos Aires e Santo André. Para renascer nascemos… Somos centelhas de acender outras possibilidades.

Deixamos de parte as cifras, as taxas de juros, o comportamento das bolsas de valores: esse mundo estéril e homicida. Fixamos os olhos e o coração indignado sobre os dramas que nos afligem: a fome, as guerras, a exclusão social, a limpeza étnica, o desemprego, a Aids, a morte dos rios, a cinza das florestas, a concentração galopante da riqueza, a destruição das conquistas dos trabalhadores, o controle da informação, a lógica única do pensamento único. Despidos de toda humanidade, em duas gerações testemunhamos a espantosa morte de um continente: a África. Viemos nos despedir da indiferença.

Trazemos a vocação do diverso. Do libertário. A vocação do humano. Recusamos a branca ordem de Davos, o poder e o medo de Nova York e suas siglas: OMC, FMI, Alca, Otan. Somos a desencontrada polifonia das vozes do Sul e do Norte que rejeita a marcha fúnebre do mercado. A solidariedade é o ar que nos sustenta as esperanças. O mesmo alento que prolonga o vôo dos pássaros migradores. Somos herdeiros da vertigem criadora dos nossos povos: pretos, brancos, amarelos, vermelhos, verdes, azuis… A frágil possibilidade de que um outro mundo é possível…


* Hamilton Pereira é poeta e presidente da Fundação Perseu Abramo. É autor de oito livros de poemas.
* Artigo publicado na Revista Democracia Viva nº 26

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