Lia de Itamaracá no Carnaval de SP: a majestosa simplicidade
É frequente as pessoas definirem Lia de Itamarcá como rainha ou majestade. O porte, a voz rouca e poderosa ajudam a explicar muito da associação dessa mulher de 76 anos, natural da ilha da qual compartilha o nome, com a realeza. Quando canta e comanda as rodas de ciranda que apresenta pelo Brasil e outros países do mundo, seu manto e sua coroa seguem cativando súditos de várias gerações.
De posse dessa aura, Lia de Itamaracá vai abrir oficialmente o Carnaval de São Paulo, a partir das 20h desta sexta-feira, dia 21, desde a Praça da República, Centro da cidade. Estará acompanhada e será homenageada pelo bloco Ilú Obá de Min.
Outra razão para o título de rainha pode muito bem ser a sabedoria certeira com que fala de si, do seu trabalho e da relação com as outras pessoas. Respostas curtas, cheias de uma simplicidade que indica plenitude do ser e do querer. À semelhança de sua aparição no filme Bacurau, como o espírito de dona Carmelita, que com uma simples frase começa a alterar o rumo da história.
A artista acaba de lançar o disco Ciranda sem Fim, em que mistura o tradicional ritmo com bolero e arranjos que a aproximam de novas expressões musicais das periferias. “Eu quis misturar isso daí pra saber até onde posso seguir sem ser só com ciranda”, diz. O disco, do selo Natura Musical, está disponível na internet.
Lia – que ainda não assistiu o filme Bacurau – não quer se deter em longas análises sobre cenário político, polarização, intolerância religiosa. A receita da convivência, para ela, parece com a ciranda: dar as mãos e combinar o ritmo. “É só abrir a mente e ver o que a pessoa quer”, explica.
Acompanhe a entrevista, concedida por telefone. Esta entrevista faz parte da edição de fevereiro da Revista Reconexão Periferias, que traz como tema principal as festas populares brasileiras.
“Eu estou muito feliz”, garante Lia
Reconexão Periferias: Eu gostaria de começar nossa entrevista falando um pouco da situação política do Brasil. A sua arte tem origem popular, e fala de temas do cotidiano de pessoas comuns, trabalhadoras. E as letras também expressam forte intimidade com a fé de origem afro. Recentemente, o governo federal fez um pronunciamento em que defende o que chamou de arte superior, elevada. O que a senhora acha deste momento?
Lia de Itamaracá: Olha, o que eu acho é que o governo tem que apoiar a cultura, pra ela não se acabar. Por que se não apoiar, a coisa complica. Não anda.
O governo, ao que tudo indica, pretende dar mais apoio a ópera, a uma arte considerada mais sofisticada, e dar menos apoio, ou não dar apoio, a manifestações mais populares, como a ciranda. Isso é um problema, não?
Com certeza. Por que se ele (o governo) não ajuda a cultura, e vai ajudar outras coisas, como é que vai ficar? Eles têm mais é que ajudar, né?
Eu queria também falar um pouco sobre religião. O seu trabalho, a sua fé, têm inspiração de terreiro, uma matriz afro. Hoje, no Brasil, há uma perseguição crescente (leia mais sobre isso em artigo na edição de novembro de 2019 da Revista Reconexão Periferias) a essas religiões, e também um crescimento de setores religiosos conservadores. A senhora, durante sua vida, sofreu perseguição por causa de religião?
Não. Sou católica, respeito todas as religiões, não sou contra nenhuma. Eu vou em missa, vou em igreja de crente, nada me atrapalha.
Como a gente faz para mostrar para as pessoas que é possível fazer como a senhora, conviver com todos, respeitando e sendo respeitado? Como convencer as pessoas a agir assim?
Olha, não é difícil não. É só abrir a mente e ver o que a pessoa quer. O que quer seguir; nada que atrapalhe, né.
Não precisa de grandes discussões.
Não, é tão simples, fácil de resolver…
É fácil superar diferenças? “É só abrir a cabeça e ver o que a outra pessoa quer”
A senhora acaba de lançar um disco, né. É um disco que não tem só ciranda, tem outros ritmos.
É, tem bolero, outros ritmos. Eu quis misturar isso daí pra saber até onde posso seguir sem ser só com ciranda.
O disco também é moderno, tem recursos tecnológicos de última geração…
O disco foi dirigido pelo DJ Dolores.
Como foi que vocês se conheceram?
