O desafio do Fórum Social Mundial
O Fórum Social Mundial (FSM) realizou em janeiro sua quinta edição, reunindo mais dO desafio do Fórum Social Mundial – Um modo de Ver, Chico Whitaker, Editora Fundação Perseu Abramo/Edições Loyola, 264 páginas, 2005
e 150 mil pessoas e influindo até mesmo nas discussões em Davos. O livro de Chico Whitaker, um dos criadores e principais organizadores do FSM, é um oportuno balanço desse processo, contando um pouco da história e examinando as principais questões que o Fórum enfrenta atualmente.
O autor lembra que a idéia original do FSM era levantar a bandeira da utopia de "um outro mundo possível" diante do "pensamento único" do liberalismo dominante na década de 1990. Reunindo lideranças sociais e intelectuais, o Fórum surgiu como um espaço aberto para trocar idéias, experiências, visões de mundo. Ele não é um partido ou movimento e "não mudará o mundo; quem o mudará será a sociedade. O Fórum cumpre, na luta pela mudança, um papel unicamente intermediário" (p. 21).
Esse papel – que pode ser definido como um espaço, e não como um movimento ou coalizão de partidos e orgO desafio do Fórum Social Mundial – Um modo de Ver, Chico Whitaker, Editora Fundação Perseu Abramo/Edições Loyola, 264 páginas, 2005
anizações – nem sempre é compreendido pelo público e pela imprensa, que às vezes cobram do FSM manifestos e listas de propostas, objetivos que nunca foram os seus. Na análise de Whitaker, o eixo central é a adesão à Carta de Princípios do Fórum e a busca de alternativas ao liberalismo, a insatisfação com o mundo atual, que ele chama de "insurgência cidadã".
Contudo, não é qualquer organização que pode fazer parte do FSM. Grupos que utilizem a violência, como terroristas ou guerrilheiros, estão proibidos. O mesmo vale para partidos e governos, que podem participar somente de maneira secundária, a convite da organização de uma atividade. Os critérios provocam discussão – as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farcs), por exemplo, insistiram em participar, sem sucesso – mas funcionam para preservar o caráter democrático do Fórum.
O autor destaca a importância do princípio da co-responsabilidade entre participantes e organização, apostando na autogestão como maneira de preparar as atividades do FSM e desenvolvendo temas caros ao pensamento e à prática libertária: "Autonomia e autogestão têm que ser aprendidas, para que possamos superar o infantilismo a que o sistema capitalista nos empurra. A experiência de autogerir atividades, num Fórum marcado por diferentes tipos de diversidade, entre as quais a do ritmo da caminhada de cada um, transforma o Fórum Social Mundial também numa grande escola de crescimento cidadão" (p. 49).
A ênfase na autogestão apontou caminhos que, num primeiro momento, não haviam sido considerados pela organização do FSM. Um exemplo foi a decisão de permitir não apenas delegados(as) das instituições participantes, mas também liberar a inscrição de pessoas que poderiam ou não ter vínculos com movimentos sociais, mas se sentiram estimuladas a se reunir no Fórum.
Uma boa parte desse grupo é formado por jovens que contribuem para dar ao FSM um inconfundível traço de alegria e mesmo de irreverência, às vezes mostrado como caricatura, como uma versão contemporânea de Woodstock. O autor observa que, para além dos aspectos mais chamativos para a imprensa (como as roupas, o comportamento e a música), a participação da nova geração rendeu contribuições decisivas, como a formação do Acampamento Intercontinental da Juventude.
Outro ponto que chama a atenção de Whitaker é a retomada de valores ligados à espiritualidade: "participantes de vários países explicitaram claramente, em diversas ocasiões e de diversas maneiras, a necessidade de uma ‘mudança interior’ como condição para se conseguir construir o ‘outro mundo possível’" (p. 114). O autor identifica esse sentimento com os movimentos católicos progressistas da década de 1950 e indica que é algo também importante na agenda de correntes religiosas em diversos credos.
A diversidade é um elemento central no FSM e, desde o princípio, havia a convicção de que o Fórum não poderia ficar restrito a Porto Alegre. Whitaker examina em detalhes o Fórum Social Mundial de 2004, realizado em Mumbai, na Índia, e o verdadeiro choque cultural que o evento provocou nas pessoas vindas do Ocidente, com o despertar de temas como a discriminação das castas e a mobilização dos(as) dalits, os(as) intocáveis. Mumbai também é um marco pela importância dada às questões culturais, que passam a ganhar mais espaço.
Igualmente relevante é a multiplicação dos fóruns sociais regionais, que têm ocorrido no âmbito de países (Brasil,Chile etc.), continentes (Europa, América), regiões geográficas subnacionais (Nordeste do Brasil) ou transnacionais (Amazônia, Mediterrâneo). Já existe o projeto de realizar uma edição do Fórum na África, e Whitaker levanta a hipótese de expandir o espaço para outros cantos do mundo, como o Oriente Médio e a Europa Oriental. É uma oportunidade para mobilizar militantes desses lugares, que muitas vezes não têm os recursos necessários para visitar países distantes.
O autor apresenta seu modo de ver o FSM de forma bem organizada e de fácil consulta, numa obra que se torna referência para conhecer o desenvolvimento do Fórum Social Mundial. No entanto, o texto poderia ter sido mais bem editado: em diversas ocasiões, Whitaker transcreve entrevistas que concedeu à imprensa brasileira e estrangeira, num formato que se torna cansativo pela freqüência com que é repetido.
O livro contém cerca de cem páginas de anexos que incluem documentos importantes no Fórum Social Mundial, como a Carta de Princípios e diversos artigos que fazem balanços do processo e examinam seus principais impactos e perspectivas. São informações valiosas para quem quer se informar sobre os debates que influem sobre os rumos do FSM.
*Maurício Santoro é jornalista e cientista social, pesquisador do Ibase Resenha publicada na revista Democracia Viva nº 26.