Meu produtor ligou pra ele e a gente se reuniu.
Foi uma convivência legal, boa?
Foi, e ainda está sendo legal.
Esse disco é um novo começo?
Sim, huhum.
Há uma outra novidade este ano. O Ilú Obá de Min vai homenagear a senhora neste Carnaval.
Sim. É bom que façam a homenagem enquanto a gente está viva. Isso é que é importante pra mim.
Por falar em Carnaval, ele está recebendo pressão de duas frentes. De um lado os conservadores – o próprio presidente da República, que ano passado atacou a festa – falando mal do Carnaval. Do outro lado existe o uso bastante comercial do Carnaval…
O Carnaval é uma tradição de todo o ano. Isso aí não se acaba não. E ninguém vai acabar isso aí não. Quem não gostar que também não atrapalhe.
Então o Carnaval vai continuar superando essas forças contrárias?
Com certeza. O Carnaval é o poder da cultura.
A senhora acha que essas festas populares, essas tradições, como a ciranda, têm herdeiros? Tem jovens que vão levá-las adiante?
Se as famílias tiverem interesse, sim. Eu mesmo não tenho pra quem deixar, por que minha família mesmo não se interessou pela música, só eu. Mas eu tenho a oficina de música, de percussão, pra ver se nessa juventude de hoje tem quem goste.
É, a senhora tem seu projeto cultural…
Eu tenho a oficina de cultura na Ilha de Itamaracá, mas está parado. Está em conserto. O Guilherme Uchôa (ex-deputado estadual, morto em 2018), fez uma emenda parlamentar pra terminar o resto, camarim, banheiro. Ele deixou o dinheiro pra terminar. Acho que se ele estivesse vivo estava pronto, mas ele faleceu. Faltou o palco, o piso, camarim, cozinha. O Guilherme faleceu mas deixou o dinheiro, e a prefeitura desviou. Aí está difícil terminar o projeto cultural, não tem condições. E a prefeitura não chega nem perto, não ajuda em nada. Só desviou o dinheiro (leia mais sobre isso em texto que acompanha esta entrevista).
Estamos falando em ajuda da prefeitura, e eu lembro aqui que em momentos importantes da sua carreira, o apoio do poder público foi decisivo. Quando a senhora começou a se apresentar, era um programa da prefeitura e do governo do estado. Naquele momento em que a senhora foi trabalhar como merendeira, a senhora disse que teve apoio do poder público. Hoje há muito político, muito jornalista, dizendo que o Estado, o governo, não tem dinheiro, não tem que se meter nas coisas, tem que gastar menos, tem de tirar dinheiro da educação, da saúde. O que a senhora acha disso?
Se eles acham que não tem possibilidade de ajudar, então não complica, para. Eles dizem que não tem dinheiro. E os mestres da cultura, tem? Como é que pode?
Lia, alegre em sua Itamaracá do coração
Mas a senhora acredita mesmo que o governo não tem dinheiro?
Quem não tem dinheiro sou eu. Qual é o governo que não tem dinheiro, meu filho?
Como a senhora acha que o seu trabalho ajuda na vida da comunidade?
Olha, quando eu faço show aqui na minha comunidade, os comerciantes têm mais chances de vender as coisinhas deles. Isso é muito importante, não é? Significa que eu ajudo. Eles têm tantas saudades que todo o dia eles querem Ciranda da Lia, Ciranda da Lia. Mas eu fico sem resposta, por que não tem. Mas que eles faturam, faturam.
A senhora tem feito muitas apresentações todo o mês?
Em Pernambuco, muito pouco. Em Itamaracá, piorou. Eu trabalho muito em São Paulo, Rio, Curitiba, meu trabalho é mais divulgado pro lado de lá.
Será que é por causa daquele ditado…
Santo de casa não faz milagre?
A senhora fica triste por que o seu trabalho ser mais valorizado em outros lugares do que em seu estado natal?
Eu estou muito feliz . Meu trabalho é respeitado e muito conhecido.
A senhora enxerga hoje alguém que no futuro possa ser a nova Lia de Itamaracá?
Um nova Lia de Itamaracá vai ser difícil. O que eu mais queria é que alguém da minha família se interessasse, mas ninguém se interessou.
A ciranda é uma arte em que as pessoas se dão as mãos e caminham todas na mesma direção. A senhora acha que o Brasil podia ser um país mais cirandeiro? Está faltando ciranda pro Brasil?
Não falta ciranda, por que tem cirandeiro demais. O que está faltando é apoio. Aqui mesmo tem vários mestres, com melodias lindas, mas não têm apoio. Eu tenho produtor, tenho uma banda – e levo comigo quem eu posso. Mas e quem não tem? Fica difícil.
Qual foi o momento mais difícil da sua carreira e o mais feliz?
Eu fiquei muito tempo parada aqui em Itamaracá. E aí a pessoa fica triste. Antes do Beto chegar aqui pra trabalhar comigo, eu estava no fundo do poço, sem fazer nada. Foi ele que me tirou desse poço e foi comigo pro meio do mundo (leia mais sobre essa história em texto de apoio que acompanha a entrevista).
Alguma coisa que eu não perguntei e que a senhora gostaria de falar?
Eu estou muito bem, estou feliz. Tenho minha aposentadoria de merendeira, sou patrimônio vivo, recebi um título de doutora honoris causa (pela Universidade Federal de Pernambuco, em 2019), participei do filme Bacurau, você assistiu?
Assisti. A senhora é aquela líder espiritual que aparece para o americano quase no final do filme? Acho que aquele momento é decisivo, explica muito do filme e faz uma virada na história. Por que a força espiritual daquela mulher é que confunde os estrangeiros e faz com que eles comecem a brigar entre si.
É a Carmelita.
E a senhora, o que achou do filme?
Eu ainda não assisti.
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Beto, o produtor, conta como Lia foi “pro meio do mundo”
Lia de Itamaracá já era artista consagrada quando conheceu o produtor Beto Hees, em novembro de 1997. Ambos viviam em maré baixa naquele momento. Ela, apesar de já ter lançado importantes discos e participado de filmes nacionais como Parahyba Mulher Macho (Tizuka Yamazaki, 1983) e da minissérie global Riacho Doce (1990), estava algo esquecida na Ilha de Itamaracá – onde nunca parou de comandar a ciranda, inclusive à beira-mar. Ele, que morava na Alemanha, onde trabalhava como bancário e iniciava uma carreira de DJ e produtor de festas, amargava a frustração de ter produzido um disco que descobriu depois ter sido apropriado por uma grande gravadora.
Beto, natural de Olinda, estava no Brasil justamente para lançar aquele disco que havia ajudado a criar num estúdio em Berlim. “E aí eu fiquei meio a ver navios”, recorda o hoje produtor. Pensou então em fazer um evento em Olinda, cidade onde nascer. “Foi quando lembrei de dona Lia”, conta.
“Eu sabia dela, mas não conhecia. Nunca tinha visto uma apresentação dela. Eu lembro que quando era criança, na escola, a gente dançava ciranda e ouvia as músicas dela. Quando eu cheguei na casa de dona Lia, eu fiquei totalmente passado, né, por que ela é realmente imponente, tem uma postura de realeza, uma voz meio rouca. Eu fiquei umas duas horas conversando com ela. Eu lembro que perguntei quem cuidava das coisas dela, quem agendava os shows pra ela e ela me disse: ‘Estava lhe esperando’. E desde então nós temos trabalhado juntos. Vai fazer 23 anos”, comemora.
“Nesse meio tempo ela já foi pra Europa umas quatro vezes, gravamos três CDs e o último pela Natura Musical. Quando eu comecei a trabalhar com ela, já era Lia de Itamaracá, conhecida no Brasil todo. Ela conseguiu essa façanha sozinha sem ajuda de ninguém. Ela só não usufruía dessa fama. Ela foi muito explorada naqueles anos todos”, completa Beto.
Entre 2005 e 2014, Lia consolidou um trabalho social na Ilha de Itamaracá, por meio de um centro cultural que construiu para oferecer oficinas de música e artes. Nesse período, fazia apresentações na praia sem nada cobrar. Em 2013, a estrutura do Centro Cultural Estrela de Lia passou a precisar de reformas. Parte da obra foi financiada por ela mesma. A outra parte, objeto de verba liberada por emenda parlamentar do ex-deputado Guilherme Uchôa, jamais foi transformada em obra pela prefeitura, o que gerou denúncia na Procuradoria Pública. Desde então, os shows que ela fazia na praia não acontecem mais.
Para março, está programado o lançamento de uma biografia de Lia de Itamaracá. “Enquanto Deus não me chamar, eu vou continuar a ciranda”, garante Lia.